Para tempos de isolamento: Daniel Faria
Por Paula Luersen
Daniel Faria. Foto: Augusto Baptista |
Repito que
vivo enclausurado na agilidade de um animal nascido
Correndo ao
lado dele, correndo para ele – era assim
Que eu
queria que fosse a linguagem veloz:
Uma casa
para a infância com trepadeiras
Para que as palavras
ficassem como frutos no alto.
Repito a
corrida na memória quando estou parado
Penso
velozmente que o amor, como Dante disse, é um estado
De
locomoção. É um motor. E fico a trabalhar no mecanismo secreto
Do amor.
Sei que
estou em viagem na palavra que se move.
Repito o
trajecto para ver o poema de novo – era assim
Que eu
queria que fosse a linguagem de uma coisa amada
Correndo ao
meu lado, correndo para mim no mecanismo violento
Do amor. Era
nele que eu queria a casa com trepadeiras
Onde as
palavras ficassem silenciosas e altas como um pátio interior
*
Os dias de
isolamento me trouxeram novamente os poemas de Daniel Faria. Em especial, o
título de uma das seções de seu livro de poemas: “Mas basta-me um quadrado de
sossego”. Tenho tentado trabalhar em linhas que formatem esse quadrado.
Desenho-as no meu entorno e organizo seus limites. É preciso fabricar cada
vértice – são quatro, isso leva tempo. Entre tantas distrações, tentar
construir um quadrado de sossego. Sei que é necessário e quero acreditar que
ainda seja possível um lugar para serenar.
Quando trato
desse quadrado, não me refiro a um lugar que tenha o poder de isolar do mundo.
Atravessamos tempos duros em que é preciso estar atento. Ou mais, estar
solidário. Com os olhos voltados aos outros e pensando em como estar para os
outros. Para os mais velhos do que nós, mesmo que à distância. Quem sabe o
quadrado não seja, então, a melhor das imagens. Mas Daniel Faria sugere outras
que, a cada leitura, sabem se iluminar. Podemos pensar, por exemplo, sobre o
mecanismo a que o poeta se refere.
Logo que se anunciou
o tempo de ficar em casa e os dias de isolamento, correram os divulgadores, os
especialistas, os entrevistados a garantir que hoje temos várias alternativas,
meios virtuais, instrumentos práticos para evitar o isolamento social. Eles
estão certos: podemos passar dias inteiros conectados, interagindo,
conversando, trocando áudios, vídeos, notícias. Podemos calar a solidão,
afogada de palavras. O mecanismo aventado pelo poeta, no entanto, se dá por
outros meios. Ele exige quietude e pressupõe pensamento. Ele espera. Há um
motor que espera e sufoca.
“Repito a
corrida na memória quando estou parado / Penso velozmente que o amor, como
Dante disse, é um estado / De locomoção. É um motor. / E fico a trabalhar no
mecanismo secreto / Do amor.”
Interagir
virtualmente traz sua carga de afetos. Sim. Há o amor. Mas a sugestão de Daniel
Faria é pensa-lo como mecanismo secreto. É que “estejamos em viagem na palavra
que se move”. E creio que não são todas as palavras que sabem nos acolher em
seus cantos para nos pôr em viagem. Na verdade, são poucas as palavras que
sabem mover. Amar é mecanismo secreto que nos exige trabalho e tempo. O
trabalho de mover, o tempo para as palavras justas.
Hoje
sentimos falta das palavras justas. Ainda bem que o sentimos. De repente nos
vimos envoltos por uma realidade de palavras polêmicas. Palavras quaisquer, que
só sabem transtornar. Lembremos que a destruição é igualmente um mecanismo, que
vem sendo afirmado, praticado, insuflado. Não acredito que ele venha sendo
pensado, porque nele a palavra não pensa. A palavra não ama. Não move.
Para além da
brutalidade e da negação dos governos, podemos estar presos e reclusos, mas
ainda em locomoção. Podemos trabalhar no mecanismo secreto. Escolhendo estar a
sós para proteger os outros. Pensando em quem são os outros e ampliando a nossa
vista. Buscando um olhar mais amplo, no qual cada vida conte. Trabalhemos
secretamente, pois há força em amar baixinho.
“Repito que
vivo enclausurado na agilidade de um animal nascido / Correndo ao lado dele,
correndo para ele – era assim / Que eu queria que fosse a linguagem veloz: /
Uma casa para a infância com trepadeiras / Para que as palavras ficassem como
frutos no alto.”
Busquemos
nós, portanto, repercutir palavras justas. Pensar aquelas palavras que possam
ser como frutos no alto, conforme diz o poeta. Dispomos agora de tempo para
estar à varanda e contemplar tais palavras, à altura da nossas cabeças. Temos
tempo de deixar o pensamento silencioso e vê-lo maturar.
O amor é mecanismo
secreto que exige palavras justas, pensamento, dedicação. Estar para os outros,
verdadeiramente. Criar, secretamente, estados de locomoção.
Penso que
nunca foi tão importante sabermos para que mecanismo estamos dedicando o nosso
trabalho de mover.
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