Dor fantasma, de Arnon Grunberg
Por Pedro
Fernandes
Dor fantasma
foi publicado em 2000 e cinco anos depois ganhou tradução no Brasil; na ocasião,
Arnon Grunberg circulava por aqui com o premiado Amsterdã blues, seu
primeiro romance. A boa recepção desse título certamente favoreceu a rápida aparição
do romance em língua portuguesa; os editores saltaram outros dois títulos que
separam as duas publicações. Os movimentos no mercado editorial são meio
inconsequentes. Se não tardou nosso contato com dois livros de um escritor
promissor, tardou a continuidade da chegada de sua obra, visto que, depois de
2005, esperamos mais de uma década para uma reentrada dos livros do holandês no
nosso circuito com a apresentação de Tirza, O homem sem doença e Marcas de nascença.
Fantoompijn
―
é este o título original deste que é o quarto livro de Arnon Grunberg ―
integra a longa lista dos romances que tematizam o escritor em crise. Mas, a
falta de novidade temática nunca deve ser um elemento motivador que permita ao
leitor a liberdade de abondar a leitura de uma obra. Sobretudo no caso de
escritores inventivos como este holandês que certo dia contando suas histórias
de sobrevivência e aventuras nas ruas de Amsterdã para um editor se revelou
para a literatura. Há uma variedade de qualidades que atestam nesse caso
específico como pode o literário sempre se renovar no interior das mesmas
questões e formas. E a maneira encontrada por Arnon Grunberg para realizar essa
ideia é uma dessas possibilidades inovadoras.
Um exemplo é
de como o escritor se beneficia da técnica de uma história dentro da história e
foge, inusitadamente, da recorrência metaficcional; é comum em romances que
tematizam a questão uma narrativa em primeira pessoa com os volteios do escritor
tomado pela crise criativa e, no fim de todo périplo, encontrarmos na obra em
realização ela própria. Não é o caso de Dor fantasma. Aqui, à
primeira vista o que se narraria é uma intrincada história assinalada entre as
crises de identidade e uma relação problemática entre pai e filho ― a
questão, aliás, não deixa de ser posta ―, mas é entrecortada por (e através
de) outra história; Harpo Saul Mehlman encontra o datiloscrito ainda
inédito de um romance de seu pai e é este o texto que se integra ao que seria a
história original. O romance de Arnon Grunberg é, assim, constituído de três
partes: a gênese de uma história falhada que retrabalhada se torna
espécie de prólogo e epílogo para A Cabeça-de-Abóbora e outras pérolas,
o agora texto principal. Apenas a organização do romance suscita pelo menos
duas questões: a autoridade sobre o texto; e a apropriação pelo filho do lugar
do pai.
Embora o
romance de Robert. G. Mehlman apareça assinado com seu nome e esteja
aparentemente preservado de forma integralmente no interior do texto Harpo, não
deixamos de notá-lo como uma unidade reaproveitada na constituição da obra do
filho. Isso se dá porque o próprio Harpo se utiliza de um recurso favorável à
sua argumentação sobre um pai de natureza dificílima e, logo, o principal
empecilho para uma ordem familiar, ou ainda, uma tentativa de encontrar nesse
texto de matriz autobiográfica os elementos favoráveis a uma compreensão sobre o
pai e, por sua vez, sobre sua condição no mundo.
No interior
do jogo ficcional, o trabalho de reapropriação do texto alheio figura a destituição
da originalidade da autoria, visto que, Robert G. Mehlman deixa de ser o autor
de uma verdade porque passa a se constituir uma ficção de Harpo Saul Mehlman.
Esse tratamento parece se situar entre duas funções: se por um lado revela as
razões envolvidas na desordem familiar, por outro, ao transformar o
autobiográfico em parte de uma ficção, vela o vetor dessa desordem, como é
recorrente em narrativas de ordem biográfica. Isto é, a obra de Robert
constitui-se num biografema, termo emprestado aqui da definição proposta Roland
Barthes: “aquele significante que, tomando um fato da vida civil do
biografado, corpus da pesquisa ou do texto literário,
transforma-o em signo, fecundo em significações, e reconstitui o gênero
autobiográfico através de um conceito construtor da imagem fragmentária
do sujeito, impossível de ser capturado pelo estereótipo de uma
totalidade”¹.
O trabalho
de acobertar a vida do pai parece encontrar uma tradição recorrente na família
dos Mehlman. O primeiro romance e o único de maior sucesso de Robert, 268º
lugar no ranque mundial, retrabalha a figura do pai do escritor, um tenista
medíocre que foi transformado pela seletiva memória da sua companheira em herói
da família. Robert é continuamente acusado por sua companheira, uma psiquiatra,
pelas semelhanças para com a mãe a partir do comportamento individualista e
ocultador das coisas. Por esse sentido, Harpo se coloca na mesma linhagem da
avó, sobretudo no interesse de revelar a imagem perturbada do pai. Harpo, por
sua vez, é bastante original porque ao invés de propor uma releitura sobre a figura
paterna, apresenta-a por sua própria voz, o que, ironicamente, não lhe dá quaisquer
garantias de uma verdade sobre o pai (como estima Robert em relação ao seu),
uma vez que, o discurso autobiográfico de Robert é envolvido pelo tecido da
ficção.
Quando
sabemos que os dois nomes aqui em questão, Robert e Harpo, estão relacionados pela
ordem parental e que o filho se busca compreender e se compreender ante
a figura do pai, a destituição da autoridade do discurso passa a significar o que
na psicanálise se designa como parricídio. Não se imprime apenas no desejo pela
morte do pai, mas por sua realização ficcional e metafórica ― a
terceira parte do romance recupera o imbróglio pai-filho no acompanhamento
deste sobre a morte daquele –, além, é claro, da realização do romance
fracassado. Se atentarmos que Robert foi um escritor de sucesso com um romance
que tematiza a figura do pai, Harpo busca a mesma coisa através de sua obra.
Materializa-se ainda outra questão que é a destituição do canônico.
Agora, a ferina
ironia utilizada por Arnon Grunberg na constituição dessa trama reside no interior
da própria narrativa. Em A Cabeça-de-Abóbora, Robert repete frequentemente
sobre o interesse de escrever seu obituário por não confiar no que os
jornalistas poderiam dizer dele. A constatação parece entregar sua desonestidade
na concepção da imagem do pai em 268º lugar no ranque mundial, uma
insegurança sobre si e o próprio filho. De maneira que, o romance que poderia
apenas tematizar suas inquietações sobre a variedade de crises que lhe tomam (a
financeira, a criativa e a amorosa) resolvidas apenas pela simulação de uma breve
existência constituída em poucas semanas numa viagem pelo interior dos Estados
Unidos com um mulher desconhecida e a realização da escrita de um livro de
culinária que se tornará seu segundo Best-Seller se torna também o último texto
sobre sua vida, um obituário mal-ajambrado, uma vez que nele, repara por vezes o feitio de sua própria
literatura e as situações que o empurraram para o universo das letras. Entretanto, tanta sinceridade, se há, não terá valido de nada: já sabemos
como o filho se utiliza do datiloscrito de A Cabeça-de-Abóbora.
O drama
parricida não se justifica exclusivamente pela reapropriação e transformação discursiva
do romance de Robert. Se o leitor chegou até este ponto da leitura não deixará
de ter reparado no imbróglio paternal; mas, há ainda outros elementos
significativos nesse processo e o principal deles é a identificação que essa
geração de filhos finda por desenvolver para com as mulheres; é nas mães que
eles encontram sua alteridade e a condição de diferença na ordem
familiar. E, no caso de Robert, tudo é ainda mais evidente, porque sua “princesa
de conto de fadas” (é assim que ele sempre se refere textualmente e pessoalmente
sobre sua companheira) é uma psiquiatra. Os dois se conhecem quando ela
é ainda uma estudante e ele se oferece para ser analisado. Essa relação
inaugura um princípio dos mais caros nesse romance (e na ficção, como um todo):
a simulação.
Ela se
pratica abertamente pelos escritores em relação e as raízes de sua dimensão não
são induzidas, mas explícitas nesse intervalo de vida que cobre o percurso
narrativo de A Cabeça-de-Abóbora; aqui, o escritor em crise dá lugar ao
homem de aventura e de plena realização que faz o possível para impressionar a
simples Rebecca, uma mulher sobre a qual pouco sabemos dela, que acompanha
Robert no viagem que envolve tudo de um bon-vivant, dos gastos
astronômicos com bebidas e apostas no cassino, a viagem de limusine e outras
excentricidades. Nesse ínterim, há uma personagem que mesmo secundária,
esclarece em tudo este romance como um poderoso simulacro da existência. É o
amigo de Robert, Capano. Este assume as vezes de secretário do escritor famoso
e cuida de todos os apetrechos indispensáveis para os exibicionismos e fetiches
de Robert. Mas, Capano, é puramente um homem de algumas boas influências e longa
lábia; o mestre do trambique tem como filosofia fazer com que as pessoas se sintam
felizes e para que isso aconteça consiste em fazê-las acreditar que elas são realmente
importantes e que participam dos últimos prazeres no jardim das delícias, ainda
que toda a jardinagem seja pura simulação do paraíso.
É óbvio que
nessa ocasião o romance tematiza sobre a aparência, o quanto ela é necessária
para que o eu se coloque numa posição melhor que o outro. Isso é percebido com franqueza
pela “princesa” de Robert que o acusa naquilo que ele vê como uma
característica do gênio (a arrogância), deixar de existir para si para ser de
um público imaginário. Ora, a constatação evidenciada aqui apenas entre as
manias do artista, parece encontrar um ponto certeiro num modo de vida que é agora
de todos os que estão implicados numa dimensão virtual de suas vidas. Quer
dizer, agora ela preenche uma variedade de dimensões que não deixam de reverberar
sobre nossas própria condição no mundo atual: a perda da imagem de si se opera
no interesse exclusivista no que sou para o outro; a vida é um ato contínuo de
simulação, ainda que eu carregue a falsa certeza de que sou autor de uma
verdade de mim; no final de contas, existir consiste em equilibrar essa relação,
visto que, existir significa sempre existir para o outro.
Podemos
então compreender que os termos encontrados no título desse romance de Arnon
Grunberg à medida que se alinhavam com a variedade de crises nas vidas desses
dois escritores encontra sua síntese na permanência que nos acompanha desde
quando desenvolvemos a consciência sobre o eu e sobre mundo:
a dor de existir. Dor fantasma se encontra amparado por uma busca em que
os encontros (só a curto tempo, o tempo da ilusão) propiciam no sujeito alguma
certeza. E tudo volta a se repetir continuamente para encontrar seu final
apenas na morte. O dilema assumido no romance, não apenas é justificado pela
psicanálise ou por uma filosofia existencialista. Há a variável cultural que
não pode ser desprezada na leitura: os Mehlman são judeus. Nesse âmbito, trata-se
de um romance que se insere no interior das implicações conflituais assumidas na
relação entre culturas, nesse caso, a problematização das estruturas do sistema
de sucessão patrilinear, segundo o qual o pai e os descendentes masculinos
constituem a figura-pilar do agrupamento familiar e social e é, conforme notamos
no início destas notas, essa figura ou pelo menos essa posição que ou não
encontra seu lugar na ordem familiar ou nela assume uma condição-problema
que o destitui da condição central no seu grupo. Nesse sentido, o que se coloca
em questão neste romance é outro conceito-chave na psicanálise: o de
transmissão. Este, por sua vez, é atravessado, se repararmos no itinerário aqui
desenvolvido, por outros dois conceitos, o de luto e o de trauma.
Longe de
pretender explicar a questão, mas podemos sistematizá-la da seguinte maneira: o
que envolve as relações familiares nos Mehlman é a questão da sucessão e, com
ela, a transmissão de uma tradição. Acontece que se a continuidade é atestada
pela biologia, não o é culturalmente e essa descontinuidade parece residir no
pai de Robert. A partir da morte de seus pais, os escritores passam a
perceber como o passado não constitui uma entidade amorfa ou sepultada e sim
algo que participa ativamente das existências presentes, introduzindo ou
reavivando nesses sujeitos uma contínua interrogação sobre as verdades de si e
do outro. Tais indagações adquirem melhor contorno ante o luto, uma vez que toda
perda propicia nos sujeitos a rememoração, ato contínuo praticado pelos
escritores à medida que buscam recriar suas existências pela palavra. Estas,
por sua vez, só alcançam singularidade pela morte definitiva do pai, ainda que
essa seja apenas uma possibilidade figurada: ou seja, sabemos sobre a impossibilidade
desse apagamento. Por fim, a dor fantasma se inscreve no encontro entre essa
impossibilidade e a tentativa de nomeá-lo. É desse esforço que nasce o romance
de Arnon Grunberg, um manancial de situações capaz de nos levar a refletir
sobre a complexidade das variadas relações, aqui, começadas pelas implicações autor-obra
e chegadas àquelas chamadas de amor e família – três temas continuamente caros para
a literatura.
Notas
¹ Refiro a
definição de biografema proposta por Latuf Isaias Mucci no E-dicionário
de Termos Literários, coordenado por Carlos Ceia.
Comentários