O que nos ensinam os grandes romances sobre a peste
Por Orhan
Pamuk
Pieter Bruegel. O triunfo da morte, 1562, aproximadamente. |
Desde há quatro
anos estou escrevendo um romance histórico ambientado em 1901, durante o que é
conhecido como a terceira pandemia de peste, um surto de peste bubônica que
matou milhões de pessoas na Ásia, mas não tanto quanto na Europa. Nos últimos
dois meses, amigos e familiares, editores e jornalistas que estão cientes do
tema do romance, Noites de peste¹,
me fizeram muitas perguntas sobre pandemias.
O que move essa
curiosidade é, sobretudo, as semelhanças entre a atual pandemia de coronavírus
e os surtos históricos de peste e cólera. E há uma superabundância de relações.
Em toda a história da humanidade e da literatura, no que as pandemias se
assemelham não é apenas a coincidência de vírus e bactérias, mas o fato de que
nossa primeira reação é sempre a mesma.
A resposta
inicial ao surto sempre foi negá-lo. Os governos nacionais e locais sempre
demoram a reagir, distorcem os dados e manipulam os números para negar a
existência de contágio.
Nas páginas
de abertura do Diário do ano da peste, a obra literária mais
esclarecedora já escrita sobreo contágio eo comportamento humano, Daniel Defoe
relata que, em 1664, as autoridades locais de alguns bairros de Londres, para
dizerem que o número de mortes causadas pela praga parecia menor do que era, se
dedicaram a registrar outras doenças inventadas como causas oficiais de morte.
Em seu
romance de 1827, Os noivos – talvez o romance mais realista sobre um
surto de peste – o escritor italiano Alessandro Manzoni descreve e apoia a ira
da população ante a reação oficial à praga de 1630 em Milão. Apesar das
evidências visíveis, o governador de Milão ignora a ameaça e nem está disposto
a cancelar as comemorações pelo aniversário de um príncipe local. Manzoni
mostra que a doença se espalhou a toda velocidade porque as medidas de
isolamento foram insuficientes, sua aplicação era frouxa e seus concidadãos não
as respeitavam.
Grande parte
da literatura sobre pestes e doenças contagiosas apresenta o descuido, a
incompetência e o egoísmo dos que estão no poder como os únicos instigadores da
fúria das massas. Mas os melhores escritores, como Defoe e Camus, oferecem a
seus leitores a possibilidade de vislumbrar mais do que política sob a onda de
fúria popular, algo intrínseco à condição humana.
O romance de
Defoe nos mostra que, por trás dos protestos sem fim e da raiva infinita, há
também um ultraje contra o destino, contra uma vontade divina que testemunha e
talvez até tolera toda a morte e sofrimento humano, bem como contra as
instituições religiosas organizadas, que parecem não saber lidar com nada.
A outra
reação universal e aparentemente espontânea da humanidade às pandemias sempre
foi criar rumores e espalhar informações falsas. No passado, os rumores eram
principalmente alimentados por informações erradas e pela incapacidade de
entender a situação global.
Defoe e
Manzoni escreveram sobre pessoas que mantinham distância enquanto estavam nas
ruas durante epidemias, mas, ao mesmo tempo, pediam notícias e anedotas de suas
respectivas cidades e bairros, para compor uma imagem mais geral da doença. Só
então eles poderiam aspirar a fugir da morte e encontrar um porto seguro.
Em um mundo
sem jornais, rádio, televisão ou Internet, a maioria analfabeta tinha apenas
sua imaginação para discernir onde estava o perigo, sua gravidade e o grau de
tormento que poderia causar. Essa dependência da imaginação deu aos medos de
cada pessoa uma voz própria, tingida com um tom lírico: localizado, espiritual
e mítico.
Os rumores
mais comuns durante as epidemias de peste eram sobre quem havia introduzido a
doença e qual era sua origem. Em meados de março, quando o pânico e o medo
começaram a se espalhar por toda a Turquia, o diretor da minha agência bancária
em Cihangir, o bairro de Istambul onde moro, me disse com um ar de cumplicidade
que “essa coisa” era uma retaliação econômica da China contra os Estados Unidos
e o resto do mundo.
A peste,
como o mal encarnado, sempre foi retratada como algo de fora, que já havia
atingido outro lugar sem ser feito o suficiente para contê-la. Em seu relato da
propagação da praga em Atenas, Tucídides começava enfatizando que o surto havia
começado muito longe, na Etiópia e no Egito.
Em Os
noivos, Manzoni descrevia uma figura que está presente no imaginário
popular durante as epidemias desde a Idade Média: todos os dias havia um boato
sobre a presença malévola e diabólica que rondava na escuridão, espalhando o
líquido infectado nos manípulos e fontes. Ou talvez houvesse um velho exausto
que havia se sentado no chão, no interior de uma igreja, e a quem uma mulher
que passava acusava de ter esfregado o casaco por todo o lado para espalhar a
doença. E então, imediatamente, uma multidão se reunia pronta para linchá-lo.
Esses surtos
inesperados e incontroláveis de violência, fofocas, pânico e rebelião são
comuns em relatos sobre epidemias de peste desde o Renascimento. Já no Império
Romano, Marco Aurélio acusou os cristãos da praga de varíola antonina, porque
eles não participaram dos ritos para obter o favor dos deuses romanos. E nas
epidemias subsequentes, os judeus foram acusados de envenenar poços, tanto no
Império Otomano quanto na Europa cristã.
A história e
a literatura das pragas nos mostram que a intensidade do sejam o sofrimento, o
medo da morte, o terror metafísico e a sensação de viver algo extraordinário
que a população afetada experimenta, também determina a intensidade de sua
raiva e sua agitação política.
Assim como
aquelas pragas antigas, rumores e acusações sem fundamento, baseados na
identidade nacionalista, religiosa, étnica e regional, influenciaram
significativamente o curso dos eventos durante a epidemia de coronavírus. A
estreita ligação às redes sociais e à mídia populista de direita em dar uma voz
às mentiras também contribuiu para isso.
Hoje, porém,
temos acesso a um volume incrivelmente maior de informações confiáveis sobre
a pandemia que estamos enfrentando do que em qualquer outro momento anterior.
Essa é outra razão pela qual o medo poderoso e justificável que sentimos é tão
diferente. Nosso terror é alimentado menos por boatos e mais por dados
precisos.
À medida que
vemos os pontos vermelhos se multiplicando no mapa de nossos países e do mundo,
percebemos que não há mais nenhum lugar para onde fugir. Não precisamos de
nossa imaginação para temer o pior. Observamos imagens de grandes caminhões do
exército transportando cadáveres de pequenas cidades italianas para crematórios
próximos, como se estivéssemos assistindo nosso próprio enterro.
Agora, o
terror que sentimos exclui a imaginação e a particularidade e revela quão
inesperadamente semelhantes são nossas vidas frágeis e nossa humanidade comum.
O medo, como a ideia de morrer, nos faz sentir sozinhos, mas a consciência de
que todos estamos experimentando uma angústia semelhante nos tira da nossa
solidão.
Sabendo que
toda a humanidade, da Tailândia a Nova York, compartilha nossa preocupação
sobre como e onde usar uma máscara, a maneira mais segura de lidar com os
alimentos que compramos e se devemos nos manter em quarentena é um lembrete
constante de que não estamos sozinhos. Produz um sentimento de solidariedade.
Nosso medo deixa de nos mortificar; descobrimos uma certa humildade no fato de
promover uma compreensão mútua.
Quando vejo
as imagens na televisão de pessoas esperando na frente dos maiores hospitais do
mundo, entendo que meu terror também é sentido pelo resto da humanidade e não
me sinto sozinho. Com o tempo, meu medo me envergonha menos e me parece cada
vez mais uma reação perfeitamente sensata. Lembro-me do velho ditado sobre
epidemias e pragas, que diz que aqueles que têm medo vivem mais.
No final,
entendo que o medo provoca duas respostas diferentes, em mim e talvez em todos
nós. Às vezes me empurra a me fechar, em solidão e em silêncio. Outras vezes,
ensina-me a ser humilde e a praticar a solidariedade. Comecei a pensar em
escrever um romance sobre a peste há 30 anos e, e já então, o que mais me
interessava era o medo da morte.
Em 1561, o
escritor Ogier Ghiselin de Busbecq – embaixador do Império Habsburgo ante o
Império Otomano durante o reinado de Suleiman, o Magnífico – escapou da praga
em Istambul refugiando-se a seis horas de distância, na ilha de Prinkipo, a
maior das Ilhas Príncipes, localizadas ao sudeste da cidade, no Mar de Mármara.
Ele alertou que as leis de quarentena em vigor em Istambul eram pouco sérias e
declarou que os turcos eram “fatalistas” por causa de sua religião, o Islã.
Aproximadamente
um século e meio depois, inclusive o sábio Defoe escrevia em seu romance sobre
a peste em Londres: “Os turcos e os maometanos ... professavam ideias de
predestinação e acreditavam que cada homem tinha seu fim predeterminado”. Meu
romance sobre a peste me ajudaria a refletir sobre o “fatalismo” muçulmano no
contexto do secularismo e da modernidade.
Fatalistas ou
não, historicamente, sempre foi mais difícil convencer os muçulmanos do que os
cristãos a tolerar medidas de quarentena durante uma epidemia, especialmente no
Império Otomano. Além dos frequentes protestos comerciais de lojistas e
agricultores de todas as religiões, nas comunidades muçulmanas, somavam-se
dúvidas sobre a modéstia feminina e a intimidade no lar. No início do século XIX,
essas comunidades exigiam “médicos muçulmanos”, pois na época os médicos eram
majoritariamente cristãos, mesmo no Império Otomano.
A partir de
1850, quando as viagens a vapor começaram a ficar mais baratas, os peregrinos a
caminho dos locais sagrados muçulmanos de Meca e Medina tornaram-se os
portadores e propagadores mais prolíficos de doenças infecciosas do mundo. No
início do século XX, para controlar o tráfego de peregrinos para as duas
cidades e o retorno aos seus países de origem, os britânicos estabeleceram um
dos principais escritórios de quarentena em Alexandria, no Egito.
Esses
eventos históricos foram responsáveis pela disseminação do estereótipo do
“fatalismo” muçulmano e pela ideia preconcebida de que eles e os outros povos
da Ásia eram a única causa e portadores de doenças contagiosas.
Quando, no
final de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, o protagonista do
romance, Raskolnikov, sonha com uma peste, a narração responde à essa mesma
tradição literária: “Ele sonhava que todos estavam condenados a uma nova peste
estranha e terrível que havia chegado à Europa das profundezas da Ásia.”
Nos mapas
dos séculos XVII e XVIII, a fronteira política do Império Otomano, onde se
pensava que o mundo além do Ocidente começava, coincidia com o Danúbio. Mas a
fronteira cultural e antropológica entre os dois mundos era marcada pela peste,
além do fato de que era muito mais provável que se espalhasse para o leste do
Danúbio.
Essa
situação, além de consolidar a noção de fatalismo inato que costumava ser
atribuída às culturas orientais e asiáticas, reforçou a ideia preconcebida de
que as pestes e outras epidemias sempre vinham dos cantos mais sombrios do
Oriente.
A imagem que
muitos relatos históricos locais nos dão é que, mesmo durante as grandes
pandemias, as mesquitas de Istambul continuaram celebrando funerais, os
enlutados continuaram a se visitar para oferecer condolências e se abraçar entre
lágrimas, em vez de se preocupar tanto pela origem da doença e como ela estava
se espalhando, estavam mais interessados em estar adequadamente preparadas para
o próximo funeral.
No entanto,
durante a atual pandemia de coronavírus, o governo turco adotou uma atitude laica,
proibiu funerais para aqueles que morreram da doença e tomou a decisão
retumbante de fechar mesquitas às sextas-feiras, quando os fiéis normalmente se
reúnem em grande número para a oração mais importante da semana. E os turcos
não se opuseram a essas medidas. Nosso medo é grande, mas também cauteloso e
paciente.
Para surgir um
mundo melhor dessa pandemia, precisamos abraçar e cultivar os sentimentos de
humildade e solidariedade gerados pelo momento em que vivemos.
Notas:
¹ A tradução é a partir do título em inglês, Nights of Plague.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução livre de “What the Great Pandemic Novels Teach Us”, publicado aqui, no The New Yorker Times.
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