A aldeia global como campo de concentração: a vida nua em tempos de coronavírus
Por Rafael Kafka
© Masha Mitva |
A leitura de É isto um homem?, de Primo Levi, revela algumas coincidências entre fatos
vividos na realidade dos campos de concentração e a atual vivenciando uma
quarentena para não sucumbir pelo novo coronavírus. Ao falar isso, não
esquecemos a crueldade da limpeza étnica que existia na lógica dos campos, mas
diante dos atuais cenários de descaso cada vez maior com a vida dos mais
pobres, a analogia até no foco genocida parece fazer bastante sentido.
Textos que
retratam o terror do nazismo possuem uma relativa fama dentro do universo
literário, mas ao que me parece suas narrativas quase sempre se voltam mais
para um olhar global do fato social ou registram o vivido por outra pessoa.
Casos emblemáticos dos dois cenários são o diário de Anne Frank e Maus, de Art
Spielgman. Anne fala de um confinamento que termina no campo com sua morte e o
quadrinista fala da experiência narrada por seu pai, dois textos muito
valiosos para se entender as dimensões do que foi a Shoah e todo seu discurso
de ódio.
Mas Levi
revela uma dimensão que muitos de nós ignoramos por mais que a sintamos em
algum momento da existência. O corpo em seu texto revela um espaço de dominação
política a afetar a consciência humana. O processo de desumanização do sujeito que
começa nos discursos que reduzem-no a uma caricatura no campo assumem a forma
dos trabalhas forçados e da violência em gestos absurdos que levam o outro a se
sentir meramente um corpo, um objeto do ressentimento alheio.
Por mais que
tente se resistir, o sujeito aos poucos vê sua resistência cair, sua humanidade
ir embora e assume uma condição cada vez mais sub humana. Levi afirma que
mantém vivo para registrar o que aconteceu, para não se sentir ainda mais
desumano. O testemunho aqui é uma forma de resistência por meio da manutenção
da consciência. A escrita é um refúgio da linguagem que por sua vez é um ato de
rebeldia da consciência, a qual é signo de permanência do humano no sujeito.
Não há aqui
ainda a ideia de lembrar para não acontecer mais, comum em slogans contra
regimes autoritarismo. De qualquer forma, essa ação de relatar o vivido é um
engajamento importante e fundamental, pois se mostra como ato de negação do ser
a se ver reduzido à coisa. Levi foi preso tentando lutar com armas contra o
nazismo, mas no campo ele se vê lutando com as palavras, mesmo que esse campo
tenha sido uma experiência já vivida por ele.
O tempo do
livro é difuso e a experiência do campo parece ainda ser vivida. O trauma é a
linguagem dessa pequena autobiografia que o autor deixa bem claro que escreveu
ao sabor de suas próprias recordações. A cronologia aqui deixa de ser importante
e Levi fala do cotidiano do campo em seus mais variados aspectos, até mesmo os
elementos comerciais que ali surgiram.
“Vida nua” é
o conceito usado por Giorgio Agamben para falar dessa existência confinada em
máquinas de matar pessoas de maneira sistemática, uma racionalidade estranha
que ao invés de garantir o processo de libertação do indivíduo serviu para
assassinar a dignidade humana. A vida no campo é toda um grande olhar
coisificador do outro que leva a liberdade humana a ser degradada das maneiras
mais variadas possíveis. Parece haver no texto de Levi e nos estudos de Agamben
um eterno questionamento de onde termina a humanidade de um ser, a partir de que
momento a consciência humana deixa de existir e o indivíduo beira um estado que
poderíamos chamar de animalesco.
Mas se
levarmos em consideração que animais não têm uma consciência como os humanos
têm, torna-se ainda mais difícil dizer o que são esses seres chamados de
muçulmanos que rastejam pelo campo em gestos absurdos de insistência em seguir
um ciclo de vida reduzido à mera fisiologia. A consciência humana é totalmente
torturada para se sentir a todo momento dominada pelo outro. O trauma é vivido
não como temporalidade recuperada e sim como temporalidade vivida a cada
momento, uma espécie de eterno retorno em que tempo e espaço se confundem. Por
isso a linguagem de Levi em alguns capítulos deixa de ser no passado, assumindo
que sua consciência no momento da escrita vivia o tempo já vivido mais uma vez.
A vida nua é
a consciência tornada fisiologia, é a consciência experienciada como corpo
supliciado. É um campo de ação do outro que faz dele terra arrasada para provar
sua superioridade ressentida. Em tempos de aldeia global, como diria Marshall
MacLuhan, a experiência do campo se espalhou por meio da cobertura da Covid-19
e vivemos uma realidade de confinamento high tech que é bastante perturbadora,
pois diluída em elementos diversos ela oprime nossa consciência a cada momento.
Um dia, eu
estava lendo uma matéria sobre uma médica que decidiu fazer um diário de bordo
de sua experiência na linha de frente da pandemia. O sol brilhava forte pela
janela do meu quarto e de repente eu me peguei tendo uma crise de ansiedade das
mais sufocantes. A janela me chamava para dar um salto que curaria toda a dor,
andei pelo meu apartamento querendo me controlar, sem obter sucesso algum. De
repente olhei para meu notebook velho, liguei e decidi instalar um emulador de
videogame e passei o dia jogando, indo dormir perto de cinco da manhã do dia
seguinte.
Demorei a
entender a relação entre a leitura e a crise. Para onde eu olhava, a Covid
estava exposta e mais do que nunca ficou evidente que não era o medo da morte
que me assolava: eu não pensava, eu via a pobreza piorada por conta da
pandemia, o risco de familiares se perderem em crises financeiras, amigos sem
emprego, alunos sem aulas, eu via tudo isso e tudo era enlouquecedor. A vida
nua é um processo em que a consciência, esse filtro como bem me ensinou Maria
Rita Kehl que está ali para proteger nosso ser, não consegue mais processar a
realidade. Quando um fato burla esse filtro pela força de sua intensidade ele
se torna trauma, mas quando a realidade se torna o próprio trauma ela se torna
nua, absurda, sem sentido, caótica e cruel.
No começo de
sua experiência no campo, Levi mesmo espancado tratava tudo como uma grande
piada. Eu quis ver como um processo aritmético que seria rápido, pensei nas
séries a finalmente terminar, no número maior de livros a ler e de filmes a
ver. Mas a consciência mostra sua força e nosso corpo é dominado pela angústia
mal disfarçada pelas paredes da casa e falo isso como quem não morrerá em
câmaras de gás ou de fome provavelmente.
Nossa
consciência foge da absorção total da realidade mudando de canal ou ficando
offline, mas de repente a Covid vem e se torna onipresente como o guarda a
espancar prisioneiros no campo e o choro, a vontade de gritar e o medo se
tornam necessidades fisiológicas. A dimensão corporal que sempre desmerecemos,
pensando nela no sexo e na sedução do olhar externo para obtenção de prazer,
hoje se revela fundamental para entendermos a existência humana. O ensino
remoto tem falhado pela falta de estrutura e competência dos órgãos gestores,
mas acima de tudo porque nós sujeitos humanos somos corpo, precisamos do corpo
para sermos gente e ampliar nossa consciência de existir por meio dos passos
que damos no mundo.
Tentamos ver
a quarentena como férias, mas quando pensamos em não poder abraçar, em não
poder sentir a brisa, em não podermos sair sem medo da morte vemos o quanto é
ridícula a tentativa. Por mais que não morramos nas câmaras ou de Covid-19,
diante de nós o projeto genocida se revela em todas as suas dimensões sádicas e
pessoas que fazem fogueiras de São João não são tão negacionistas da doença em
si e sim da dimensão da consciência de tantos fatos cruéis ao mesmo tempo que a
pandemia revelou, desse descaso com a vida humana de uma necrofilia que a todo
instante reduz nossos corpos e afetos a reflexos condicionados com interesses
econômicos e políticos bem delineados, mas que nós ignoramos porque nosso olhar
sempre se volta para o outro lado. Agora isso é impossível e por isso nos
sentimos tão cansados, mesmo quando privilegiados, a menos que sejamos nós
mesmos o sádicos.
A vida nua
exige o mais minucioso e profundo engajamento: o de viver e pensar, de não se
deixar dominar pela temporalidade absurda e manter alguma estabilidade de
existir. Para quem sobreviver a tudo isso, as palavras serão importantes para
pensarmos a dimensão do absurdo que vivemos, um absurdo que mais do que
existencial é político e afetivo, um desprezo profundo pela vida humana
disfarçado na mais torpe forma de racionalidade.
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