Um romance sobre nossa temporalidade fragmentada
Por Rafael Kafka
Já disse em
outros textos meus, ali de meado de 2013-2014, quando estava afundado nas águas
do realismo mágico, em especial nas obras de Julio Cortázar, que o realismo
mágico é algo que me encanta, pois ao mesmo tempo que segue uma fórmula
aparentemente simples na lógica, apesar de difícil execução – a mescla do real
com o fantástico, resgatando o sentimento de absurdo – ele não possui regras
fixas. Por conta disso, ao mesmo tempo que é possível reconhecer em autores
como Cortázar, Llosa, García-Márquez elementos de proximidade bem claros, é
impossível também não reparar nas diferenças abissais de estilo. O realismo
mágico, depreendo do discurso de Gabo ao receber o Prêmio Nobel, é a linguagem
que dá conta dos fatos e de sua lógica particular ocorridos na América Latina,
algo que se torna mais evidente em momentos de pandemia combinados com a
megalomania de um presidente déspota.
Porém esses
fatos assumem diferentes formas de exposição do real a partir da mistura com os
elementos fantásticos, resgatando muito de nossa identidade ligada a uma
linguagem arquetípica e lendária, profundamente simbólica herdada dos povos da
floresta. Essa linguagem de inconsciente coletivo revela ao mesmo tempo uma
substância rica, política e poeticamente falando, e uma múltipla dimensão
existencial e individual que encanta pela capacidade de abordar os mais
variados temas possíveis no campo literário.
Nesse
sentido, A vida exagerada de Martín Romaña, de Alfredo Bryce Echenique, é um
romance primordial para entendermos a dimensão do realismo mágico e de sua
influência literária e política. Considero que Echenique aqui, assim como
Thomas Mann em A montanha mágica, escreveu sobre o tempo, essência de nossa
condição de ser. Todavia, se Mann usa um tempo praticamente congelado e polifônico
para falar de como Hans Carstop aos poucos se imiscui na atmosfera do sanatório
aonde fora visitar o amigo adoecido, aqui Martín Romaña é construído a partir
de uma temporalidade que parece desafiar o tempo todo as convenções do gênero
romanesco em um relato que lembra demais o tempo descrito por Maria Rita Kehl
em seu belo O tempo e o cão.
Nesse livro,
Kehl defende a tese freudiana de ser o inconsciente um elemento temporal da
condição humana e não espacial, o que impede de encontrarmos o mesmo em um
mapeamento cerebral, por exemplo. Destarte, o inconsciente é um espaço em que a
nossa temporalidade pessoal é marcada por conflitos com as demais
temporalidades e subjetividades de nosso cotidiano e a psicanalista demonstra
como os novos conflitos envolvendo papeis sociais de gênero afetam o surgimento
da depressão como sintoma social. Não sabemos de Echenique era um grande leitor
de Freud, mas o modo como a temporalidade é tecida em seu romance não é algo
linear e em diversos momentos assume um ar de puro delírio.
A priori,
pensamos que o tema do livro é um sujeito que vai a Paris para se tornar
escritor como os seus autores favoritos, Henry Miller e Ernest Hemingway.
Todavia, conforme avançamos, fica evidente que a expectativa existencial de
Manãna e o tempo todo destruída pela realidade e aos poucos ele percebe que
viver em Paris não é uma festa. O livro de memórias que escreve então em seu
caderno azul, sentado na poltrona Voltaire, mostra-se como um profundo texto
auto analítico em que vemos Martín avaliar o modo como viveu os diferentes
fatos sociais da Paris o final da década de 1960 e de como esses fatos
negavam-lhe o direito de viver para escrever.
O quarto
miserável onde morava com a amada Inês, os almoços baratos na Sorbonne, o
reacionarismo dos colegas de esquerda e o subemprego como professor revelam ao
protagonista como a existência não é um romance lírico sobre a transcendência
do escrever e sim algo mais banal, corriqueiro e duro do que gostaríamos que
ela fosse. A literatura então se revela a Martín como uma espécie de fuga da
própria existência pequeno-burguesa que ele vivia, sendo filho de família
peruana poderosa. Romaña é uma espécie de poeta maldito extemporâneo e não à
toa Paris é sua Meca pessoal, local sagrado onde espera encontrar a realização
de sua profissão de fé literária.
Echenique
tece uma narrativa em primeira pessoa a qual fala do presente concretizado e do
futuro idealizado ao mesmo tempo. A sua diegese rompe os limites do romance
tradicional de diversas formas e o tempo aqui parece comprimido. Exemplos disso
são as menções a Octávia de Cadiz, um futuro novo amor que aparecerá em sua
vida após a saída de Inês. Nesse sentido, sabemos desde o começo, que o amor
com Inês não dará certo, o que evidencia o caráter analítico do romance. Não
uma análise fria e calculista, mas a fala de uma pessoa que busca se entender
pela palavra, fazendo da literatura seu campo terapêutico. Se no começo de sua
trajetória, a arte literária era para Martín uma forma de vida mais profunda,
poética e digna de ser vivida agora ela é uma forma de autocompreensão.
Não
significa que ela perdeu importância e sim que a literatura dentro da obra
assume um novo papel, uma nova função para o sujeito. De certa forma, Echenique
deixa pistas disso desde o começo do romance, o que indica uma relação direta
com as propostas de leitura de Cortázar, para quem o romance era algo
construído para ser lido sem a busca por uma leitura ideal. Como obras como O jogo da amarelinha indicam, cada sujeito lê de sua própria maneira um livro e
é essa consciência multifacetada que as obras do realismo mágico enfocam,
claramente influenciadas pela escrita tortuosa de um James Joyce. Assim,
mencionar heróis literários como Henry Miller e Ernest Hemingway indica uma
espécie de não lugar onde o Martín Romaña o presente se situa em relação ao
Martín Romaña do passado, algo concretizado pela leitura das poucas passagens
referentes ao atual presente do narrador.
Henry Miller
representa o último grande poeta maldito para muito e seu jeito escandaloso e
profundamente lírico, explorador dos afetos e prazeres sexuais, influenciaria
demais a geração beat, que sem agenda política definida gerou uma grande
revolução contra-cultural. Já Ernest Hemingway é o herói da narrativa
minimalista e convidativa a um uso profundo do poder de inferência do sujeito
leitor. Ao mesmo tempo em que se desdobra em diversos dilemas existenciais, sua
consciência política é aguçada pela experiência de jornalista que cobriu, entre
outros eventos, a Guerra Civil Espanhola. Há nos dois autores um engajamento
diferente, mas rico a sua maneira, que quebra fronteiras e faz da miséria
humana poesia. Martín Romaña ter ambos como heróis já é um indicativo claro de
que passará por um campo literário não mais preso às convenções burguesas o
século XIX e sim uma literatura que vive uma realidade mais instável e típica
da era dos extremos.
Essa poética
do entrelugar é explorada também quando Echenique se coloca como sujeito ator
de sua própria obra, como alter ego de seu alter ego. A relação dos dois, autor
e narrador, é amistosa, mas cheia de conflitos, pois Echenique na obra é seu
futuro eu idealizado, um sujeito já com obra definida, produzida, enquanto
Martín lida com as agruras cotidianas de quem não consegue escrever. O romance
se faz autobiografia e a autobiografia se faz auto ficção e esse tipo de embate
é usado pelo autor para elucidar que em sua mente os limites entre o campo
existencial e literário já são inócuos, instáveis e por isso o tempo assumido
nessa obra não é um tempo linear, ou plenamente literário. O tempo se funde
assim como o literário e a vida se fundem.
Outro ponto
em comum com a obra de Maria Rita Kehl que citei no começo do texto é a crítica
à clínica psiquiátrica. Quando todos os horizontes simbólicos de Romaña são
destruídos, incluído o amoroso, ele decide procurar ajuda para seus demônios
internos. Como o agrimensor de Kafka que vê o castelo cada vez mais distante de
sua visão, de repente Martín não está mais falando de literatura e sim de
efeitos adversos dos remédios que toma para lidar com suas crises depressivas e
neuróticas. O universo está esvaziado de sentido e ele não consegue elaborar
novas significações em ritmo hábil, caindo assim no ciclo vicioso medicamentoso
típico de uma escola de tratamento das doenças mentais que ainda tem muita
força no tempo em que vivemos.
Os sintomas
são tratados no lugar do que causa dor e os sintomas aqui são qualquer crise de
angústia diante de uma temporalidade fragmentada. Romaña começa a afundar em um
limbo terrível de esvaziamento de sua subjetividade e de perda de controle de
seu corpo, enquanto vê suas expectativas em relação ao amor com Inês serem
derrubadas de vez. O final do romance é aberto indicando uma continuidade, uma
forma de o narrador organizar aquilo poderíamos chamar de sua obra psíquica que
aqui ganha corpo na obra literária. Em suma, o fazer literário aqui tem um
caráter salvador não mais por um universo lírico transcendental, mas por
representar a tentativa do sujeito em se fazer tempo concreto, em se entender
em todas as dimensões, assumindo alguma liberdade diante de si a partir do
pensamento e da escrita.
O realismo
mágico é a linguagem de nosso tempo justamente por ser a que tem capacidade de
retratar tantos fatos absurdos ligados entre si. Ele é a linguagem da
modernidade tardia, em que temos a dolorosa dupla consciência de que os valores
da sociedade tradicional não servem para nos guiar plenamente no mundo e a
sociedade emergente não é mais capaz de criar códigos uníssonos para nos dar a
sensação de harmonia e pertencimento para termos paz. Aí nascem os
fundamentalismos, diria Bauman, porque à consciência angustiada corresponde o
firme desejo de anulação de sua dor. Echenique usa a literatura como forma de
captar esse tempo fragmentado e se tornar ser concreto em seu fazer, espaço
onde pode ganhar algum sentido de identidade. O que a psicanálise, o
existencialismo e o realismo mágico ensinam a cada dia é que a liberdade do
pensar e do auto conhecimento é o consolo que temos em nossos tempos para termos
maior autonomia diante de nossos demônios. Somente assim conseguiremos nos
engajar nos grandes dilemas de nossa época, em que crises sanitárias, éticas,
políticas e econômicas parecem não nos dar mais espaço para pensar com calma e
simbolicamente como um erudito de 200 anos atrás a nossa realidade.
Assim como
Martín Romaña, somos seres a produzir poesia enquanto estamos nas barricadas,
vendo espetáculos bárbaro e político que é a existência humana em uma era
líquida.
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