Seberg contra todos, de Benedict Andrews
Por Pablo
Augusto-Silva
Não sei se o
crítico de cinema de nossa época considerará Seberg contra todos¹ (2020) um
grande filme, menos ainda quanto à atuação da atriz protagonista, a americana Kristen
Stewart (1990-), porque li algumas críticas afirmando que, até hoje, ela só fez
filmes que ainda não exigiram muito de seu muito talento. Mas resolvi compartilhar contigo o que penso
sobre a obra porque minha intuição diz que é um daqueles filmes com potencial de
ser agraciado pela justiça do deus tempo, que se consagram com o passar dos
anos, além de discordar das opiniões negativas do trabalho dela; neste filme é
possível ver uma artista séria, processando sua maturidade cênica e dando o
melhor de si na construção da personagem. Eis a sinopse oficial:
"Paris,
1968. A atriz Jean Seberg (Kristen Stewart) está no auge de sua popularidade,
graças ao sucesso de vários filmes rodados na França. Ao voltar para os EUA, ela
logo se envolve com o ativista de direitos civis Hakim Jamal (Anthony Mackie),
que conheceu ainda durante o voo. Jean logo se posiciona a favor do Partido dos
Panteras Negras e passa a ser uma das financiadoras do movimento, ao mesmo
tempo em que mantém um caso com Hakim. Tal situação é acompanhada de perto pelo
FBI, que mantinha um programa de vigilância para romper e expor os Panteras
Negras. Dentre os agentes designados para espioná-la está Jack Solomon (Jack
O‘Connell), que começa a se rebelar quando o FBI inicia um plano de difamação
contra a atriz." (Veja o trailer aqui)
Embora um
crítico severo em suas exigências observe que a obra não fuja de alguns clichês
de filmes biográficos, o que ele tem de relevante, para além dum estilo muito
mais próximo do romance policial (episódios de uma vida) do que com um "drama
épico" tratando da vida completa de um indivíduo, é o de revelar práticas nada
oficiais de instituições como o FBI e suas similares ao redor do mundo; é claro
que há inúmeros filmes (e séries) reveladores dessas práticas, mas a relevância
está em tratar o tema de forma crua ao invés do que acontece em filmes de
tribunal onde o clichê impera nas cenas finais: o erro é sempre de tal ou qual indivíduo
– do "bad cop" que, encontrando falhas no sistema, abusa da perfeição
de suas instituições – e não do sistema social que, por ser imperfeito, há de produzir
instituições imperfeitas; essa crueza de tratamento é relevante para a nossa
época dominada por fake-news. Instituições policiais como o FBI cuja função
oficial é investigar suspeitos de crimes complexos como corrupção tendem, em
momentos conturbados politicamente, à investigação de 'pessoas suspeitas'
segundo o senso comum da época – em especial pessoas públicas como artistas,
ativistas, escritores, intelectuais, cientistas e políticos dissidentes. Na
prática porém, acabam tendo outra função que a maioria de nós, leitores e
telespectadores leigos, confundimos ser apenas coisa da imprensa: a difamação. É
disso que o filme trata: a infame perseguição a Jean Seberg (1938-1979), paradoxalmente
famosa devido ao "sucesso" do "fracasso" de seu primeiro filme
em 1957, Santa Joana (Saint Joan) dirigido por Otto Preminger (1905-1980)², e
prestigiada após virar musa da Nouvelle Vague
ao protagonizar Acossado (À bout de souffle, 1960) dirigido por J-L.
Godard, além de trabalhar com diretores como Jean Valére, Claude Chabrol e
François Truffaut. Ela foi uma das vítimas "em nome da segurança
nacional" da Agência Americana de Contra-Inteligência (COINTELPRO) ao
ponto de adoecer, ficar paranoide e perder uma filha devido ao estresse de toda
a perseguição e exposição infame que sofreu por parte dessa agência policial.
Quando o
assunto trata de tabus da vida privada de pessoas públicas, envolvidas, por
exemplo, nalgum tipo de ilegalidade ou frequentadora de lugares de má-fama
(bordéis, sauna gay, sexo com travestis, bairros malditos...), noticiadas na
imprensa ou em sites de fofoca, raramente nos perguntamos sobre as fontes dos
jornalistas que as publicam e tomamos como certo de que eles 'investigaram',
'pesquisaram', 'correram atrás' antes de expô-los. Isso, no entanto, é exceção,
e só vale para as grandes celebridades de cada época – como a rainha popstar, o
guru, o melhor jogador do mundo, a Übermodel ou a pessoa que está a exercer o principal
cargo político no momento. É ingenuidade acharmos que a imprensa há de ter um
gasto excessivo de pessoal para acompanhar cotidianamente a vida de ex-celebridades
ou ex-poderosos. Nosso senso comum ainda está muito arraigado em personagens
como Cidadão Kane ou Roberto Marinho, magnatas poderosos da grande imprensa que
'descobrem' ou inventam tudo o que quiserem a seu bel-prazer... O que afirmo é
que se tais ex-celebridades/poderosos aparecerem nas páginas policiais ou de
fofocas, cujo conteúdo revele 'imoralidades' que só poderiam ser conhecidas por
quem as praticou, é altamente provável que a fonte de tais jornalistas venha de
órgãos policiais. A título de exemplo: quase todos os vazamentos da Lavajato
não foram obras de pesquisas incansáveis de repórteres eficientes, senão de
vazamentos condescendentes para a imprensa por parte da polícia federal e de
membros do Ministério Público que, muito embora faça parte do judiciário, os
hábitos profissionais dos promotores os colocam mais próximos dos 'tiras'
(investigadores e delegados) do que dos magistrados (juízes e desembargadores).
Nisso, o
filme é revelador ao mostrar como o FBI – ao vazar o caso sexual (fato) de Jean
Seberg, uma mulher casada!, com o ativista do Black Panther Party Hakim Jamal
(1931-1973) para a imprensa e mentir que ela estava grávida dele (fake) – é um
dos primeiros propagadores, quiçá o inventor, das atuais fake-news, quando o termo
ainda nem existia o que, aliás, não é novidade, já que o comportamento costuma
anteceder a fala (a nomeação das coisas) e não o contrário. No filme a "tática
de neutralização", como o FBI a chamava, é manifesta: a atriz, que está
sendo grampeada numa conversa com o agora ex-amante, diz que ficou grávida no
México (de um jovem mexicano e não de seu marido francês) quando lá esteve a
trabalho. Os agentes do FBI, sabendo que os dois não eram mais amantes (mas
continuavam colegas devido às afinidades políticas) e que ela está grávida de
um mexicano, assim mesmo vaza uma informação distorcida para a imprensa (para a
revista Newsweek) com o mero intuito de difamá-la e, com isso, dissuadi-la de
sua militância em prol dos direitos civis e contra a guerra do Vietnã. Gravidez
fruto de sexo inter-racial no puritanismo americano era algo impensável à época:
– "Os americanos não gostam disso, aqui não é a França!", diz a certa
altura um dos agentes do FBI (o clichê do bad cop) que vaza a 'notícia' para a
imprensa.
"Neutralizar"
as celebridades perigosas, ou as pessoas suspeitas que possam por em xeque o "american
way of life" e a democracia americana, era o termo politicamente correto
que o FBI usava para seguir, grampear, fotografar, alfim, montar dossiês contra
celebridades e vazá-los para a imprensa com a intenção de destruir suas
reputações, algo que só veio a público em 1971 quando ativistas invadiram sua
sede e expuseram o que ali se fazia à margem da lei... Hoje sabemos que tais
táticas foram regras, e não exceção, durante os cerca de 40 anos em que o FBI
foi dirigido pelo republicano John Edgar Hoover (entre 1933 e 1972). A pergunta
de nossa época, exagerada para alguns e irrelevante para outros, é: se nos anos
1960 já se tinha todo um repertório para difamações, já imaginaram o que tais
órgãos, em quaisquer países, podem produzir em 2020 contra seus cidadãos devido
aos avanços da tecnologia digital, da inteligência artificial, da estatística
informacional (big data) e da psicologia comportamental?
A obra faz
jus ao bom caráter e à integridade moral tanto do coadjuvante quanto da
protagonista.
O primeiro, Jack
Solomon o agente do FBI (clichê do good cop) responsável por perseguir a atriz e
que, se inicialmente vê sua tarefa apenas como mais um trabalho, ao percebê-la desintegrando-se
emocional e psiquicamente por causa das táticas policialescas, aos poucos, socializando-se
como infiltrado e ouvindo os discursos do ativista Hakim Jamal, vai tomando consciência (moral e não política)
de que os métodos de seu patrão – neutralizar celebridades e militantes pela
difamação – não passam de sordidezes incompatíveis
com os princípios e regras da Constituição americana. Contudo uma ressalva: até
onde o comportamento do agente Jack Solomon é fato histórico o filme não deixa
claro porquanto sabemos que a partir de 1975 a Procuradoria-Geral obrigou o FBI
a notificar todos os 'suspeitos' por ele investigados, revelando tudo o que
havia produzido sobre cada um, de fotos íntimas a conversas públicas. (O
historiador Curtis Austin³, por exemplo, descobriu que 73% dos artigos publicados
na imprensa sobre o Black Panther Party, foram escritos por pessoas recrutadas
pelo FBI.) O que importa porém é o alerta de que são tais táticas que
verdadeiramente põem em xeque o "american way of life" ao tentar
coibir ativismos e militâncias, essenciais ao bom funcionamento de qualquer
regime democrático, independentemente do espectro político em que se atue ou milite.
E a segunda,
a atriz Jean Seberg, daquelas raras pessoas com princípios sólidos e com uma
visão pessoal do mundo e das coisas, que os abraça e não se exime. Ainda mais
ela que, na linguagem da militância progressista atual, tinha todos os
privilégios, mas nunca se sentiu confortável sob os estereótipos que lhe
impunham: a good girl, "princesinha" da família, da mídia, das revistas
femininas... Lançando um olhar retrospectivo, essa jovem de classe média de uma
pequena cidade do meio oeste americano (Marshalltown, Iowa), podia ser tudo,
menos superficial: ganhava a vida representando, mas não suportava viver
segundo as aparências. Sabemos porém, pelo estudo da história, o alto preço que
pessoas autênticas e românticas como ela pagam por não viverem como a sociedade
exige. É um filme que, tendo a infâmia como mote, revela-nos as consequências
que o indivíduo sofre quando se defronta com dilemas ético-morais: determinadas
escolhas que, obrigado pela situação de seu tempo, deve tomar e até onde seus valores,
os mais pessoais, permitem-no ir.
Vale o
ingresso, pela fruição e pelo conhecimento das conturbações políticas da época
(1968-1971) quando Maio/68, a luta pelos direitos civis e a guerra do Vietnã
eram os temas sociais mais urgentes das conversas diárias, como a pandemia da Covid-19
o é no momento em que essas linhas são escritas.
P. S. Abaixo:
foto da atriz Jean Seberg no filme Acossado (1960) e pôster do filme com a
atriz Kristen Stewart.
Notas
¹ Seberg contra todos. Direção: Benedict Andrews. Roteiro: Joe Shrapnel e Anna
Waterhouse. Elenco: Kristen Stewart, Jack O'Connell, Anthony Mackie, Margaret
Qualley, Zazie Beetz. Produção: Metalwork Pictures. Biografia, Drama. EUA, 2020,
103 min.
² Cf. o excelente artigo de Günther Natusch Vieira: "Santa Joana de Otto Preminger", Aedos,
v. 3, n. 7, fev. 2011.
³ Curtis
Austin: Panteras Negras: mentiras inofensivas, TEDxOhioStateUniversity,
mar. 2016.
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