A recusa das utopias
Por Davi Lopes Villaça
Joan Miró. Mulher e cachorro diante da lua (1936). |
Aldous
Huxley e George Orwell escreveram os mais célebres romances distópicos do
século passado, buscando expor, na imagem de sociedades futuras, as tendências
de seu próprio presente. Em 1984, Orwell apresentou uma realidade miserável,
administrada por um regime totalitário no qual o leitor de 1949 podia
reconhecer traços dos recém-derrotados regimes fascistas e do stalinismo ainda vigente;
vale lembrar: para Orwell, seu livro refletia também algumas inclinações de
potências ditas liberais e democráticas, como Estados Unidos, França e
Inglaterra, com seu nacionalismo e autoritarismo crescentes. No romance, as
pessoas passam fome, trabalham como escravas e são continuamente vigiadas,
mesmo durante o sono. A liberdade é quase nula e qualquer atitude suspeita ou desviante
daquela esperada pelo Partido é punida com a morte. Já em Admirável mundo novo
(1932) Huxley imaginou um futuro dourado, verdadeiro paraíso dos sentidos (dado
curioso para uma obra publicada já no contexto das tensões que desembocariam
nos horrores da Segunda Guerra). Ali ninguém (ou quase ninguém) sofre de nada:
todos são, desde o nascimento, condicionados para se sentirem satisfeitos com
seu próprio lugar na sociedade e dispõem de infinitos prazeres imediatos.
Nenhum leitor de 1984 teria dúvida quanto ao fato de que o romance retrata,
desde as primeiras páginas, uma distopia – dor, insatisfação e revolta
acompanham cada passo do desafortunado Winston Smith. Com Admirável mundo novo,
a história é outra. Embora uma sensação de desconforto nos acompanhe ao longo
de toda leitura, é mais difícil identificar no que consiste o caráter distópico
dessa realidade; mesmo quando o identificamos (a própria narrativa, afinal, nos
conduz a isso) não estamos certos de que não gostaríamos de viver ali. Nesse
sentido, uma pergunta do tipo “em qual futuro você preferiria viver, no de
Orwell ou no de Huxley?” deve soar meio idiota. Afinal, o paraíso de Huxley,
mesmo com o que nele percebemos de ruim, pode muito bem parecer preferível não
só ao mundo de Orwell, mas também ao nosso.
Dentre
aqueles que não só recusariam o mundo de Huxley, como talvez até o trocassem
pelo de Orwell, imagino às vezes Dostoiévski. No mínimo, acho que o primeiro
lhe despertaria mais repulsa. O autor não era de modo algum insensível aos
sofrimentos oriundos da privação material e de regimes políticos autoritário; na
juventude, seu flerte com grupos liberais e revolucionários – o que resultou na
sua prisão e deportação para os trabalhos forçados em 1849 – teve como base a
revolta contra a servidão na Rússia. O Dostoiévski da maturidade, longe de
abandonar suas antigas preocupações, mostrou-se porém em sua obra muito mais
preocupado com o que lhe parecia ser a integridade psíquica e espiritual do
homem. Na década de 1860, sua principal briga era com a intelectualidade
radical da época, que sonhava com uma sociedade de plena satisfação material, supondo
que isso deveria significar também o cancelamento de qualquer anseio metafísico. A própria arte se
tornaria ultrapassada: qual seria seu sentido, afinal, num mundo onde todas as
faltas de que ela se origina já estivessem supridas? Nikolai Tchernichévski era
o principal representante dessa forma de pensar. Dostoiévski estava em acordo
com ele sobre o fato de que a arte se origina de uma falta, mas suas conclusões
não poderiam ser mais distintas. Em sua biografia sobre o autor, Joseph Frank
escreve:
“O homem
sempre revelou uma necessidade incondicional de beleza inseparável de sua
história; sem ela, Dostoiévski insinua com emoção, ele talvez não desejasse
continuar vivendo. Assim, as criações literárias da arte transformam-se
imediatamente em ‘ídolos’, em objetos de culto, ‘porque a necessidade da beleza
desenvolve-se muito mais quando o homem está em desacordo com a realidade, em
discordância, em luta, isto é, quando ele vive mais plenamente, pois o
instante em que o homem vive mais plenamente é quando está em busca de algo; é
então que mostra o desejo mais natural de tudo o que é harmonioso e sereno, e
na beleza há harmonia e serenidade’. Para Dostoiévski, bem como para
Tchernichévski, essa busca é o resultado de uma ausência, no mundo real, de
luta humana e de privação; mas, para Dostoiévski, não se trata absolutamente de
preencher a distância entre o real e o ideal apenas por meios materiais. Visto
que, no universo de Dostoiévski, o homem vive ‘mais plenamente’ apenas quando
está em desacordo com a realidade, é evidente que a visão do romancista do que
é importante afinal na vida humana difere totalmente da de Tchernichévski. Na
verdade, a ideia de que o homem poderia alcançar um dia uma satisfação total
com sua vida na terra, Dostoiévski relaciona-a com imagens da morte do espírito
e da decadência moral. Em tais momentos, escreve o romancista, ‘é como se a
vida diminuísse seu ritmo, e já vimos exemplos de como o homem, depois de
atingir o ideal de seus desejos, não sabendo mais por que lutar, satisfeito até
a raiz dos cabelos, caía numa espécie de melancolia e chegava mesmo a provocar
essa melancolia em si mesmo; de como buscava outro ideal em sua vida, e,
saciado ao máximo, não só deixava de dar valor ao que desfrutava, mas também
divergia até mesmo conscientemente do caminho apropriado, estimulando em si
gostos que eram excêntricos, malsãos, picantes, incompatíveis, às vezes
monstruosos, perdendo o sentimento e o senso estético da beleza sadia e
exigindo em seu lugar o excepcional’. Assim, adotar como ideal da humanidade o
objetivo da mais plena satisfação material equivale a encorajar a perversidade
e a corrupção morais. Por isso, uma ‘beleza’ genuína que incorpore os ‘eternos
ideais’ da humanidade – ideais de harmonia e serenidade que ultrapassam de
longe o reino humano – é uma ‘exigência indispensável do organismo humano’.
Somente esses ideais que o homem se esforça continuamente para alcançar e
realizar em sua própria existência podem impedi-lo de mergulhar na apatia e no
desespero.”
Assim, não é
que Dostoiévski tivesse medo que o sofrimento pudesse acabar, e com ele, as
obras de arte. Ele acreditava que o sentido da vida humana está voltado para
uma busca, e tão logo alcançamos nossos objetivos, passamos a formular outros;
chegamos mesmo a inventar desculpas para nossa insatisfação, que não pode nunca
ser extirpada. Sigmund Freud afirmaria mais tarde que o homem é constituído por
uma falta, por um desejo destituído de objeto, que é o que nos move para o
trabalho e a criação. No fundo, Dostoiévski não só desprezava o futuro
idealizado por Tchernichévski como não acreditava nele, o que foi bem demonstrado
em Memórias do subsolo. Tal ordem só poderia existir numa sociedade em que o
homem estivesse privado de algumas características fundamentais: o anseio pela
liberdade, a constante insatisfação. É exatamente isso que o condicionamento
imposto aos cidadãos de Huxley significa. Há algo de perturbador em Admirável
mundo novo, e tem a ver com o fato de que as pessoas ali já não constituírem
pessoas de verdade, mas seres robotizados. Obviamente, isso não significa que
quanto mais sofrimento, melhor. Como qualquer um, Dostoiévski ficaria
horrorizado perante a realidade de 1984 e seu inelutável regime opressor. Mas
ao menos ali, na minúscula liberdade de que ainda se pode usufruir, o homem
continua a ser homem, mesmo que por pouco tempo; as pessoas ainda podem se
revoltar, mesmo sem qualquer esperança de sucesso. É por isso que a estratégia
final do Partido não é apenas a repressão de seus súditos, mas a destruição de
sua humanidade – o que implica: torná-los satisfeitos com seu próprio destino.
Em Admirável mundo novo, pelo menos para a grande maioria das pessoas, essa
destruição já ocorreu.
Fantasias
como as de Huxley parecem próprias de um tempo em que, pela primeira vez na
História, o desenvolvimento científico e tecnológico tornou possível o cessar
de sofrimentos que outrora julgávamos inalienáveis da existência humana. Mas,
na verdade, o caráter distópico do “paraíso na terra” parece ter sempre figurado
no horizonte dos artistas. Pelo menos desde Homero. A Odisseia conta a história
dos dez anos que Ulisses levou para retornar para sua terra natal, Ítaca,
depois da guerra contra os troianos. Mas desses dez anos, apenas dois se
passaram no mar. Os oito restantes o marinheiro viveu numa ilha paradisíaca, ao
lado da ninfa Calipso, que por ele se apaixonara e pretendia torná-lo imortal.
Não parece muito fácil de entender, portanto, a atitude de Ulisses, o seu
desejo inabalável de voltar para casa. Por que trocar aquele lugar de magia,
juventude eterna e fáceis prazeres sensuais por uma velhice enfadonha em Ítaca,
com todas as atribulações da vida cotidiana? Acho que a resposta pode ser
encontrada também em Dostoiévski. Quando o autor estava preso na fortaleza de
Pedro e Paulo, pouco antes de ser enviado aos trabalhos forçados na Sibéria, escreveu
ao irmão Mikhail: “A vida é vida em qualquer lugar, a vida está em nós mesmos e
não fora. Ao meu lado haverá pessoas, e ser homem entre elas e assim permanecer
para sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem nem cair
em desânimo – eis em que consiste a vida, em que consiste seu objetivo”. Acho que
é esse o sentido da aventura de Ulisses: voltar, após ter costeado tantas vezes
a fronteira do inumano, a ser gente entre outras gentes, fora do que não existe vida verdadeira, apenas morte,
embriaguez e esquecimento. Nesse sentido, as utopias parecem sempre guardar
algo de humanamente insuportável.
Só há pouco
tempo li a pequena carta de Graciliano Ramos a Candido Portinari, na qual o
autor (um comunista, vale lembrar), geralmente tão cético quanto à
possibilidade de reformar a humanidade, parece agora preocupado com a
possibilidade de que a construção da sociedade ideal possa prejudicar a
produção artística de alto nível. Conclui, porém, dizendo: “felizmente a dor
existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se
desejássemos a supressão dela, não lhe parece? Veja como os nossos ricaços em
geral são burros. Julgo naturalmente que seria bom enforcá-los, mas se isto nos
trouxesse tranquilidade e felicidade, eu ficaria bem desgostoso, porque não
nascemos para tal sensaboria. O meu desejo é que, eliminados os ricos de
qualquer modo e os sofrimentos causados por eles, venham novos sofrimentos,
pois sem isto não temos arte”.
Textos
citados:
DOSTOIÉVSKI,
Fiódor. “Carta a Mikhail”. Citada em BEZERRA, Paulo. “A vida como leitmotiv”
(prefácio). In: O idiota. São Paulo: Editora 34, 2002.
FRANK,
Joseph. Dostoiévski: os efeitos da libertação. São Paulo: EDUSP, 2013.
RAMOS,
Graciliano. “Carta a Portinari”. Texto acessado aqui.
Comentários