O templo, de Stephen Spender
Por Pedro
Fernandes
A obra de
Stephen Spender é longa e se inscreve entre a dos principais nomes da poesia de
língua inglesa de meados do século XIX: T. S. Eliot, quem o descobriu; W. H.
Auden, de quem foi amigo muito próximo; Ted Hughes, Joseph Brodsky, entre outros.
Afora as relações de amizade e de profissão, sua obra poética é reconhecida por
figuras de grande relevo na literatura europeia dentro e fora de seu tempo.
Assim, que os leitores brasileiros tenham por referência primeiro sua prosa é
uma daquelas circunstâncias inusitadas mas não raras. O templo, cuja
irretocável e primorosa tradução executada por Raul de Sá Barbosa foi recuperada
nos anos finais da primeira década de 2000 depois de há muito esgotada, é um
dos poucos trabalhos do escritor inglês em ficção. Fora este romance, restam Engaged
in Writing e The Fool and the Princess (novelas), The Backward
Son (romance) e The Burning Cactus (uma coletânea de contos).
O templo foi
escrito entre 1929 e 1932 e só veio a público em 1988. As razões desse intervalo
entre a concepção original do livro e sua publicação podem ser muitas, mas
parece que são sempre justificações para esconder outra causa: seja os rumos
tomados pela rápida ascensão do nazismo na Europa e, sobretudo, a alta censura
sobre a cultura na carola Inglaterra que condenou e destruiu a vida de nomes
como Oscar Wilde e até 1967 exerceu o mando da criminalização contra as
relações homossexuais. Nada disso impede outros argumentos: que o escritor tinha
sua predileção para a poesia; que durante esse tempo se envolveu entre tantas
atividades, dentre elas a crítica, exercida com igual ou mais fervor que a
poesia, ou mesmo seu engajamento político, que o manuscrito resultado de uma
aposta entre amigos ficaria adiado por ser imaturo ou por puro descaso do
escritor em revisitá-lo para trazê-lo à luz.
Mas, qual o
perigo se esconde entre as páginas desse romance que ficou perdido ou
foi vitimado pela autocensura? Não há nada capaz de tolher os olhares mais
sensíveis. Isso, no entanto, não vale em absoluto para o leitor administrado pelas
limitações ideológicas fabricadas pelos horríveis senhores inventores do potentado
da moral e dos bons costumes. A narrativa de O templo oferece um
trânsito radical entre uma sociedade em liberdade e sua entrada na grande treva
dos delírios coletivos que culminaria no horror que foi o nazismo. Logo,
quaisquer semelhanças entre o contexto recuperado pela ficção e a panaceia
brasileira devem ser encaradas muito seriamente; este romance de Stephen
Spender é registro e, simultaneamente, passados tantos anos, o sinal amarelo
para a zona ínfima que nos separa a lucidez da loucura. Sua principal
constatação é que o tempo é irrepetível, mas nós uma variante de contradições.
Enquanto a
Inglaterra censurava seus criadores, a Alemanha se abria como o novo modelo de
sociedade sob o signo da nação moderna e livre a todos. Este universo de
possibilidades está, em parte, na viagem de Stephen Spender à República de
Weimar. Essa viagem se confunde com os propósitos de Paul, o estudante de O
templo que a convite de um amigo casual, Ernst Stockmann, viaja a Hamburgo
para umas férias de verão; essa decisão é motivada para além da curiosidade
pela nova vida dos alemães: há o fim repentino de um platonismo adolescente
pelo amigo Marston, há a curiosidade pela autodescoberta de si e há ainda o
pequeno desafio assumido entre Paul e o amigo William Bradshaw de cada um
escrever um romance: Paul da sua viagem a Hamburgo e William se aparecer a sonhada
oportunidade de deixar Oxford por Berlim.
O que
acompanhamos é simultaneamente a feitura dos diários dessa estadia em Hamburgo,
o nascimento da criatividade literária de Paul, duas situações integradas ao
tecido da narrativa rara e parcelar e os dias do jovem nessa cidade. Como é
recorrente em obras assim estruturadas, há ocasiões em que estas duas linhas
narrativas (isto é, a das notas para o romance e o romance propriamente dito)
se confundem instaurando um diálogo metaficcional. Por mais que se diga da
falta de novidade nesse tratamento ficcional não deixa de chamar a atenção para
um capricho ou engenhosidade do escritor preocupado em estabelecer uma verdade
e uma intimidade do relato. A estrutura do romance se concretiza com uma
segunda parte, agora conduzida apenas por esse narrador onisciente, com o
retorno de Paul a Hamburgo e o reencontro numa cidade mergulhada no inverno com
os mesmos amigos do verão de há três anos. É aqui que se situa mais claramente
a linha acrescentada por Stephen Spender à história sobre os desvarios de um
século devastador.
Sobre essa
infiltração da história no romance vale chamar atenção para três episódios
especificamente: o embaraço causado por Paul entre os pais de Ernst sobre um
avô judeu; a possível perseguição a tiros enfrentada no Báltico do que o amigo
designa como focos de resistência da Primeira Guerra Mundial e que planejam “o
grande despertar da Alemanha, quando ela se erguerá para vingar-se e destruir
seus inimigos”; e a invasão do loft do amigo Joachim por um amigo de seu ex-namorado
que, em nome do partido nazista, destrói tudo o que, na sua opinião, é conspurcado
por judeus. Entre os dois primeiros episódios passam-se três anos, mas, os
calores do antissemitismo, revela-nos o romance, eram sentidos na Alemanha de
meados dessa década: “Sua família é inglesa. Aqui na Alemanha, são considerados
judeus os da Europa Oriental – refugiados lituanos e poloneses –, não alemães
aqui radicados há muitos e muitos anos. Meu marido emprega inúmeros judeus
verdadeiros na sua firma. Alguns são muito inteligentes. E alguns são muito boa
gente. Limpos, sóbrios, articulados. Eu lhes dou assistência social.” A fala é
da mãe do amigo de Paul na citada cena acima e ela, pode-se dizer, corresponde-se
da violência instaurada sistematicamente na Hamburgo revisitada de 1932.
Não é apenas
a transformação do preconceito, a violência simbólica, em violência física o
que Paul assiste no seu retorno a Hamburgo: é o embrutecimento das relações
humanas, é a descoberta do espírito contraditório daqueles jovens com os quais
conviveu no verão de 1929. Parte deles estão metidos com causa nacionalista
outra parte vê-se negar sua própria natureza para se integrar aos moldes do que
é defendido pelos discursos nazistas. A formação de Paul, por mais reprimida
que seja, não o permite compreender os limites que recrudescem radicalmente todo
ideal de liberdade da República de Weimar e sob a tutela dos discursos mais
estapafúrdios. Ou seja, se num primeiro momento este rapaz estabelece uma
autodescoberta, no segundo, vivencia a descoberta do outro e das implicações
sobre as determinações da história e das ideologias na constituição dos
sujeitos, dois movimentos que, apesar de segmentados dessa maneira por essa
leitura, não estão assim pedagogicamente divididos no romance.
É notável
como o que se vislumbra apenas como um conflito de gerações na Alemanha de 1929
– marcada aqui por um grupo fortemente ainda preso aos modelos de uma remota
tradição, anterior à primeira guerra, e outro cuja vida se pauta em se guiar
pelo presente enquanto continuidade e as fluências do corpo – logo é transformado
em algo muito mais complexo, como se o nazismo fosse uma espécie de vírus transmitido
a todas as consciências daqueles fragilizadas pelo desconhecimento da história
e a aceitação taciturna dos discursos de mão única. Obviamente que isso é, num
primeiro momento, pura impressão de um jovem que se sente perturbado como os alemães
guardam uma exacerbada preocupação com o corpo, tornado aqui em templo,
daí o nome do romance ―
“Olhando-os ―
homens, mulheres, meninos, vermelhos como camarões, amarelos, cor de mogno ―,
eles lhe pareceram ridículos, mesmo os mais bonitos, e alguns eram bonitos.
Depois de estar na Alemanha pouco mais de dois meses, ele começava a ficar
cansado da preocupação envergonhada dos alemães com o corpo. Eles cultuavam o
corpo como se fora um tempo. Mas por que não podiam aceitar-se como eram? ―
pensou. Estou farto dessas pessoas que se esforçam, sem trégua, para alcançar
um físico perfeito, e que se esfalfam em exercícios simplesmente por não
poderem aceitar-se fisicamente como são.”
― mas,
a posterior, com a presença dos sujeitos pensantes entre os
destacamentos do mal, o que se revela é a criatura humana como contradição, as
ideologias como potente instrumento de controle, a consciência como um elemento
do inapreensível pelos olhos da razão e a história como algo imprevisível. No
mesmo diálogo entre Paul e Ernst acerca dos atiradores do Báltico, a personagem
principal pergunta-o quando esse levante irá acontecer, ao que ele responde:
“Não vai acontecer nunca, na minha opinião. A República está consolidada, e o
povo alemão se opõe à guerra [...] ingleses e franceses juntos nunca permitirão
a existência de uma Alemanha militarista”. Doce ilusão!
O corpo,
entretanto, é o elemento principal desse romance e está em toda parte: nos nus
que se exibem nos banhos de rio, na sedução da noite, nos convívios íntimos e
sociais, fonte de energia e irradiador de beleza – repousa uma fruição grega. Enquanto
os alemães exibem e cultuam-no (para não deixarmos fugir a história, outro
traço reiterativo do regime instaurado décadas depois), ele se torna em plano
de experiência e pulsão de um jovem em autodescoberta de seus fluxos. Ao se
colocar estrangeiro ante o corpo exibido (na praia, no clube, na arte) o nascente
poeta transforma-o numa variável criativa para o poético revelada nesse romance
no nascimento da poesia que está na formação do artista Paul e, por
contaminação, na feitura das dobras da prosa ficcional do romance. Quer dizer,
vale pensar que o corpo permite a Stephen Spender estabelecer três estudos: o
erotismo que envolve a visão e a exposição do corpo, o corpo enquanto potência
do mal e o ponto de nascimento de uma ascese poética.
Uma variedade
de leituras integra O templo ao rol do Bildungsroman; em língua inglesa,
desde sua publicação tem sido lido como um coming-of-age gay. É verdade
que não deixamos de acompanhar a transição entre um instante de descobertas, de
um ponto a outro na vida de Paul Schoner – da adolescência para a vida adulta. É
verdade que, em parte o romance se centra no processo de desenvolvimento
interior do protagonista no confronto com o mundo exterior, oferecendo ao fim
do percurso um vitalício encontro consigo e uma compreensão mais ampla das
coisas (caso notável, por exemplo, na autonomia e desenvoltura com a qual
conduz seu retorno a Hamburgo ou a maneira como busca reparar parte dos desejos
não realizados na primeira viagem, com a relação desenvolvida com Lothar). Mas,
não há grandes elementos que provem ser este um romance sobre uma descoberta da
sexualidade. Desde sempre, o único conflito experimentado por essa personagem diz
respeito exclusivamente à sua inclinação para o poético – fora disso, tudo é vivenciado
com os mesmos encantos favorecidos pela natureza existencial de todas as
criaturas, sem estabelecer dramas existenciais individuais ou de um grupo com distinções.
Isso, aliás é fundamental nesse romance; não se nega uma politização do ser
gay, mas não o sequestra para um gueto, por mais que os lugares noturnos assim
se apresentem ou as vivências desse jovem demonstrem uma peculiaridade de gostos
e culturas.
Isto é, superior
a tudo (e isso está na raiz da decisão da viagem de Paul a Hamburgo em 1929 e
encerra a segunda viagem de 1932, como prevalece em toda a extensão da
narrativa) está a formação do artista. Isto nos levar a compreender que o
romance de Stephen Spender não alcança fielmente o caráter de um coming-of-age
gay; O templo se integra ao rol do Künstlerroman, o que o filia
em obras que têm na constituição do gênio criativo como elemento constitutivo e
dorsal do romance. Este conceito, percebam, não é alheio ao de Bildungsroman,
mas uma extensão categorial.
Assim, O
templo está próximo de obras como Retrato do artista quando jovem,
de James Joyce ou Fome, de Knut Hamsun. É singular nesse sentido, o
diálogo desenvolvido entre Paul e Joachim, já próximo do final da primeira
parte do romance; este pergunta a aquele por que ele é poeta e Paul responde:
“Procuro traduzir em imagens, com o auxílio de palavras, aquilo que a
experiência me faz sentir, fazer poemas que vivam mais que a própria
experiência”. Incapaz de compreender a sutileza da resposta, o amigo inaugura
uma discussão com uma variedade de porquês. A resposta primeira se amplia
num debate quase filosófico sobre a arte da criação poética sempre na
possibilidade de esclarecimento para o outro sobre o que ele não alcança em sua
inteireza, até que tudo se suspende com uma suposição elaborada por Paul:
“―
Quando você ouve, digamos, um quarteto de Mozart, de Beethoven, ou de Schubert,
existe algo no arranjo dos sons produzidos pelos instrumentos que é especificamente
ele mesmo na música, e, por mais que o tentasse, não poderia ser outro
qualquer. Há uma voz que é dele e só dele e que fica e que, depois de cem anos,
é ainda a música de Mozart, de Beethoven, de Schubert.”
O registro
dessa explicação esclarece também o empenho particular do jovem Stephen Spender
com a escrita de O templo, que foi, de verdade, a primeira obra
que escreveu. Esse empenho visava a constituição de uma voz irrepetível, capaz
de permitir, tantos anos depois, que leiamos sua obra como um trabalho singular.
Ainda é cedo para dizer que alcançou esse lugar alcançado por Mozart, Beethoven
ou Schubert, mas continua sendo uma obra vibrante e indispensável para nos
suscitar uma reflexão sobre as estreitas relações entre a estética e política do
literário, seja porque não substitui uma dimensão pela outra, seja porque as
integra numa articulação inovadora em seu tempo de se pensar sobre nossas
incongruências na constituição nossa e na história coletiva dos povos.
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