Stoner, de John Williams
Por Pedro
Fernandes
Quando a
obra continuamente negada em seu tempo alcança o reconhecimento tardiamente uma
das justificativas sempre repetidas é que ela não estava ao alcance dos
leitores de então. No Brasil, por exemplo, essa complicada constatação é sempre
oferecida em relação à literatura de Clarice Lispector. No país natal de John
Williams, a compreensão se repete com frequência em torno de obras como Moby
Dick, de Herman Melville, ou da literatura de Raymond Carver ou do próprio
autor de Stoner só redescoberto meio século depois da sua morte. Sua
chegada por essas terras só foi possível nessa febre tardia em torno do romance
e da obra do escritor do Texas.
Mas, a
justificativa não é apenas complicada; é ainda uma daquelas mentiras fabricadas
pela crítica – talvez inconscientemente – para não admitir sua falta de
sensibilidade ou mesmo a esconder certa implicância proposital em torno de
determinados criadores. Não é possível acreditar plenamente na ideia de obra
projetada para adiante do seu tempo porque isso implica em pensar o escritor
como um profeta e os leitores do futuro como sempre melhores que os do passado
e os do presente, quando, na verdade, o que se modifica são as maneiras de
percepção do mundo e das coisas; isso justifica, inclusive, porque determinada obra
pode ser revista no nosso gosto individual. É possível que um leitor recuse a
beleza de Stoner mesmo depois de sua redescoberta e anos adiante retornar
ao romance e encontre esse valor. Isso que se passa na intimidade dos nossos
interesses influi por fora, na elaboração de um cânone; sendo que aqui o
revestimento da questão é mais sofisticado porque envolve discursos, políticas
e ideologemas vigentes ou não.
É certo que,
as sutilezas do estilo, a acutilante perspectiva sobre determinado tema, o
radicalismo formal e / ou estético são elementos que contribuem em parte para a
recusa de uma obra, mas isso não incorre em todas as criações literárias.
Clarice Lispector, Moby Dick e Stoner não introduziram absolutamente
nada de radical do que já se praticava na criação romanesca e fugisse assim do nível,
por assim dizer, dos leitores do seu tempo. No caso do escritor estadunidense,
sua literatura se funda em todas as articulações criativas do seu tempo: o
romance de formação, o romance de intriga acadêmica e política, o romance
histórico. Basta a leitura do livro motivo destas notas para reconhecer que sua
obra não oferece nenhum tipo de resistência como complexidade linguística,
estrutural ou formal. Seu leitor é o que poderíamos designar universal, porque
estamos diante de um romance que oferece uma aventura sobre a existência
comum de um homem, suas transformações, medos, agonias, conquistas, perdas,
orgulhos pequenos, rusgas consigo e com o outro; uma história sobre a
ineficiência do ideal romântico de amor e sua influência na modificação dos
destinos tramados à solidão de nós mesmos; um périplo sobre a fatal degeneração
imposta pelo tempo, sua circularidade irrepetível e nossa inescapável fuga do
destino acordado desde a origem dos tempos – a morte.
Tudo isso é
tratado numa linguagem perfeitamente ajustada, rigorosamente aferida, como quem
ajusta as múltiplas e variadas peças de um grande e quebra-cabeças. O narrador
de Stoner é meticuloso ao ponto de se parecer com aquelas vozes herdadas
do grande romance do século XIX, sem o interesse pelo puro descritivismo, ainda
que este não deixe de constituir uma dominante importante do seu discurso
narrativo. Sua atenção realista – não será incômoda a referência – reside
no modo como se concentra em torno da figura que compõe à maneira de um perfil
biográfico. O narrador acompanha a vida de William Stoner desde sua entrada
para a universidade como estudante até sua saída depois de uma comum carreira
acadêmica. Nesse ínterim, o narrador não deixa de pontuar sua narração com
situações da infância da personagem almejando vislumbrar a totalidade de uma
vida. A maneira sisuda como observa todos os pequenos dramas da existência
desse homem se confunde com a maneira de ser e o próprio universo forjado da
figura biografada: tudo em Stoner é comedido, como se sua existência se guiasse
por certo estoicismo herdado de sua primeira formação e aperfeiçoado no modo
como concebe seu trabalho e esse sentido é captado com a mesma justeza pelo narrador
de John Williams. Este talvez seja um daqueles pontos excepcionais deste romance:
a implicância entre tema e forma.
Stoner
é a biografia romanceada de uma vida acadêmica; um romance com infiltrações de
um memorial em terceira pessoa sobre / de um professor universitário; o
livro esperado por Coleman Silk das mãos de seu biógrafo Nathan Zuckerman em A
marca humana, de Philip Roth. Nesse caso, sem o interesse de reparar uma
marca negativa, afinal a reputação acadêmica do professor de Columbia, fora dos
embates inescapáveis que a condição lhe impõe, não é atormentada pelo tipo de
ruína que aflige o professor da Nova Inglaterra, mesmo que as situações possíveis
se armem com os mesmos tons por vezes – em qualquer parte as instituição se fazem das intrigas
de interesses pessoais e das disputas de ego e de poder. Mas, enquanto a
narrativa de Silk é uma tentativa de reparação do tempo, a de Stoner é a
constatação sobre a força indelével do tempo sobre o mundo e as pessoas.
Em toda
parte da narrativa de Stoner o olhar do narrador repousa sobre as marcas
da transformação sempre interessado em sublinhar não as modificações mas seus
efeitos; é assim que enxerga a maturidade do jovem William construída entre a
determinação moral e certa culpa pela traição que infringe o voto de confiança
depositado pelos pais: os simples camponeses do interior profundo dos Estados
Unidos abdicam da força de trabalho do filho na fazenda para que este possa
concluir o curso superior de Agronomia e reanimar os sonhos da conquista da
terra, mas, o rapaz seduzido pela literatura clássica, refaz o destino almejado
substituindo o interesse original pela dedicação às Letras. Isso pode ser lido
como uma dessas intempéries da corrosão do tempo: a lenta modificação dos
valores que substituem o campo pela cidade. Mas, as observações do narrador não
repousam apenas sobre trânsitos dessa natureza; está na maneira como compreende
as variações de personalidades do herói e na visão atenta à influência do tempo
sobre as coisas e sobre os corpos, este último continuamente acentuado pelas
modificações físicas dos espaços, das coisas e das personagens.
Nesse
sentido parece importante destacar que, embora as situações do passado de
Stoner apenas se insinuem por entre o seu presente, tudo neste segundo tempo
aparece indiretamente retomado, como se o narrador constatasse, conforme
dissemos, certa circularidade irrepetível do tempo; ou seja, o comportamento
estoico da personagem que se confunde com o mesma força do vivido pelos pais é
um exemplo singular nisso tudo. O fim inescapável de Stoner reanima, noutra conjuntura
evidentemente, a mesma dimensão da luta dos seus pais com a terra. Isso,
entretanto, não se mostra de nenhuma maneira como uma fatalidade ou uma condenação.
Outra vez o estoicismo de Stoner parece ser fundamental: tudo o que fizermos no
interesse de alcançar outra dimensão diferente do fatalismo do tempo, no final,
é pequeno e insignificante. A existência talvez fosse menos vã se desde cedo
não aceitássemos o triunfo como bandeira de toque, entretanto, isso resulta
impossível: a vida assim como está condenada ao inexorável fim também é animada
por uma contínua luta por existir, mesmo que abdiquemos dela. A morte do
suicida é sua maneira de permanecer vivo.
Stoner é o
último homem cujas bases estão rigidamente centradas na tradição, como é
retomado na única homenagem pública que recebe do seu departamento. Esse evento
é pura encenação porque se coloca como celebração do fim de uma carreira contra
o qual Stoner relutou. O preço de desumanidade alto demais para se assistir às
claras de um grupo de acadêmicos é encarado por ele, entretanto, como certa altivez.
Curiosamente,
este homem da tradição guarda um espírito variavelmente novo, seja porque não
queira que nada o retire do mundo que silenciosa e continuamente forja para si para
que outros, sem motivos aparentes, venham e derrubem-no, seja porque desde
sempre aprendeu a compreender que cada um é responsável pelo seu destino, mesmo
que incapaz de determiná-lo ou de fazê-lo à sua maneira.
Sobre a
primeira compreensão, vale recortar a persistência de William Stoner por um
teto todo seu: a satisfação com que modela seu escritório, a falsa gratificação
dada por Edith para convencê-lo a aceitar o alto empréstimo que se vê obrigado
a honrar com o sogro – neste espaço repousa por algum tempo entre seus livros e
no contato com a filha; depois, o reduto é profanado pela própria companheira
que encontra uma maneira de separar pai e filha e transforma o lugar em oficina
para os exercícios fracassados dela com a escultura; depois, a possibilidade
de um mundo próprio se refaz no apêndice frio ou excessivamente iluminado
designado por Edith, para outra vez, ela própria levá-lo à ruína; mais tarde, o
único envolvimento verdadeiramente amoroso e profícuo com a aluna Katherine Driscoll,
acabado pelas intervenções do arquirrival acadêmico Lomax. Essa contínua porfia
faz de Stoner um Sísifo e uma leitura muito própria sobre os fluxos do que é
existir: o movimento contínuo em procura pela estabilidade.
Outras duas
situações, que reafirmam, agora a condição taciturna dessa personagem, se mostra
quando a filha decide não ir estudar fora de Columbia conforme tinha planejado
o pai desde o nascimento dela; a decisão de Grace integralmente motivada pelas
chantagens da mãe a conduz para uma vida ainda mais infeliz que a dos seus
pais: uma gravidez precoce, notícia recebida por Stoner com a compreensão sobre
a inevitabilidade do destino, o casamento por gosto e imposição outra vez de
Edith, a viuvez repentina com a morte do companheiro na Segunda Guerra. As
coisas vistas de perto podem parecer que com a força indelével do tempo repousa
na mesma proporção uma força trágica. Mas não é assim. John Williams tem a
medida certa dos limites e apenas demonstra a incompatibilidade entre o mundo
vivido e o idealizado, ainda que, no fim desse percurso de Stoner repouse fora
da consciência da personagem uma perfeita ordem. Dizemos isso, porque, no leito
de morte, enquanto se vê entre a força de continuar e os afluxos de Caronte,
assim nos diz o narrador, elaborando uma perfeita síntese sobre a vida de Stoner:
“E quisera
ser professor, e se tornara um. Mas sabia, sempre soubera, que na maior parte
de sua vida tinha sido um professor medíocre. Sonhara com uma espécie de
integridade, uma espécie de pureza imaculada, mas encontrara a banalidade e a
força destrutiva da superficialidade. Aspirara à sabedoria e, no fim de longos
anos, encontrara a ignorância. E o que mais?, ele pensou. O que mais?”
O excerto
também nos apresenta uma visão desencantada do mundo. Esse desencanto que vamos
construindo desde quando perdemos as primeiras inocências da vida. Sim, o mundo
é o grande peso que Stoner carrega; é por isso que não compreende o encanto
patriota dos seus colegas de faculdade quando da entrada dos Estados Unidos na
Primeira Guerra Mundial, e permanecerá sem compreender a razão dos espíritos
nacionalistas que, mesmo sabendo das consequências de um conflito bélico, outra
vez embarcam afoitos para perecerem como força e barreira no front. A constatação,
possivelmente a mais fatal desse romance, pode ser oferecida por através dos
versos de “Os ombros suportam o mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado
algumas décadas antes do romance de John Williams: “Teus ombros suportam o
mundo / e ele não pesa mais que a mão de uma criança. / As guerras, as fomes,
as discussões dentro dos edifícios / provam apenas que a vida prossegue / e nem
todos se libertaram ainda.”
A grande
transição que este romance testemunha a partir de várias outras dicotomias
evidenciadas acima – campo-cidade, técnica-letras, juventude-maturidade, ideal-real
– reside entre um mundo centrado na razão emancipadora e outro em que a razão
se oferece como justificação do que há de pior no homem: o remorso, a
mediocridade, a supressão da própria razão enquanto luz, e através dela os
levantes e justificações do escuso. Stoner registra a longa solidão do
homem continuamente apegado aos cabelos da luz – o leitor entenderá isso depois
de atravessar toda a vida de William Stoner e encontrá-lo entre a vista dos jovens
que atravessam suavemente seu jardim no fim de uma tarde verão e o peso do azul
escuro do céu que não tardará desabar sobre ele e sobre todos nós.
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