New Orleans, Faulkner e o jazz
Por Paula Luersen
William Faulkner Enjoys New Orleans Jazz. Grayce DeNoia Bochak |
Não sabia para onde iria. Fui
levada ao ponto de partida no escuro. Sabia que a saída estava marcada e era
cedo, numa estação de trem em Atlanta. Mas não imaginava para onde correriam
aqueles trilhos.
Foi só chegar ao destino, porém,
para descobrir que era o lugar certo para encerrar 2016, antes mesmo de o
calendário decretar seu fim. O problema é que o arrastar do ano tinha esgotado
todo o meu desejo, toda a minha vontade. O que eu sentia era tristeza bruta que
se agravava nos muitos momentos em que me via sozinha. Polarização política. Burrice
institucionalizada. Instabilidade emocional. Demonstrações vazias de autoridade,
de um lado; retórica do sacrifício, do outro. Intolerância soando no seu tom
mais agudo, a ponto de tomar as ruas, a casa dos tios, a universidade, o pátio
da vó e, às vezes, perigosamente, se incrustar pelos cantos do meu apartamento.
O desânimo sentava à mesa, se estendia no sofá da sala, aguardava deitado na
cama quando chegava a hora de dormir. Sonhos ruins. Imaginação restrita.
Cinismo desconfortável. Imagens patéticas: eu percorrendo a casa no escuro por
horas, sem conseguir acordar. Sonhar que não se pode acordar: um enorme
desperdício! E penso que tenha sido tudo isso que foi sendo pouco a pouco
vencido quando comecei a viver New Orleans.
Descobri na cidade um pequeno trecho
dos escritos de Faulkner que considerei um grande achado – uma daquelas
coincidências felizes, pra demarcar momentos da vida que muitas vezes só se
revelam a nós mesmos pelas palavras de outro: “Cultura significa primeiro
desfrutar a vida, o lazer e um senso de lazer. Significa tempo para jogar com a
imaginação para além dos fatos da vida, significa tempo e vitalidade para levar
a sério as coisas realmente sérias, sem perder de vista o pano de fundo, a
alegria de viver para revigorar os espíritos cansados.” Ele se interessava, em
seus escritos, pelos momentos em que o fato era tornado secundário em favor do
desejo de vida, de amor, e de entender a vida. Dizia ter encontrado isso em New
Orleans, em 1922. Curioso. Antes da minha partida, no final de 2016, ainda um
interesse diário em saber sobre a situação vivida em Porto Alegre – as
ocupações na universidade, os acordos e reveses, a necessidade de mudança. Um
dia depois da chegada em Athens, ainda colada às notícias: taxa recorde de
desemprego no Brasil. Eram fatos da vida se arrastando e imprimindo seu visco
escuro nas páginas de jornais, às quais as palavras de Faulkner nunca aderiram,
nunca vão aderir. Mas como em 1922 para o escritor, New Orleans anunciou um
elemento de diferença no meu 2016. Ali onde os jornais pareciam servir somente
para dar contorno ao palco de crianças batuquentas.
Noites na Frenchmen Street,
caminhadas pelo Treme, passeios pela Esplanade, algumas cervejas na Bourbon e a
confirmação do que parecia, de início, apenas um slogan publicitário: uma
cidade vibrante! A rua era a mistura de todos os humores. Em trompetes,
clarinetes, colares metálicos, placas de neón, fumaça de charuto, promessas de
mágicos e videntes na praça principal, cocaína oferecida pelas esquinas. Do
piano ao bandoneon nos bares; da bacia plástica ao violino, marcando o ritmo nas
ruas. Tudo era motivo pra música, desde o acompanhamento necessário aos
espíritos encharcados, até a louvação solitária, em voz e teclado, ecoando nas travessas
próximas à igreja principal.
Era 24 de dezembro. A música que tomava todas as
cercanias daquele vagar pela cidade não era, no entanto, uma surpresa. Já
estava anunciada, não só nos panfletos ou no clarinete agigantado que estampava
os mais de vinte andares de um hotel de luxo. Estava anunciada historicamente
por Mahalias, Armstrongs, Ellingtons, Brubecks, Miles e Davis. A cidade não só
era berço como também parada obrigatória para os ouvidos sensíveis, bocas e
dedos tilintantes. Mas o que fui perceber só lá, com a música escapando pelas
frestas de portas e janelas, era seu aspecto de trilha sonora. O que só fui
perceber com o calor dos corpos aglomerados no espaço exíguo de um bar minúsculo,
era o que acontecia durante a música. Em meio à música e por causa dela. Do ensaio
para o enlace dos corpos à recusa da dança (com a desculpa esfarrapada de que eu
não sabia falar inglês).
Trompetes, tubas e saxofones emulavam
todos os sotaques. Já no primeiro show me vi atraída por essas histórias que,
durante a música, vinham somar a cena um pouco mais de improviso. Quando
entrando no bar, avistei no palco uma banda que reunia as mais estranhas
figuras: um vocalista cantando, em estilo Armstrong, uma letra debochada sobre
os likes no Facebook; um baterista reservado, com cara de quem – apesar de
tocar jazz, esse recanto dos músicos comprometidos com a criação e a improvisação
– parecia querer ficar na dele; um tocador de tuba, espalhando-se no palco, que
no Brasil logo condenaríamos como metido a malandro; um saxofonista de camisa
xadrez alinhada e a aparência de alguém destinado a passar a vida na frente de
um computador, tal a nerdisse que carregava a estampa. Mas, de fato, como
tocavam! Como entregavam, a um só olhar, o lugar de improviso um ao outro,
sustentando a melodia comum. Como saíam e voltavam à música, ao soar sempre
novo e inesperado daqueles com quem dividiam o palco. Porque, afinal, a canção
começava, fazendo os mais incríveis rebolados, sem que os músicos abdicassem do
fluxo geral da vida. Sem que prescindissem dos encontros, dos rodopios da
noite, de todos os acontecimentos que coubessem naquele bar. Um mundo de
eventos em um cubículo!
E foi assim que, enquanto o
vocal improvisava um sketch arranhado, eu via a menina na borda do palco, o
bico das botas apontados na mesma direção do olhar. Movia cabeça e quadril manifestando,
em todo o chacoalhar da música, a quem dedicava a sua atenção. E logo estendeu
a mão, languidamente, num aceno, ao tocador de tuba que retribuiu com um olhar
o interesse comum naquela dança. Mas mal ele sabia que era o tempo de cutucar o
baterista para exibir a proposta envolvida no batuque de botas da menina e ela
baixaria a fronte, escorregando para a multidão, e desistiria do interesse
declarado. Ele até tentou recuperar sua atenção quando o saxofonista começou a
solar, encenando um gesto de conquistador barato. Mas, enfim, só sobrou-lhe a
tuba. A menina dirigiu-se à porta, agarrada num cigarro pra logo. E o músico
quase esqueceu a tuba, tentando se levantar, quando se viu enroscado no
instrumento e no fim do solo do companheiro. E se não tivesse a tuba, naquela
hora, juro que não saberia direito o que fazer com as mãos. Nisso, porém, já
era outro reboliço e enquanto o baterista bradava suas escolhas, o vocalista se
agarrava num abraço com o amigo que acabara de chegar.
Foi quando, retomado
o banquinho, ele ouviu ressoar, vindo da direção oposta, um pandeiro extasiado.
Era um homem que imergia da plateia, fazendo chegar no palco o que já corria por
ali como atmosfera comum: a ânsia em tomar parte daquele ritmo que colocava
tantos pés em comichão. O pandeiro foi bem recebido e até tomou o primeiro plano
por alguns breves minutos, mediante o consentimento dos músicos principais. Mas
jazz não é pra qualquer um: é preciso projetar no instrumento toda a vontade de
dança, fazendo dançar as notas e não aquele que as emite. O homem do pandeiro tinha
ares de protagonista e logo quis tomar o palco requebrando todo o corpo. E a
empolgação era tanta que ele já não respondia mais à música, causando uma
dissonância tão espantosa que até mesmo o garçom entornou três dedos de canha, nervoso
com o descompasso. O único a não atentar para a evidente disritmia era o
próprio pandeirista entregue à fama repentina, abandonado a uma dança singular.
Até o vocalista perceber que era hora de intrometer-se naquele pagode
desgovernado, propondo ao pandeiro um duelo: invocou um sketch grave e começou
a expandi-lo, marcando o compasso com um sonoro estalar de dedos. Mas viu que o
pandeirista não desistiria tão fácil do seu show particular. Foi a vez de a
banda toda reclamar seu posto no palco, fincando o olhar na plateia e entoando
uma frase conjunta que tomou num só sopro o lugar. O pandeiro não sabia
assoprar e foi, enfim, engolfado. Uma fresca onda de som se avolumou no palco e
avançou para o público num úmido resvalar.
E essa foi um pouco da beleza que
descobri em New Orleans, cidade onde o improviso não está só na música, mas
também no fluxo de vida inesperado que, vez ou outra, vem atravessar a cena. A
festa, pra além dos fatos. No descompasso, a alegria.
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