Kimani. A representante do Brasil na Copa do Mundo de Slam


Por Rafa Ireno

Entre os dias 18 e 23 de maio de 2020 aconteceu a Copa do Mundo de Slam, na França, quer dizer, era para ser em Paris, no entanto, devido a pandemia, o evento foi realizado pela internet. Dia 19, terça-feira, às 16h horário de Brasília (às 21h, Paris). Foi, justamente, sobre essa mudança que eu comecei a entrevista com Cinthya dos Santos, a Kimani, representante do Grajaú e do Brasil na competição. Essa entrevista foi realizada a poucos dias do evento. 



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“Vou colocar o celular num pedestal para ter mais espaço para me movimentar, com um microfone na lapela, daí eu fico um pouco mais livre. Estou pensando onde aqui, em casa, fica melhor de luz para ter esse espaço e fazer toda a performance que eu costumo fazer. O corpo, quando eu quero rodar, pular, quando quero mexer com a mão, de um jeito que eu fique muito livre. Tenho ensaiado bastante, pensando no enquadramento, porque ainda que seja mais contido, eu não quero perder esse lance do meu corpo. Fora isso, eu coloquei trechos de música antes de algumas poesias, tem a dança também, enfim, tenho tentado colocar mais gesticulação, mais métrica, porque tem que chegar duas vezes mais agora, porque é pela internet.”          

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É realmente uma pena essa situação, pois o envolvente das batalhas de Slam (spoken word) está na atmosfera comungada pelos corpos dos poetas e do público, através da ação das palavras. A regra é simples: o participante tem 3 minutos para declamar um poema autoral. Os juízes, escolhidos na plateia, na ocasião, dão notas de 0 a 10 num processo eliminatório até o vencedor.  No Brasil, há uma diferença. As competições acontecem nas ruas, nos terminais de ônibus, portas de metrô ou praças, enquanto, no resto do mundo, são eventos em lugares fechados, bares ou salas de teatro. Trata-se de uma atividade em plena expansão no território brasileiro e, geralmente, é um ambiente que atrai os mais jovens. Kimani começou a frequentar as rodas de poesia em 2017, onde encontrou um lugar para sua expressão.

“Eu gosto de escrever, eu escrevo diariamente, mas as poesias que levo para o Slam são mais pensadas para este ambiente. Eu costumo escrever só quando me vem uma intuição. É um processo muito intuitivo, tanto que todas as poesias que escrevi, eu estava no ônibus, no metrô ou foi depois de ter ouvido uma reportagem que me deixou muito puta. Sempre ando com um caderninho do lado, porque eu sei que sempre vou ter alguma coisa para escrever, para não perder a ideia. Porque é isso, se você perde, foi embora, já era! Acho que você fica sintonizando assim, sabe? Eu tento respeitar esse processo orgânico de sentir e escrever. Daí, eu começo a fazer alguns tópicos do que eu quero falar ou já frases formadas e, só depois que vou estudar para entender como colocar as rimas, por exemplo. Eu sempre penso como levar para o corpo. Como conseguir gesticular, até porque cada gesto me lembra outra métrica ou outra rima. Tem coisa que eu tenho dificuldade para decorar e aí coloco algum movimento e, na hora que estou fazendo, eu sei qual frase acompanha. Depois de terminar isso, vou para frente do espelho e começo a pensar como vai ser. Se eu dou uma voz aqui, se não dou. Tem várias poesias que falo como se fosse outra voz ou uma conversa, então, eu olho para os lados, mudo a postura, viro o rosto, para dar este contexto às pessoas. É tipo uma montanha-russa, sabe? Eu posso começar cantando, daí, depois falo algo triste, engraçado, uma “punchline”, eu gosto de fazer esse movimento, que não seja monótono. Enfim, é muito divertido para mim!”

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“A primeira referência de poesia para mim foi o versinho do João Grilo (do filme baseado na obra de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida) – ‘Valha-me, nossa Senhora! Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher.’  Achei a coisa mais linda do mundo. Tinha música, melodia e ele fala engraçado. Esse lance cômico, eu achei muito divertido, a brincadeira de rimar com as palavras. Eu gosto muito de fazer trocadilho, de colocar provérbio, um senso comum, porque é o que está no inconsciente coletivo da galera. Quando eu jogo com isso, mudo o sentido, as pessoas precisam repensar.

De todas minhas poesias, a que mais me marcou foi a da igreja, a mais divertida! Lembro, no entanto, que meu maior medo ao escrever era chegar no final, quando levanto a mão e digo ‘Já posso ouvir um ‘amém?’, e ninguém responder. Eu entenderia que não consegui atingir o propósito da poesia: mostrar como o discurso que eles (referência aos evangélicos) têm é tão eloquente, que a gente levanta a mão sem saber o porquê.”

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Kimani se refere à poesia “profecia”, que pode ser vista neste link. Essa foi a primeira declamação que a vi fazer no Sarau da Cooperifa, em 2017, e é, de fato, impressionante sua performance, a maneira como modula a voz e faz o público embarcar na sua pregação. Além disso, aqui, revela o engajamento de seus versos, confrontando-se de frente contra o conservadorismo. Aparentemente, a forte presença do discurso político, de ser o lugar das questões feministas, homoafetivas e negras, é um traço também particular dos Slams brasileiros. Penso que, em parte, o sucesso e a potência dos Slams se relacionam com o fato de que quando começaram a se organizar as batalhas, já havia uma cultura literária periférica bem estabelecida, principalmente, em São Paulo. Kimani é do Grajaú e leva as questões periféricas com ela.

“Acho que a poesia é a urgência que a gente tem. É lidar com esses sentimentos de impotência, de ódio, de ver as coisas acontecendo e pensar ‘mas, espera, ninguém vai fazer nada?’. Vamos continuar nisto e está tudo bem? A gente sempre perdendo, a cada 23 minutos morrendo mais um jovem negro e está tudo certo? Eu sempre parto deste ódio para poder escrever. Minha motivação é, com certeza, o amor – como sentimento único, comum. No fundo, no fundo, eu quero amor. Queria que fosse diferente, mas não é. O que me impulsiona a buscar isso, entretanto, é esse ódio. O desejo de dar uma resposta, de dar conta disso num discurso que as outras pessoas ouçam. É um processo terapêutico: você falar e trazer a cura, conversar, conseguir se expressar, ouvir o outro e ter uma identidade. Eu só faço Slam, porque ouvi uma Ryane Leão, uma Mel Duarte e me identifiquei com aquilo. Eu entendi o quanto de denúncia elas traziam em forma de poesia. É muito bonito!”

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“O que eu faço, hoje, é política. Eu não posso ficar mais quieta. A galera precisa acordar!”

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“Eu comecei a entender que a dor não era só minha. É um coletivo. Mas tudo que eu escrevo passa por mim primeiro. Eu, por exemplo, coloco muita referência religiosa, católica, gospel ou umbanda, porque a espiritualidade é algo muito presente para minha vida. A figura de Jesus Cristo é uma das maiores figuras de espiritualidade, só que eu não acredito nesse Jesus que me ensinaram. Eu quero trazer este lado espiritual para minha poesia para a gente refletir, que crença é essa?”

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“Eu penso neste contexto ancestral mesmo, que foram as mulheres que nos antecederam. São anos, anos e mais anos, de mulheres silenciadas em todos os sentidos. Então, de algum modo, quando eu declamo, quando eu peço licença para entrar no palco, estou dando voz para várias mulheres, que vieram antes, que morreram sem poder falar. Então, é uma responsabilidade minha agora, dentro desta ‘liberdade’, maior do que as que elas tiveram, cabe a nós. Sou uma continuidade disso. O fato da gente estar, hoje, falando e escrevendo livros, sendo protagonistas de histórias é também uma perspectiva para que as futuras meninas entendam que isso é uma possibilidade. A Angela Davis fala que quando uma mulher preta se move, ela move toda uma estrutura, a gente está dizendo que sempre fomos precursoras. As mulheres negras foram colocadas neste lugar, silenciadas, mas sempre fomos líderes.”

Minha pergunta tinha sido sobre o protagonismo cada vez maior da mulher negra na sociedade brasileira. Pode-se constatar rapidamente que os Slams, diferente do que foi o RAP nos anos 90, um espaço prioritariamente masculino, tem sido um lugar regido por mulheres negras. Ao lado de Ryane Leão, de Cuiabá, e Mel Duarte, de São Paulo, citadas por Kimani, estão Pieta Poeta, de Minas Gerais, campeã nacional em 2018; Bell Puã, do Recife e Luz Ribeiro de SP, que levaram as edições de 2017 e 2016 do Slam Br. São elas que têm dado uma forma poética mais abrangente às questões do Brasil contemporâneo.

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“Eu estou lendo a Grada Kilomba, o Memórias de uma plantação (2019), e a parte em que ela fala que a gente está deixando de ser objeto para ser sujeito é algo que mexe muito comigo. É isso que eu quero, que eu consiga levar com minha poesia esse entendimento para as pessoas, de que não somos mais objetos de ninguém. Não somos mais escravos. A escravidão é muito dolorida, porque ela não precisa, hoje, de mecanismos físicos para nos conter. É toda uma estrutura do que foi introjetado na gente, impregnado na gente, que faz com que a gente se limite, se diminua. Então, minha ideia é que com minhas poesias, com as trocas de ideia, com as conversas com as pessoas, é que elas entendam que a liberdade é possível. Não apenas a liberdade física, mas também intelectual. Enxergar possibilidades de que, sim, eu posso fazer, eu posso ser amada. A gente pode ser além das coisas que nos ofertaram, do que falaram que poderíamos ser.”

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Muito ainda poderia ser dito, no entanto, interrompo-me por aqui. Procurem saber! A maioria das poesias de Kimani pode ser vistas na internet.

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