Segredos e sementes: O olho mais azul, de Toni Morrison
Por Guilherme
Mazzafera
“onde as
crianças brincam existe um segredo enterrado”
(Walter
Benjamin, “Chichleuchlauchra: Sobre uma cartilha”)
O primeiro
romance de Toni Morrison, O olho mais azul (1970), relançado recentemente pela
Companhia das Letras em tradução de Manoel Paulo Ferreira, debruça-se em sua
própria concepção sobre um problema dificultoso: como uma escritora negra pode
falar de pessoas e assuntos negros valendo-se de uma forma concebida para
adequar-se ao indivíduo branco, burguês, livre tanto na esfera da produção (o
romancista) quanto na de representação (os personagens)?
Em face de
tal pergunta, recorramos ao didático Marxismo e crítica literária, em que Terry
Eagleton fornece uma importante observação sobre o imbricamento profuso entre
forma literária e ideologia:
“Ao selecionar
uma forma, portanto, o escritor descobre que sua escolha já está limitada
ideologicamente. Ele pode combinar e transmutar as formas disponíveis em uma
tradição literária, mas essas formas, assim como suas permutações, carregam uma
importância ideológica em si mesmas. As linguagens e as técnicas que um
escritor tem à mão já estão saturadas de certos modos ideológicos de percepção,
certas maneiras codificadas de interpretar a realidade; e o grau em que ele
pode modificar ou recriar essas linguagens não depende apenas do seu gênio
pessoal. Depende da ‘ideologia’, em um determinado momento histórico, ser tal
que essas linguagens devam e possam ser alteradas”.
Diante de
tal saturação não há respostas simples, mas o que Morrison parece intentar é a
subversão da forma tradicional do romance e, em certo sentido, da relação dos
personagens com cultura branca de massa em geral, mostrando como ideologias
brancas impingem fortemente sobre as subjetividade dos negros, promovendo
infelicidade e exclusão.
O livro
apresenta duas vozes narrativas. A primeira é Claudia, uma mulher negra madura
que rememora sua infância e nos conta a história de Pecola Breedlove, uma
garota cujo desejo de possuir olhos azuis é também sua sina: redenção almejada
espoliada pela realização. Claudia e Pecola compõem um par antitético em
relação à cultura branca de massa: enquanto Pecola não mede esforços para nela
se infiltrar, Claudia a confronta, almejando chegar às raízes da dominação
cultural que lhe é imposta. A composição de suas identidades é formada por
produtos da indústria cultural, sobretudo bonecas, mas, no caso de Claudia, ela
recusa seus valores ao destrinchar as Shirley Temple que ganhou no Natal com
“violência desinteressada”, sentimento que é redirecionado para garotas brancas
ao seu redor: “Mas o desmembramento de bonecas não era o verdadeiro horror. O
que realmente aterrorizava era a transferência dos mesmos impulsos para
garotinhas brancas. A indiferença com que eu podia trucidá-las era abalada
apenas por minha vontade de fazer isso.” No entanto, ao ganhar consciência de
quão repulsivo tal tipo de violência é, Claudia aquiesce, aprendendo a se “deliciar
com limpeza, sabendo, mesmo enquanto aprendia, que mudar foi adaptar sem
melhorar” A segunda voz narrativa, não necessariamente individualizada, narra
as partes introduzidas por excertos de uma cartilha escolar (a que
retornaremos), narração tendente à onisciência, abrangendo um escopo de
experiência que em muito supera o de Claudia.
Em seu
belíssimo posfácio, a autora rememora que por volta de 1965, quando o texto
começou a ganhar forma de livro, “A afirmação da beleza racial não foi uma
reação contra a autocrítica trocista e bem-humorada de fraquezas culturais/raciais,
comuns em todos os grupos, mas contra a nociva internalização de pressupostos
de inferioridade imutável, originados de um olhar externo”. A prevalência deste
olhar externo ao ditar as regras do jogo, no entanto, não poderia ser reduzido
a mera inversão de perspectiva, uma demonização a priori do inimigo: “eu não
queria desumanizar as personagens que destruíram Pecola e contribuíram para o
seu colapso.” Mais do que isso, a autora buscou compor uma história de
violência e violação a partir da perspectiva das vítimas, consciente de que
Pecola “não possui o vocabulário para compreender a violência ou o seu
contexto”, de modo que caberia às amigas “ingênuas e vulneráveis”, revisitando
o passado já adultas, “preencher os silêncios com reflexões sobre sua própria
vida”.
Ao almejar
desmascarar a naturalidade enraizada do preconceito, o livro estrutura-se pela
passagem das estações, do outono ao verão, e pelo desequilíbrio telúrico que
marca o ano crucial de 1941, da entrada dos EUA na Segunda Guerra: “Cá entre
nós, não houve cravos-de-defunto no outono de 1941.” A noção de um segredo
compartilhado, que engaja o leitor de imediato em seu entreouvir, foi crucial
para a fatura do romance, que ansiava, segundo Morrison, por “expor
publicamente uma confidência privada”. Pelo misto de segredo e equivocação do
natural, Morrison parece evocar aqui o topos da disruption of nature ou Nature
déchaînée que, vislumbrada em portentosos augúrios, aponta para problemas
humanos e políticos do presente, como em algumas tragédias de Shakespeare, A
partir das observações de Caroline Spurgeon em seu estudo A imagística de
Shakespeare sobre os núcleos imagéticos de Macbeth, Hamlet e Otelo, pode-se
sugerir uma espécie de vetor unitário entre essas três peças pela centralidade
da ideia da corrupção do natural, que instaura o âmbito do ‘unnatural’ que, por
sua vez, ecoa como crítica ao presente político corrompido, seja pelos
regicídios das duas primeiras peças ou na percepção estrangeirizadora que recai
sobre Otelo e seu relacionamento com Desdêmona. Deslocando o foco da tragédia
de altos reis e doges para o presente amargurado dos negros em face de uma
cultura de exclusão ou, na melhor das hipóteses, assimilação sem integração,
Morrison aponta, também, para uma peculiaridade sintomática, a consciência
enraizada da feiura que aparta seus protagonistas, a família Breedlove, de
outras famílias pobres e negras:
“Os
Breedlove não moravam na parte da frente de uma loja por estarem passando por
dificuldades temporárias, adaptando-se aos cortes da fábrica. Moravam ali por
serem pobres e negros, e ali permaneciam porque se achavam feios. Embora sua
pobreza fosse tradicional e embrutecedora, não era exclusiva. Mas sua feiura
era exclusiva. Ninguém teria conseguido convencê-los de que não eram implacável
e agressivamente feios.”
Para a
autora, uma das questões chave do livro no que se refere ao enfoque era o de
investigar os meandros da personagem sem esmagá-la, evitando “levar o leitor ao
consolo de sentir pena dela” e, assim, evitar “perguntas sobre o esmagamento”. Embora
não constitua propriamente um livro-denúncia, fica evidente ao leitor que a
infelicidade partilhada por Claudia e Pecola refuga a tragédia, sendo antes
derivada de uma organização sócio-histórica específica e aparentemente sem
saída. De modo análogo, segundo Linden Peach, a vida e os feitos de Cholly
Breedlove, pai de Pecola e do filho desta, são orquestrados antes como
“resultado das experiências desumanas impostas sobre os negros pelos brancos” do
que causado por comportamento imoral ou uma natureza inerentemente má. De modo
mais amplo, o romance investiga o fracasso da política de identidades
norte-americana dos anos 1960 e como – o como é essencial e mais articulável
que o porquê, como se diz no pórtico do livro – as contradições e injustiças
referentes aos negros e sua integração na sociedade são suavizadas e resumidas
nos termos da mercadoria, como propõe Susan Willis:
“[…] na
cultura de massa muitas das contradições sociais do capitalismo afiguram-nos como se aquelas mesmas contradições tivessem
sido resolvidas. O objeto da cultura de massa articula a contradição social e
sua resolução imaginária na forma da mercadoria.”
E a forma da
mercadoria, naturalmente, equivale à recorrência do mesmo ou, de modo mais
preciso, à negação da diferença.
O livro,
portanto, escava a integração superficial dos negros no tecido social para
inquirir como ela mascara a impossibilidade de seu pertencimento completo a uma
cultura que os acolhe unicamente como clientes e consumidores de valores
culturais hegemônicos, e jamais como produtores de ruídos. Em outras palavras,
de Gurleen Grewal, “Um aspecto notável do romance é a primazia de sua
identidade textual como contradição da cultura dominante”. O romance, assim,
converte-se em produto cultural dissidente ele mesmo, quase um antirromance de
formação que leva a cabo o “desmantelamento da norma hegemônica de identidade adquirida
pelo mimetismo” (ainda Grewal) em diferentes níveis, desde a apropriação
criativa da própria forma do romance até a desconstrução de uma ferramenta
básica de alfabetização entre os brancos, a cartilha de Dick e Jane que
antecede o prefácio e encabeça os capítulos ou seções narradas pela segunda
voz.
A cartilha é
disposta em três versões: a primeira claramente legível; a segunda, com menor
espaço entre as letras, mas ainda legível; a terceira, com todas as letras e
palavras em linha, como se fossem uma única e gigantesca palavra. Em termos
visuais, a primeira sobressai-se por sua legibilidade, mas a terceira indica
que o que parecia de todo estável e relaxado pode tornar-se tenso, exigindo um
novo ângulo de aproximação aos mesmos signos e vocábulos. Em certo sentido, a
terceira versão parece sugerir que a cultura é ofertada aos negros sem as
condições necessárias para que possam se assenhorar dela ou mesmo contestá-la.
De modo mais incisivo, a cartilha descreve uma família corriqueira e ideal, com
Mãe, Pai, filhos (Dick e Jane) e uma Casa, enquanto a narrativa nos conta de
uma garota cujo pai é um beberrão que expulsou a ela e sua mãe de casa, que
briga constantemente com a esposa e estuprou a própria filha. O desarranjo
entre o instrumento democrático de cultura e a experiência individual
vincadamente social não poderia ser mais evidente.
Um dos
temas centrais do romance parece ser a inadequação da cultura e voz branca em ditar
os contornos da vida afro-americana, tanto em ternos estéticos (os olhos azuis,
as Shirley Temple e, no limite, a própria forma do romance) como educacionais
(a cartilha). No caso de Pecola, o anseio de superar sua feiura (social) ao
adquirir olhos azuis conduz a uma assimilação completa que não apenas é incapaz
de oferecer-lhe uma identidade como acaba por inviabilizar a obtenção de uma:
“o estrago foi completo”. Claudia, por sua vez, dispõe de uma consciência
emergente da situação, o que, no entanto, não lhe assegura liberdade, posto que
esta consciência seria preço demasiado caro a pagar. Apenas Cholly, que nada
mais tem a perder, pode ser efetivamente e perigosamente livre, sendo igualmente
o único capaz de verdadeiramente amar Pecola em toda a sua esqualidez. Ao
estudar o impacto de ideologias brancas sobre a comunidade negra, Toni
Morrison, já em seu primeiro livro, foi capaz de compor um romance que não se
curva ante as convenções nem faz ajustes para adequar-se a uma pré-forma. Consciente
de que a linguagem deve alçar-se ao equilíbrio necessário entre o desprezo e
seu esfacelamento crítico, a experiência de Pecola, Claudia, suas famílias e
amigas não é reduzida a romance de tese; pelo contrário, apropriando-se
criativamente de uma cartilha escolar, recompondo-a por seu desmanche à medida
que a história avança, e orquestrando as descobertas progressivas do olhar
infantil em face de um mundo adulto de exclusão e ilegibilidade, Morrison faz
ressoar a percuciente observação de Walter Benjamin ao debruçar-se sobre uma
cartilha alemã de 1930: “aprender a ler é, em boa parte, exatamente aprender a
adivinhar”.
Referências:
BENJAMIN,
Walter. “Chichleuchlauchra: Sobre uma cartilha” In: Reflexões sobre a criança,
o brinquedo e a educação. Tradução, apresentação e notas de Marcus Vinícius
MAzzari. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2017, p. 139-146.
EAGLETON,
Terry. Marxismo e crítica literária. Tradução de Matheus Correa. São Paulo:
Editora UNESP, 2011.
GREWAL,
Gurleen. “The Decolonizing Vision: The Bluest Eye”. In: Circles of Sorrow, Lines
of Struggle – The Novels of Toni Morrison. Louisiana State University Press, 2000.
PEACH,
Linden. Modern Novelists – Toni Morrison. New York, St. Martin’s Press, 2000.
SPURGEON,
Caroline. A imagística de Shakespeare. Tradução de Barbara Heliodora. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
WILLIS,
Susan. “I want the black one – Is there a place for Afro-American culture in
commodity culture?” In: A primer for daily life. London and New York,
Routledge, 1991.
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