As nuvens, de Juan José Saer
Por Pedro
Fernandes
Juan José Saer. Foto: Ulf Andersen |
“Essa
impressão de seres pintados que, desde minha infância, costumam dar-me às vezes
os animais, talvez derive da impossibilidade que temos de pôr-nos no lugar
deles, de imaginar o que se passa dentro deles e, ao mesmo tempo, exceção feita
talvez aos cachorros, dessa espécie de indiferença enquanto indivíduos que lhes
inspiramos, e que está presente tanto no pássaro que voa alto no céu quanto no
cavalo que montamos ou no tigre que se prepara para devorar-nos. Excetuados
seus atos exteriores de sobrevivência, são inacessíveis à nossa razão; é mais
fácil para nós calcular os movimentos do astro mais remoto do que imaginar os
pensamentos de uma pomba. Um grupo de borboletas em que todas fazem ao mesmo
tempo, sem possibilidade de erro, o mesmo movimento mostra como são pobres
nossas categorias de indivíduo e de espécie, e poucos conhecem o sentido da
palavra exatidão se nunca viram um bando de pássaros revolutear sobre um campo
no céu límpido do entardecer desenhando unânimes, velozes e precisos, as mesmas
figuras variadas. São sem dúvida menores, de vida mais curta e mais limitada, mas
mais perfeitos naquilo que são do que o homem inacabado e tosco. E essa
exterioridade inacessível de figuras pintadas que apresentam reforça-se ainda
mais na solidão da planície, que os torna quase fantasmagóricos.”
Este excerto
integra um longo parágrafo quase perto do final da narrativa de As nuvens,
de Juan José Saer. Não só os longos parágrafos, mas os longos períodos, dão
forma a uma dicção ardilosa de um narrador embriagado das normas da escola
objetiva; obviamente que este último termo não diz respeito à precisão capitular
recorrente noutras literaturas e sim na maneira quase de um tratado científico
que institui uma tentativa de precisar o mais claro possível no relato os
elementos aos quais se referem. Entretanto, a objetividade, no sentido de
contenção, também vigora na ordenação do narrado e isso faz com que o romance
não se filie à ordem daqueles livros intermináveis – que são tomados, é bom
destacar, pela maneira atenta com que seus narradores contam os acontecimentos.
O escritor argentino consegue, assim, um equilíbrio que demonstra um zelo
admirável para com a língua e a forma.
Há uma
relação decisiva para o edifício romanesco que aí se demonstra. A dupla
objetividade do narrador está amparada por dois princípios: um interior e outro
exterior à narrativa. O primeiro é o respeito à voz que conta a história: um médico
profundamente dedicado ao modelo de trabalho executado pelo seu mentor. E o
segundo, a promessa estabelecida no início da narração e reiterada variadas vezes
ao longo do seu curso: este médico não está interessado em oferecer uma
descrição capitular sobre uma patologia, mas registrar os acontecimentos dos
quais participou em meia parte do ano de 1804, pelo interior de seu país natal.
E o faz num habilidoso exercício de rememoração amparado algumas das vezes por
alguns registros documentais.
Mas, não é apenas
isso o que a citação anterior visa referir. Chama atenção a maneira como esse
narrador encontra na correlação das formas uma possibilidade de construir sua
dupla objetividade. Esse tratamento, sobretudo quando vislumbra oferecer um
retrato acerca da natureza que percorre, lembra por vezes o estilo utilizado
por Euclides da Cunha em Os sertões. Preservadas as muitas distinções,
obviamente, visto que, no caso do escritor brasileiro, os sentidos são
radicalmente mais aguçados, ao ponto de intervir na constituição da própria
dicção romanesca, o que se observa é o tratamento que estabelece traços entre
elementos que determinam a forma. No caso do romancista argentino, esse
tratamento visa acentuar não apenas uma estreita relação entre tais elementos, como
constituir uma síntese que torna o discurso romanesco mais leve e poroso, permitindo-lhe
infiltrações de ordem variada ao longo de seu curso.
Vejamos. Ao
estabelecer as relações entre duas naturezas, a animal e a humana, ressaltando
a indiferença dos bichos em relação ao homem, o narrador oferece
simultaneamente uma compreensão sobre as duas formas: discorre suas distinções
e, por extensão, observa sobre o homem o elemento que vislumbra no animal – a
incapacidade de alcançar o que se passa no interior do outro. Ora, este excerto
parece conter ainda, uma das chaves de leitura sobre o tema principal deste
romance de Juan José Saer, além, é claro, de nos oferecer uma resposta sobre a
relação entre o título e conteúdo da narração.
O narrador
de As nuvens é um certo doutor Real; cedo saiu da Argentina e foi
estudar medicina na Europa, onde se torna contemporâneo das ideias do doutor
Weiss sobre o tratamento da loucura. O encontro entre os dois, favorece ao
médico holandês, a realização de sua prática teórica: a construção nos
arredores de Buenos Aires do que será o primeiro manicômio da América Latina
com metodologia alheia aos modelos de encarceramento vigentes até então. A dorsal
da narrativa é a reconstrução histórica da longa viagem sob o comando do doutor
Real na transferência de cinco loucos há cem léguas da Casa de Saúde em As Três
Acácias. Esses registros datam de trinta anos depois e o narrador já está outra
vez em Paris. É que, na irrupção dos conflitos pela independência da Argentina,
os dois psiquiatras são enviados de volta para a Europa numa sigilosa operação
de resgate que visa salvá-los de complicações mais sérias com os poderes locais.
O relato de três décadas depois dos acontecimentos só é recuperado vários
séculos adiante quando transcritos para o computador e chegam às mãos do professor
Pichón, um argentino que, como o doutor Real fez sua vida na capital francesa.
Para além do
inconveniente recorrente nas viagens desse tempo que retarda a operação a
longas parcelas de tempo para frente e do pitoresco dos seus participantes – o
grupo de 36 pessoas se constitui por uma variada forma de figuras: cinco loucos
com patologias distintas (o jovem Prudencio que paulatinamente perdeu a razão
de existir e há anos vivia prostrado numa cama; a soror Teresita, a jovem
freira que desenvolveu na teoria e na prática uma ascese amorosa da comunhão do
corpo sagrado com o profano e se deixou reter pela fúria dos desejos carnais; Troncoso,
um homem de posses e ciosa elegância trazido de Córdoba e exibicionista capaz de
induzir os outros ao seu mando; Juan Verde, de Asunción, e preso na repetição
vocabular de frases feitas; e seu meio-irmão, o adolescente batizado entre os
do comboio como Verdecito, que é um fiel repetidor dos sons do seu entorno); uma
rasa soldadesca, índios, gauchos, e prostitutas – nada acontece de
excepcional.
O que
transcorre é um longo embate entre homem e natureza. Uma das razões sobre o
retardamento da viagem se dá pela ruidosa cheia do rio Salado que obriga a
caravana a reinventar continuamente seu andamento; depois, a necessidade de
fugir de um eventual encontro com o bando do índio Josesito, quase sempre descrito
como um homem sanguinário, um deserdado dos costumes do branco que vive como
cruel salteador daqueles que cruzam o seu caminho e não são benquistos por ele;
e um grande incêndio; soma-se a isso, o ingresso numa paisagem de dimensões
imprecisas, as grandes planícies que colocam os viajantes entre o exuberante e
o nu da natureza e num mergulho radical no seu silêncio e na sua solidão.
As
imposições do natural, sempre determinado como uma força bárbara e penosa para
os homens de razão, constituem na grande estratégia de Juan José Saer de
demonstrar sobre a invalidez das fronteiras determinadas pela ciência: civilização
e barbárie, lucidez e loucura, normalidade e anormalidade. E aqui reside outra
maestria de As nuvens: como a natureza é indiferente para as linhas da determinação.
Ao toldar os limites entre loucura e lucidez, por exemplo, uma vez que assistimos
uma transformação na condição dos loucos e dos sãos, aqueles para um
ajustamento ao que ao natural é espontâneo e estes para uma afastamento dessa
espontaneidade, ressalta-se um desfazimento dos próprios princípios
deterministas que enformam o real – essa linha constituída de feições complexas
e variadas mas estabelecida como a verdade do mundo.
As
implicações entre formas se realizam nos detalhes mínimos da narrativa, mas participam
da própria ordem discursiva da prosa romanesca de As nuvens e instituem
uma filosofia da loucura e da subjetividade: a dorsal estabelecida pelo
narrador é o rio principal e o que para ela se desloca os afluentes. Ao dizer
isso é possível ir ao título e compreender sua relação com o conteúdo do
romance: como toda narrativa de viagem, é sobre deslocamentos o que aqui se
trata; é sobre transformações quando apontamos as novas feições dos viajantes; e
é sobre a variabilidade das formas quando atestamos tais modificações. Quer dizer,
embora As nuvens seja um designativo que reitera os monstros que
seguem esses viajantes – a tormenta de Santa Rosa que os ameaça ou as vigorosas
nuvens de fumaça dos incêndios na planície – reside aqui enquanto metáfora e símbolo
acerca do interior dos indivíduos e sua volatilidade que se confunde com as transformações
naturais.
A paisagem
que os cercam é a grande planície; sem mostrar suas fronteiras, tal como o rio
ou o incêndio que não respeita suas margens, esse território impõe determinar seus
limites a partir do interior. Aqui, homem e natureza, indeterminados, são uma
só coisa e o que implica suas determinações é o que um diz do outro, esse ponto
em torno do qual somos, como os animais, eternos indiferentes porque nunca o
alcançamos totalmente. Nesse mesmo sentido, nas zonas de aparente impossibilidade
de diferenciação a loucura, que se conserva como tópico principal da narrativa,
se apresenta enquanto discurso de poder assumido por alguém ou uma instituição
em relação ao louco.
Há ainda
toda uma sorte de implicações históricas, alcançáveis se formos aos anais da
história da argentina (no tempo em que se passa a narrativa e no tempo quando o
romance foi escrito) e possíveis de uma leitura numa ocasião mais atenta. Mas, fiquemos com o questionamento patológico. O que a comunidade
provisória comandada pelo doutor Real, com suas próprias leis de funcionamento,
como observa, finda por testemunhar é a realização da tese desenvolvida pelo
doutor Weiss com sua casa de saúde: a integração entre loucos e sãos. Desmantela-se,
assim, os princípios sociais correntes, que colocam homens em oposição por sua
natureza. A viagem alcança um desfecho feliz, uma vez que cada um dos seus protagonistas
consegue reaver, mesmo que parcialmente, uma autenticidade de suas formas de ser
e estar no mundo, desvinculando-se das determinações impostas e autoimpostas
pelas normas sociais.
Por sua vez,
a subversão introduzida por esse romance de Juan José Saer encontra dimensões
muito fora do contexto histórico da narrativa e do romance; falamos da dimensão
universal alcançada apenas pelas grandes obras da literatura. Em As nuvens,
um efeito irônico de elevada potência: apenas numa sociedade de loucos é
possível saber até que ponto a normalidade é uma regra moral, ou ainda, apenas assim
é possível saber quão hipócrita é essa sociedade que tomamos por verdadeira e
única.
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