Meu pequeno país, de Gaël Faye
Por Pedro
Fernandes
Qual a cara
do horror quando não temos uma consciência formada para sabê-lo? Essa pergunta
certamente não foi a que serviu de impulso para a escrita de Meu pequeno
país. O título do primeiro romance do escritor nascido no interior de
Burundi, um pequeno país africano situado entre a Ruanda, a Tanzânia e o Congo,
deixa sugerir uma variedade de sentidos, desde o mais evidente, a designação da
própria terra natal do escritor, às variáveis estabelecidas pela narrativa,
como as que se guiam pelos temas da pertença, da nação, da etnia, da raça, da
identidade, entre outros temas caros à literatura cuja nascente repousa em contextos
dos mais difíceis quando o assunto é o enfretamento étnico-cultural como é o caso
da extensa parte dos países de África.
A pergunta
apresentada acima oferece uma leitura marginal, e importante, do romance de
Gaël Faye. Meu pequeno país é um livro que se coloca como resposta sobre
um passado não muito distante do seu narrador e sobre o qual todos aqueles que
conseguiram vencê-lo – ou suspeitam do feito pela complicada compreensão de que
o acontecido pertence à dimensão do negado, do esquecimento, e preferem o
silenciamento. Mas é também um livro que revela a tentativa de conseguir
alcançar uma compreensão do mundo para além das vivências e do que as pessoas
assumem como verdade do mundo.
O processo
de interrogação sobre as coisas não é aqui apenas o produto da curiosidade de
uma criança, tal como é recorrente em narrativas em que o narrador assume um
ponto de vista do infante. Mesmo porque, essa perspectiva, no caso específico
do romance de Gaël Faye, se apresenta mediada pelo adulto. Isto é, trata-se de um
adulto narrador que recorre às memórias de infância e reinventa seu
passado a partir dessa perspectiva e não a criança quem propriamente narra os
acontecimentos; o mundo infantil é assim sugerido e redivivo pela
imaginação criadora do adulto.
Dito isso,
fica mais visível então porque lemos Meu pequeno país como um romance
que perscruta a formação de uma consciência sobre o horror. Este termo é aqui
utilizado como sinônimo de mal, que, por sua vez, não quer designar uma força
de dicotomia opositora de bem e sim uma dimensão do jogo de forças que nos constitui.
A reflexão sobre essa outra nossa parte se estabelece no romance por três questionamentos
específicos: quem sou eu, qual o meu lugar de pertencimento e como descobrimos
que o outro é o nosso inimigo. Ou seja, as questões mais visíveis nesta obra
não estão afastadas da indagação ciliar proposta para estas notas. O horror é o
pior de nós, mas seu papel é fundamental no processo de equilíbrio do mundo e
desconhecê-lo implica nossa imersão na barbárie.
É singular
nesse sentido, a compreensão desenvolvida por Gabriel, quando aos 11 anos,
depois do golpe militar de 1993 que reacende os conflitos civis em Burundi,
compara a situação de vingança exercida por um colega de rua e tornado
inimigo dos do seu grupo, ao conflito de uma guerra: “A guerra, sem que se
pareça, sempre se encarrega de nos encontrar um inimigo. Eu, que desejava
permanecer neutro, não pude. Tinha nascido com a história. Ela corria em mim.
Eu pertencia a ela.” Ora, o que se vislumbra é que as fronteiras que separam as
coisas, o eu e o mundo, o eu e o outro, começam no eu; não estão fora do eu.
Uma consciência do horror só é possível quando descobrimos nossa dimensão para
o horror por nossas próprias forças ou pelas do outro. Isso significa: a
reafirmação de que as dicotomias não são oposições, mas situações; e, é improvável
uma existência sem tomar partido, sem posição, e, consequentemente, sem inimigos.
A última constatação pode soar contraditória em relação à primeira, mas só nos deixarmos
levar pelas escolhas entre este e aquele. Entre um e outro,
entretanto, há improváveis outras vias à espera.
A descoberta
de Gabriel é da capacidade de pensar acerca do outro e de si. Logo na abertura
da retomada dessas memórias da infância, o narrador recobra uma conversa com o
pai na qual ficam evidenciadas as distinções étnicas entre os povos pigmeus,
tútis e hútus; ao ser revelado como um tútis, sua característica sublinhada,
além dos apetrechos físicos, é a de pensar rápido, nunca se sabe o que se passa
pela cabeça de um tútis, define o pai. Adulto, Gabriel, assume a mesma condição
de sua mãe ―
uma tútis, casada com um francês e exilada em Burundi, já que sua origem de
Ruanda não lhe permite gozar de quaisquer direitos e, que, por esta e outras
razões não guarda quaisquer efeitos diaspóricos, gostava de nunca
mais retornar a Ruanda, sequer à África. O filho, na tratativa de praticar a
aleatoriedade do pensamento, ousa substituir a certeza de sua origem pela destituição
do lugar.
Os impasses
assumidos ao longo da narrativa de Meu pequeno país conduzem o narrador
sempre para algumas fatalidades inevitáveis; o próprio romance se assume
enquanto produto de uma força decisiva. A descoberta de que o mal nos habita é
talvez a mais aterradora, porque destitui por inteiro a utopia da plenitude. Essa
descoberta, entretanto, não é definitiva. Por mais que a vivenciemos, ela
tornará sempre a se repetir: vejamos o destino da mãe de Gabriel que julgava nunca
mais regressar a Ruanda; ou a do pai que julgava ser eterna a aventura de viver
em Burundi; e as pequenas e muitas desilusões desse narrador. O fim da utopia
da plenitude é o fim da utopia de felicidade.
A descoberta
implica outras duas constatações. A primeira é que a tão sonhada paz universal jamais
será alcançada, visto que odiar é uma força inata; e em nós adquire um sentido ainda
mais dramático porque temos a consciência sobre a atitude, aperfeiçoamos
conscientemente o trabalho de odiar e odiamos quando sequer temos motivo para
tanto. A implicância do pequeno grupo de crianças do qual Gabriel faz parte
para com Francis ou o inocente desejo de parte desses meninos em serem
reconhecidos na cidade pelo medo que impõe aos outros é a constatação mais
própria para se compreender porque fora dessas fronteiras aparentemente
triviais um grupo se sente motivado a impor a morte de um presidente eleito, o
terror ao país e depois assumir a postura de mantenedores da ordem. Isso
significa dizer que os acontecimentos recuperados pela memória de Gabriel dão
contas de um drama-de-si e do mundo; nada é apresentado gratuitamente.
E, a outra
constatação conseguida a partir da compreensão sobre horror como parte de nosso
interior, é a destituição da utopia enquanto sonho possível; embora, o
princípio constitutivo dessa ideia respire conotações como ilusão, sonho,
fantasia, o utópico foi sempre uma espécie destino para o qual
coletivamente podemos chegar seja para a recuperação de uma unidade perdida ―
como é recorrente, por exemplo, entre os familiares da mãe de Gabriel que
sonham com o passado de Ruanda ― ou o estabelecimento de uma nova unidade.
Não é preciso avançar muito no romance para encontrar esse sentido. Logo à abertura
da narrativa, quando encontramos com o Gabriel adulto, o observamos contemplar o
andamento das imagens de um ajuntamento de refugiados que chega à França fugido
da guerra. O episódio que se desenvolve silenciosamente na TV enquanto o
narrador bebe seu uísque está longe de significar pura displicência para com um
drama do mundo do qual ele próprio fez parte; mas se estabelece como uma
atitude de constatação que este drama é, como o horror que nos habita, parte
constitutiva da história do mundo. Infindável, portanto, enquanto existirmos.
No entanto,
se algo consola este Gabriel (e a nós) é que apenas pelo desengano se é
possível pensar. E pensar é nossa maneira de estar no mundo. “A felicidade dispensa
reflexão” ―
constata o narrador. Ao reparar no horror, este narrador consegue se aproximar melhor
de si, da sua história, e, logo, de uma dimensão mais autêntica do mundo. Isso
porque, é dessa massa que somos feito. Ao dizê-la pela ficção nos coloca ante dessa
que é uma das várias constatações que talvez não esteja de um todo revelada
para nós.
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