Uma leitura do poema “Encontro”, de Alejandra Pizarnik
Por Caio Marques Peçanha
Alejandra Pizarnik. Foto: Lucrecia Plat |
Alguém entra
no silêncio e me abandona.
Agora a
solidão não está a sós.
Tu falas
como a noite.
Te anuncias
como a sede.
(Alejandra
Pizarnik, em Os trabalhos e as noites / Tradução Davis Diniz)
Antes de
tudo, há o peso do suicídio. Pizarnik tirou a própria vida. E se Clarice
Lispector disse em algum momento não ser capaz de perdoar o ato derradeiro de
Virginia Woolf, pois o único dever diante do mistério seria o de seguir em
frente, Alejandra nos coloca de joelhos para que deixemos ao menos a poesia em
paz. Para tanto, é necessário resistir à tentação de considerar a obra da
argentina enquanto expressão irredutível de um fatalismo. Neste sentido,
despejando biografias na latrina, não hesitaria em dizer que os escritos de
Lispector e Pizarnik sofrem e fazem sofrer de dor comum: a negatividade. O
fundamental, todavia, é mostrar como a insurgência do acaso contra o sujeito, através
de eventos nos quais o Eu se encontrará em falta em relação a si mesmo, pode se converter na mais sublime celebração da vida.
A essa altura, talvez soe como exercício de loucura o elogio
da falta. Afinal, o destino da poeta, num rasteiro exercício de causa e
consequência, deixaria patente o efeito devastador da incompletude. Quando
cessa a capacidade de elaborar objetos positivos capazes de satisfazer o
desejo, a vida se torna insuportável, alguns argumentariam. Essa é uma forma de
fazer coro aos encontros da vida em suas possíveis concretizações (o amor
romântico, por exemplo). Há outras, no entanto, e a obra de Pizarnik nos
fornece inúmeras. Dentre tantas, “Encontro” constitui exemplo singular.
Tornar
“Alguém entra no silêncio e me abandona” verso inicial de um poema cujo título
parece antecipar o próprio saldo é certamente uma maneira de fazer desabar os
modos normativos de determinação da experiência. Afinal, como pode um
“Encontro” ser composto por silêncio e abandono? Um passo adiante, a linha pode
ser lida também na figura do paradoxo: alguém quebra o silêncio e assim
abandona o eu-lírico. Pensássemos por meio de contornos biográficos, princípios
de não-contradição ou teleológicos, através de relações de necessidade, e os
versos de Alejandra não poderiam ser outra coisa senão fatalismo, amor
platônico ou apego melancólico (provavelmente nessa ordem).
A orientação
que a argentina dá aos vocábulos, entretanto, abriga em seu seio o
contraditório e clama por uma leitura dialética desde o princípio, na medida em
que o silêncio é desbravado não necessariamente como gesto, mas como espaço.
Deste modo, a palavra poderá ser evocada enquanto zona de indeterminação, o
adentrar de uma indiscernibilidade que fragiliza a figura do Eu. Dar um passo
na direção do silêncio pode, pois, significar abandonar a si próprio e, aqui é
preciso inverter a equação, Alejandra sabe que só caminha em direção à queda um
corpo animado pela força do outro.
Neste
sentido, não é de se admirar que o verso seguinte conceda à solidão um modo de
aparição que é estar junto. Imagem radicalmente divergente da individualidade
liberal, aqui os sujeitos forçam uns aos outros para além de si-mesmos. O
contato com o outro não é mediado pelos limites do indivíduo, mas pela zona
cinzenta que os fragiliza e lança os corpos no desamparo. Não obstante, a
coragem para enfrentar o desterro inerente à condição humana só poderia mesmo
advir de uma solidão conjunta.
É nesse
estado que ardem a noite e a sede, num amálgama, como lava, a tudo consumindo,
fazendo do indivíduo pó. Pois a ideia mesma de “encontro” se configura aqui não
como operação de adição, na qual ambas as partes integram a si determinada
característica do outro, mas enquanto duplo movimento no qual essa própria
integração só pode se dar a custa da reformulação dos pressupostos da relação.
A concretização desse movimento, a partir da imagem da sede, seu polo positivo,
só pode aparecer, pois, contra o pano de fundo da noite, cuja negatividade
pulsa ininterrupta. Por isso, Pizarnik deverá insistir que a fala seja fala do
silêncio: para que noite e sede não cessem de passar uma na outra, e a figura
do encontro se constitua a partir da não-identidade.
Talvez
interpretações platônicas ou melancólicas vissem nos versos derradeiros a
incompatibilidade de vocábulos como prova cabal do abandono (ou do amor não
realizado). A estes, Pizarnik devolve o problema sobrepondo todas as figuras do
poema. O silêncio deve aparecer como modo de expressão, o abandono se
transfigura em reencontro, enquanto a solidão passa ao estar junto; noite e
sede, neste sentido, longe de representarem a oscilação do eu-lírico, são o
prenuncio de uma subjetividade que se sente confortável em meio ao terremoto.
Se Ana Martins Marques diz no magnífico prefácio de “Os trabalhos e as noites”
que, em Pizarnik, “o silêncio fala, fala como a noite, fala do que não é” cabe
a nós acrescentar “fala do que está em vias de ser”.
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