Retrato do escritor como um amigo
Por Juan
Cruz
Natalia Ginzburg. Foto: Marka / Reprodução |
Existem
livros que alguém adota como se fossem amigos órfãos. Eles nascem, crescem, se
reproduzem, criam outros livros ou outras referências e, assim, tornam-se novos
para quem os lê. Mas quando você os descobre, eles são livros singulares que
não precisam de nada de você, saem das estante e alcançam as mãos de pessoas
que, provavelmente, os amarão da mesma maneira que você, ou até mais, e farão
uma melhor leitura, distribuirão uma maior alegria, pois ler é alegrar-se, como
quando você se sente feliz com o filho (ou o neto) que, inesperadamente, se
mostrou sábio.
Nessa adoção
do livro, é claro, há uma apropriação indevida, à qual incorro muitas vezes. De
uma maneira muito particular, com esses dois cuja adoção me levou a fazer
propaganda. São Flores en las grietas¹, de Richard Ford, e As pequenas
virtudes, de Natalia Ginzburg. Os dois livros têm textos que dão as mãos e
é isso o que realmente me levou a me entregar a eles, apreciá-los e
recomendá-los. São retratos verdadeiramente excepcionais, cada um estranhamente
bonito, de dois grandes escritores do século XX. Ford retrata a alma de Raymond
Carver e Ginzburg chora, com palavras de admirável concisão, a seu amigo Cesare
Pavese. Nesse caso, apenas a emoção elíptica de Natalia Ginzburg leva você à
identidade de Pavese; nem a cidade em que ele morava (Turim) nem seu nome
próprio aparecem nas páginas do texto, que ela, também elipticamente, intitulou
Retrato de um amigo.
Ambos os
livros se estruturam de outros textos sobre arte, cidades, outras literaturas,
mas esses dois textos brilham como pequenos quadros em um enorme museu de obras
desiguais (aquela luz de Luis Fernández, representando uma única vela, em um
espaço minúsculo!), mas devidas à mesma mão mestra. Flores en las grietas,
por exemplo, responde à escrita exigente, absorvente e rápida, como de um
jornalista em ação, de Richard Ford. Onde quer que você olhe para o livro,
sempre existe, para prolongar sua própria metáfora, uma flor em qualquer
rachadura. Por exemplo, para refrescar a memória de meus inúmeros destaques,
nesta manhã de confinamento já muito longo, encontrei essa crônica casual, como
se fosse a presente fresta: “Muitas vezes, um mau momento no mundo é um bom
momento para a arte.” Ele diz isso em um contexto que dá sentido ao seu livro,
como um espaço para várias leituras. Esse texto é intitulado “O que escrevemos,
por que escrevemos e quem se importa”. Nele, Ford viaja por suas próprias
leituras, agradáveis ou desagradáveis (valeria a pena sublinhar, em minha
opinião, seu desdém por Bret Easton Ellis, cujo American Psycho merece
esse julgamento: “Um livro que as pessoas queriam mais condenar e eliminar do
que ler, mas que desapareceu rapidamente não porque foi recolhido, mas porque a
cultura finalmente o tratou como um livro e não como um crime de guerra ”).
Onde o livro
chega a esse lugar de flores, sem outra rachadura que a misteriosa razão pela
qual, em um determinado momento, os dois se desentenderam, está em sua longa
descrição de seus anos de fraternidade com Raymond Carver, “O bom Raymond”,
como ele o chama desde o título. Carver entrou na história por causa da escrita
fragmentada, como se fosse um vômito claro-escuro que se referia a um homem que
precisava ser tratado com pinças. “O encantava”, diz Ford, ao se recordar que por
essa “época gasta”, não é esse Carver que sempre prevaleceu sobre sua amizade.
Os dois se
conheceram quando a sorte de bom Raymond estava indo “de não
muito boa para muito boa”, mas ambas sortes fizeram nos anos seguintes (desde
1977). Em seus escritos, havia sempre “uma densa sensação do nefasto” e,
talvez, se não houvesse retratos assim, isso seria, para aqueles de nós que
apenas o lemos, o aroma desfeito tanto de sua vida e como de sua literatura.
Foi, diz Ford, “um amigo generoso” que (um grande gesto no ofício dos dois) o
recomendou a editores e amigos. “Nunca (...) ouvi dele uma palavra de inveja
pela boa sorte alheia, depreciar a glória de alguém ou trair os esforços
sinceros seus ou de outros”. O Bom Raymond.
Por memórias
como essa, recomendei e dei esse livro muitas vezes desde que o li. E algo
semelhante, mas ainda mais profundo, como se fosse uma carícia sombria de um
coração dolorido, dei e recomendei esse belíssimo As pequenas virtudes.
Para chegar a essa flor civil, tão essencial, de tanta ternura sem embaraço,
você deve ir para a página 23 e parar². Mas parar de verdade, como se você tivesse
chegado em uma cidade incomum, cheia de lembranças luminosas incomuns sobre uma
fronte sombria, diante as pegadas de um homem que cometeu suicídio. A jornada
de Natalia Ginzburg começa assim: "A cidade que era amada por nosso amigo continua
a mesma”. É a leitura que segue a que explica por que aquele homem, solitário,
sóbrio, modesto, generoso, desinteressado, desenhou uma linha no chão de sua
cidade para o lugar, um hotel, onde “queria morrer como um estranho”. Ela
imaginou sua morte, ela até a descreveu.
Ler agora esse
texto Natalia Ginzburg é como dar um abraço a todos os amigos que perdemos ao
longo do caminho e em quem vimos, talvez, o ar deixado para trás por aquele
homem descrito por seu amigo pelo silêncio ferido do infortúnio. O Bom
Cesare.
Notas da
tradução
¹ Esta uma
coletânea de ensaios publicada na Espanha pela editora Anagrama. Recolhe textos
esparsos de Richard Ford de matriz memorialística e ensaística.
² A
referência aqui é a edição de As pequenas virtudes publicada pela
Companhia das Letras (2020); a tradução do excerto a seguir é também a desta
edição, realizada por Maurício Santana Dias.
* Este texto é uma tradução de “Retrato
del escritor como un amigo”, publicado aqui, no jornal El País.
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