O poço
Por Davi Lopes Villaça
O poço,
filme do espanhol Galder Gatzelu-Urrutia, tem recebido várias críticas
negativas, o que me parece justo em certa medida. Trata-se talvez de uma obra
que deixa a desejar, que entrega menos do que promete. Mas o que de fato
entrega é mais do que o suficiente para admirá-la pela maneira como articula,
numa narrativa carregada de ação e suspense, temas fortes da filosofia e da
religião. Isto sem falar, claro, nas boas atuações e nas qualidades
propriamente cinematográficas, que não me proponho a analisar.
A história
tem como premissa um estranho experimento social. Duplas de pessoas são
aleatoriamente dispostas ao longo dos muitos andares (não sabemos quantos) do
“poço”, um enorme edifício subterrâneo, uma prisão vertical. As celas
comunicam-se umas com as outras apenas por um grande vão que atravessa seu
centro. Esse espaço é de tempos em tempos percorrido por uma plataforma, uma
mesa flutuante, contendo a refeição dos prisioneiros, detendo-se brevemente em
cada andar. No primeiro nível, temos um farto e sofisticado banquete, com
variadas iguarias. Em tese, deve haver o suficiente para todos os habitantes do
poço. O problema está em que os de baixo só podem comer o que os de cima deixam
para eles.
Podemos
apenas imaginar como de fato nos comportaríamos numa situação semelhante. Não
acho otimismo demais supor que agiríamos com mais civilidade do que as pessoas
do filme. Mas é claro que o diretor deliberadamente imaginou o pior cenário
possível. Em cada andar os prisioneiros comem tanto quanto conseguem. Após
algumas dezenas de andares, o elegante banquete converteu-se numa asquerosa
mistura de sobras meio comidas, sobre a qual todos ainda se atiram vorazmente.
Nada resta aos habitantes dos níveis inferiores, relegados à inanição e ao
canibalismo.
Muitos viram
nisto uma metáfora da moderna sociedade capitalista, o que me parece correto,
contanto que não se estabeleça uma analogia direta. É necessário, antes de mais
nada, reconhecer as particularidades da situação proposta pelo filme. No
capitalismo (e isto está longe de ser uma exclusividade sua) as camadas sociais
mais baixas suportam as de cima, na medida em que são exploradas por ela. Os
ricos dependem dos pobres. No filme isso simplesmente não ocorre. Ninguém
produz nada, logo ninguém é explorado. Para os privilegiados habitantes dos
andares superiores, a existência daqueles que estão embaixo não significa nada.
Por ora, apenas nos aproximamos dessa realidade, na medida em que nos
encaminhamos para uma distopia neoliberal – aquela na qual as classes mais
baixas, tornadas economicamente irrelevantes pelo trabalho automatizado, são
lançadas ao mais terrível desamparo.
Mas há
outras particularidades importantes na ordem do poço. Sua estrutura é composta
por andares superiores (onde há comida em abundância), médios (onde há alguma
comida) e inferiores (onde há pouquíssima ou nenhuma comida). Essa divisão em
três é, contudo, enganosa, pois há na verdade tantas camadas sociais quanto há
andares no poço. Em nosso mundo, um homem rico pode identificar-se com outros
homens ricos. No poço, por outro lado, não existem iguais. Mesmo para os
habitantes dos níveis superiores só existem dois tipos de pessoa: as que comem
antes delas e as que comem depois A única igualdade é a dos níveis inferiores,
aos quais a comida absolutamente não chega. Mas as pessoas dali estão ocupadas
demais morrendo de fome e se devorando para se identificarem umas com as
outras.
O que a
princípio deveria representar um alívio para essa situação é que ninguém fica
para sempre no mesmo andar. A cada trinta dias, as duplas são aleatoriamente
realocadas, podendo ir para um andar mais alto ou mais baixo. Nada mais
estranho, aliás, à dinâmica de nossa sociedade do que essa arbitrária
rotatividade. Seria então razoável que os moradores comessem apenas o que lhes
é necessário para sobreviver, sabendo que no futuro terão de contar com a ajuda
dos outros. Mas se tem uma coisa que o filme quer nos ensinar é que a mente
humana é tudo, menos racional. Pois é justamente por saberem que mais cedo ou
mais tarde estarão na pior, como provavelmente já estiveram, que as pessoas se
lançam com mais desespero à comida, não somente para saciar sua gula, mas para
não deixar nada para os outros. Cada um vê nos demais alguém que o ofendeu ou
pretende fazê-lo, e estão por isso sempre a vingar-se uns dos outros e a cagar
sobre suas próprias cabeças.
Isto poderia
soar como uma denúncia do egoísmo e da estupidez do ser humano. A meu ver,
trata-se sobretudo de uma mirada na complexidade de nossa psicologia. Foi
Dostoiévski um dos autores que com mais acuidade percebeu, desde suas primeiras
obras, que as condições de privação material, longe de reduzirem o homem a
preocupações de ordem estritamente prática, aguçam nele o sentido de sua
dignidade; os “humilhados e ofendidos” são pessoas feridas no seu amor-próprio,
que buscam desesperadamente algum tipo de afirmação do seu eu. No poço, os
prisioneiros dos níveis superiores gozam não apenas de comida farta, mas da
satisfação momentânea de estar acima dos outros, sobretudo porque já estiveram
nos níveis inferiores e sabem que voltarão para lá.
Mais do que simples
alegoria de nossa sociedade, o filme expõe uma situação limite, o pesadelo do
individualismo extremo. O interessante é que o comportamento individualista
muitas vezes revela em si sua contradição. Consideremos, por exemplo, aquele
ditado típico do discurso do coaching: “trabalhe enquanto eles dormem”. O termo
fundamental nessa máxima não é trabalhe, mas eles. Nesse tipo de lógica
competitivista, tão propagada pela ideologia neoliberal, o sucesso só é sucesso
quando edificado sobre o fracasso de um outro. Longe de pregar a autonomia do
indivíduo, isso, na verdade, torna esse outro absolutamente necessário. Também na
ordem do poço nossa dependência psíquica de outras pessoas está afirmada, ainda
que por meio de uma relação francamente hostil.
O herói da
história, Goreng (por alguma razão, todas as personagens possuem nomes
extraídos da língua malaia; goreng significa “frito”) é um novato, um homem
absolutamente contrário à ordem do poço, ou pelo menos ainda não pervertido por
ela. Todos os ingressantes no experimento têm direito de levar consigo um
objeto de sua escolha: uma faca, uma pistola, algo que lhes ajude a sobreviver.
Em sinal de completo despreparo para a realidade do poço, Goreng escolheu um
livro. Muito sugestivamente, o Dom Quixote, com cujo herói possui semelhanças
físicas e espirituais. Em O idiota, Dostoiévski retratou, na figura do príncipe
Mishkin, sua versão do que seria um homem completamente bom – nas palavras do
autor, uma mistura de Cristo com Dom Quixote. Os criadores de O poço provavelmente
tiveram esse livro como referência. No mínimo, é possível estabelecer uma série
de paralelos entre o filme e a visão de mundo dostoievskiana.
O que
acompanhamos no desenvolvimento da trama é a lenta transformação de Goreng de
bondoso ingênuo em sofredor abnegado. Nela não faltam, aliás, símbolos
cristãos, muitas vezes invertidos e ironizados, mas também atualizados: a mesa
do festim em torno da qual os homens deveriam sentar em comunhão; o ato de
devorar o outro, mas sobretudo o de se deixar ser devorado (“comam, pois este é
meu corpo”); a descida de Goreng pelos muitos níveis do poço, lembrando a
descida de Dante pelos nove círculos do inferno; o próprio herói, que na sua
luta vã para instigar o bom senso nos outros – Dom Quixote a investir contra
moinhos de vento – lembra Jesus pedindo às pessoas que mudem de mentalidade.
Um homem tão
bom não poderia existir sem sua contraparte. Na obra de Dostoiévski, os heróis
frequentemente produzem seus duplos. Ao despertar no poço, Goreng conhece seu
companheiro de cela, Trimagasi (“obrigado”, em malaio), de longe a personagem
mais interessante do filme. Enquanto características como bondade, ingenuidade
e sensatez compõem a figura do herói, Trimagasi é uma estranha mistura de
lucidez, loucura e cinismo. É a encarnação plena do egoísmo instituído no poço,
o representante máximo da ordem fixada, incapaz de conceber qualquer coisa fora
dela. Para ele, as coisas são exatamente como deveriam ser. Tudo é óbvio, bordão
que ele usa ao final de cada assertiva. Tão diferentes, Goreng e Trimagasi
acabam logo se tornando amigos. Essa é a lógica dos duplos, da qual todos temos
um pouco: somos atraídos pela verdade que um outro contém de nós e sem a qual nos
sentimos incompletos. A própria ideia do canibalismo expressa esse desejo de
ser uno com o que é diferente, de incorporar inclusive aquelas qualidades vis e
abjetas que parecem ter se desprendido de nós mesmos.
Goreng tenta
corrigir a sociedade do poço. Como fazê-lo, quando não se pode resolver tudo no
diálogo, quando parece impossível convencer as pessoas a serem minimamente
solidárias? Pode-se recorrer à força, obrigar
os outros a se comportarem bem. Mas eis que surge uma questão tão antiga
quanto a filosofia e o cristianismo, que é o problema da liberdade. Dostoiévski
achava que um mal praticado livremente vale muito mais do que um bem praticado
por coação. Para que o bem exista, é necessário que exista também o mal, ou
pelo menos a sua possibilidade. Sem esta, não pode haver nem consciência nem
livre-arbítrio, o indivíduo deixa de ser responsável por sua ações. Isto talvez
pareça de pouca importância numa situação em que as pessoas estão morrendo de
fome. Mas Dostoiévski, em consonância com sua perspectiva cristã, foi um
profundo investigador da psique humana. Em Memórias do subsolo, afirmou que o
homem não procura o que é “vantajoso” para si; procura sua liberdade, podendo
até preferir, para afirmá-la, o sofrimento e a destruição.
Não se
trata, absolutamente, de legitimar o comportamento das pessoas no poço, mas de
reconhecer ali uma situação condicionada, em que nossos impulsos mais autênticos
são explorados da pior forma possível. Pode-se imaginar que essa realidade é
terrível sobretudo graças à cegueira de seus habitantes e à dificuldade de
comunicação entre elas. Se todos se dessem conta ao mesmo tempo de que
ajudando-se a vida na prisão se tornaria muito mais suportável, parece lógico
presumir que todos começariam a se ajudar. Mas e se não for isso? E se o
egoísmo que nos parece decorrente apenas de uma ignorância for, antes de mais
nada, o exercício de uma liberdade que valorizamos acima de tudo? Dostoiévski
era um defensor ferrenho da ideia de livre-arbítrio: entre o inferno na terra e
alguma espécie de paraíso totalitário, no qual os homens fossem obrigatoriamente
bons uns com os outros, não hesitaria em escolher o primeiro, pois só podia
perceber o segundo como um embotamento daquilo que nos faz humanos. Mas isto
não significa que, em nome de uma pretensa integridade psíquica, estejamos
condenando à barbárie. Dostoiévski acreditava na moral e, sobretudo, na
necessidade humana de ultrapassar o próprio egoísmo – Cristo, com sua natureza
abnegada, constitui para ele o retrato de uma personalidade plenamente
desenvolvida. Além disso, na visão do autor, o homem é eticamente constituído,
só existe em função de sua relação com o outro.
O filme
levanta a questão da “solidariedade espontânea” – outro ponto-chave na visão de
mundo dostoievskiana. A moral de O poço com certeza não é “sejam bons uns com
os outros”. Porque ninguém pode ser obrigado a ser bom, não pode sequer se
obrigar a ser bom. Goreng e outras personagens tentam mostrar às pessoas da
superfície, aos administradores da prisão, que são capazes de refrear seus
impulsos egoístas. Será o bastante? O bem de que falam Dostoiévski e outros
cristãos é mais simples e, ao mesmo tempo, mais difícil. O verdadeiro altruísmo
consistiria na capacidade de se sacrificar pelo outro desinteressadamente – não
para provar alguma coisa ou para educar alguém, mas por simples compaixão. Assim,
o altruísmo tanto mais se mostra verdadeiro quanto mais ele é inútil: por
exemplo, quando só tem por meta o consolo passageiro daqueles por quem nos
sacrificamos, e não a subversão completa da ordem do mundo. Não é algo que se
possa aprender, mas que se atinge (se é que se atinge) a partir de uma
experiência. Em O poço, não encontramos solução para o problema social
retratado. O filme limita-se a acompanhar a trajetória de Goreng, as
consequências de seus atos e sua transformação interior. Nesse processo, é
constante seu esforço para manter-se humano, não abdicando de sua
responsabilidade diante dos outros, a despeito das circunstâncias que empurram
para o desespero e a indiferença.
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