Duas separações: A arte de produzir efeito sem causa e Dias de abandono
Por Joaquim Serra
Ilustração: Matthew Saba |
As notícias
são recebidas por seres de diferentes perspectivas. Coincidentemente, nas duas
narrativas há uma Olga envolvida. A Olga de Ferrante em Dias de abandono é uma
mulher que se refaz para viver os primeiros dias de aflição com todas as contas
e filhos que agora pesam e forçam o cotidiano da mulher que foi trocada por
outra. A Olga de Mutarelli em A arte de produzir efeito sem causa é a mãe já
falecida do protagonista Júnior, mas que acaba por ser o centro de um drama
familiar que é contado em segundo plano. Através do narrador em terceira
pessoa, sabemos sobre a traição da mulher de Júnior e os primeiros dias após a
separação que aparecem por meio das frases lacônicas e nas palavras repetidas
que ao mesmo tempo repelem e encontram os personagens na narrativa vertiginosa
de um dos grandes narradores da chamada “literatura underground”.
Mutarelli é
um escritor visual, certamente fruto dos anos como quadrinista. Isso se insere
na narrativa pelos trajetos tortuosos que Júnior, feito uma barata tonta,
avalia os objetos no apartamento do quinto andar – por coincidência o mesmo
andar em que a Olga de Ferrante mora – a ponto de parecer que o leitor está
lendo na verdade As coisas de Georges Perec. Ferrante, ao contrário, dialoga
com tempo e espaço literário já fixos. Sua personagem não é suburbana, mas uma
mulher da classe média italiana de uma família tradicional, com dois filhos,
sustentada pelo marido Mario que um dia decide viver com uma moça mais jovem já
conhecida da família. O mundo de Olga desaba. A mulher que antes tinha o apoio
do marido para as tarefas diárias, agora está perdida e sente um peso
existencial da liberdade aprisionada das obrigações antes repartidas. Mas
Ferrante, ao contrário de Mutarelli, opta por penetrar cada vez mais e partir
da cabeça de Olga – em primeira pessoa – para mostrar um olhar que estranha esse
novo mundo. Seu léxico muda conforme Olga tenta montar a nova vida de prazeres
que Mario está experimentando. Isso abre portas para ela questionar sua postura
como sua ex-mulher e o passado do casal.
Diz Olga:
“comecei a mudar. Em poucos meses perdi o hábito de me maquiar cuidadosamente,
passei do uso de uma linguagem elegante, atenta a não ferir o próximo, a um
modo de me expressar sempre sarcástico”. Não só a mudança preenchia seu
cotidiano, mas a falta de zelo pelos filhos e a busca para as respostas mais
impossíveis. Quer saber por que o marido a deixou, há quanto tempo ele queria
fazer aquilo, se ele ainda amava os filhos, se Olga ainda era uma mulher
atraente, e esta pergunta é colocada em teste.
Júnior
também imprime sua raiva em sua postura, mas com ele esse processo se dá de
forma diferente. A maior lição de Mutarelli talvez seja a falta de um canal
direto de comunicação entre os vários elementos que compõem aquele mundo
ficcional. Não só entre as pessoas, o que já foi amplamente explorado na
literatura, mas entre o ser e o mundo miúdo do cotidiano. Júnior não sente a
dificuldade de articulação com o mundo após a separação como Olga sente, porque
para Olga é uma readaptação ao conhecido que foi alterado, mas Júnior é um
deslocado por natureza. Os objetos, a tecnologia do dia a dia não o
representam, são estranhos a ele e passam por ele de um modo quase hostil. Os encontros que tem no bar são vozes da
falta de nexo que preenche sua vida agora, mas que também sempre preencheu. Ele
parece não precisar alterar o modo estranho de pensar e as teorias furadas que
imagina porque de algum modo sempre foi assim.
O título do
livro não vem sem explicação – por mais que o próprio o proponha –, Júnior começa a
receber na casa do pai pacotes sem remetente com alguns objetos completamente
desconhecidos e desconexos. O pai, José, é um supersticioso e errante. Quer que
Júnior encare uma nova rotina, recomece a trabalhar enquanto ele mesmo, José,
reveza entre uma vida nos bingos e outra a espiar a moça para a qual ele aluga
o quarto ao lado do seu. O caminho solitário de Júnior até os abismos de si
mesmo é mais demorado que o de Olga e provoca outros tipos de silêncios. Olga
se afasta do cotidiano porque parece negá-lo com a ausência de Mario, enquanto
Júnior encara com certa familiaridade o abismo profundo em que está sua vida,
parecendo que a traição nada mais foi que um empurrão para um corpo já penso.
As
narrativas são opostas porque são opostos os pontos de vista e a maneira
estética de cada livro. Ferrante parece dialogar com um romance psicológico
herdado das narrativas com uma ação banal que gera muitos pensamentos e
delineiam a personagem desde as primeiras páginas. Já em A arte de produzir
efeito sem causa está uma miscelânea de modos de representação, que vai de um
quarto kafkiano até um impulso surrealista, transformando a narrativa em um
arabesco sugestivo que vai depender muito das tragédias do leitor para
completar as valas abertas que extrapolam as leis da causalidade.
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