O teatro do mundo (Parte 3)
Por Felipe de Moraes
© John Nicholson |
Arte sem Arte (?)
Vimos como pode ser sofisticada a malha de
imagens que padre Antônio Vieira constrói em seus textos, servindo-se dos mais requintados e
complexos artifícios retóricos que a condição de seu tempo histórico facultava
praticar. Vimos como seus sermões estão moldados segundo uma ótica que além de
adotar uma forma estética “culterana” e ornamentada, está imbuída de um
pragmatismo que, no século XVII, podemos chamar de “modelo sacramental”. Alcir
Pécora comenta da seguinte forma:
“Considerado em seus termos básicos, o sermão
católico que organizava a fé do Novo Mundo atinge seu apogeu ao longo do século
XVII e ordena-se segundo um modelo sacramental, que supõe a projeção permanente
de Deus nas formas de existência do universo criado. Aqui, não se pode
interpretar o mundo nem recusando-se a sua natureza particular, nem supondo a
autonomização da história face ao divino.” (PÉCORA, 2014, p. 62)
Como dito anteriormente, a igreja de Roma
passava por um momento muito conturbado em sua organização e manutenção de
autoridade religiosa. Com o avanço das religiões protestantes, não só os domínios
espirituais, mas sobretudo os econômicos entravam em jogo. Inglaterra e Holanda,
outrora maiores doadoras de terra e de patrimônio de toda Europa, passaram a
seguir uma prática mais individualista (o Calvinismo não só permitia o acumulo
de bens, como o estimulava, sendo a riqueza material um sinal divino de
salvação), rompendo com a relação papal. Aos olhos da Santa Sé isso se tornou
perigoso, pelo fato de ameaçar seus monopólios, tão acirradamente conquistados
desde o fim das Cruzadas, como colocar em jogo a autoridade de sua própria
doutrina, que por séculos dominou a psicologia e o comportamento moral do Velho
Continente.
Como resposta a isso, o convencimento para a
conversão de novos adeptos teria que ser exemplar. O Barroco floresce
justamente nesse momento histórico e participa deste cenário em que as
pregações de padre Vieira irão se desdobrar.
O Sermão da Sexagésima foi pregado em 1655, quando padres voltavam da Missão do Maranhão
depois de uma complicada tentativa de catequese e conversão dos indígenas
daquela região. É diante deste cenário desestimulador que Vieira indaga a
respeito da própria eficácia da conversão mediante o discurso e elaboração
formal de seus meios: em que medida o cultismo, o empolamento do texto,
realizam o fiel desígnio divino? Realmente um estilo elevado é condição da
transmissão da palavra de Deus e de sua fiel representação por parte do
pregador? – “E que faria neste caso, ou o que deveria fazer o semeador
Evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos?” (VIEIRA, 1957, p.
31) – São críticas feitas, portanto, ao seu próprio estilo e às próprias
convenções que moldavam o entender estético de sua época. Nesse sentido, o
sermão faz um duplo movimento de aproximação de contrários tão caro ao estilo
vieirino e à forma barroca, por extensão: porque criticando o método de
construção engenhoso, realiza este mesmo artifício na composição das imagens,
das inversões, das alusões que estão presentes no texto.
Para o desenvolvimento de tal reflexão, Vieira
realiza uma abordagem de todas as partes que compõem a estrutura das
composições sermonistas, que poderiam não estar resultando nos frutos da conversão:
“Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo
pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do
ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um Sermão
há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina,
persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de
concorrer Deus com a graça, alumiando.” (VIEIRA, 1957, p.33)
Infelizmente, não se terá tempo aqui para
analisar detidamente as metáforas que concorrem para esses três componentes
(seriam elas a luz, o espelho e os olhos,
com desdobramentos largos em todo o sermão), bastando comentar que o
único deles que poderia falhar na conversão seria o pregador: já que em Deus
não há falha e a sua palavra, sua doutrina, brota nos corações mais difíceis.
Está, então, no pregador a falha que, segundo Vieira, pode vir da ineficácia da
Pessoa, do Estilo, da Matéria, da Ciência ou da Voz. Ao fim do comentário de
cada um destes atributos, revela que também não são neles que estão a
insuficiência. Onde ela estaria, então? Responde o padre agudamente que está no
“em se dizer palavras e não praticar ações”.
Para a doutrina católica a obra é o
fundamental caminho para o estabelecimento da fé; não serão palavras e estilos
empolados da parte do pregador que sedimentariam o clamor divino, mas o sair a
semear, o ter mais passos e não paços, para ficarmos com as expressões do
próprio sermão, a ação própria do ato de converter. Diz ainda Vieira:
“E nós, que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele
homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo a
começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a
requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter
cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades
destas.” (VIEIRA, 1957, p.50)
(Grifos meus)
São essas “mil indignidades” que tornam a
mensagem vazia de sua verdade e de sua efetividade na vida dos ouvintes, que
saem muito mais encantados com as palavras, alegres1, e alheios.
Nota-se, portando, este movimento ambíguo do “Sermão
da Sexagésima”, pois ao mesmo tempo que se critica a fatura da engenhosidade,
do cultismo de uma pregação, ele mesmo a exerce para a Captatio dos ouvintes. Há
uma sutileza muito complexa: uma crítica que não derruba o estilo culto, já que
o exerce, e nem o poderia, já que seria uma tentativa de ir contra uma “categoria
histórica”, todavia, fundamentava uma singular maneira de ver o mundo:
“Vieira tampouco pretende negar a arte do
sermão, ou o sermão como arte, ao propor a sua admirável fórmula do sermão como
uma ‘arte sem arte’. (...). A oratória sacra assim praticada não recusa, pois,
o ornato dialético ou o conceito engenhoso como procedimentos
artísticos inadequados em si, apenas submetendo- os à conveniência específica
da parenética, de maneira que a sua má aplicação não impeça que o sermão frutifique.
Neste ponto, a aplicação decorosa da arte ao pregar cuida exemplarmente para
que nada no sermão fira a dignidade de que reveste a pessoa do
orador eclesiástico, cujo valor público interfere na eficácia da pregação.”
(PÉCORA, 2014, p.17)
A insurgência de Vieira se situa mais no campo
de uma práxis, categoria moral portanto, do que propriamente contra a estética
de que ela se reveste, já que “é historicamente inverossímil que (...) critique
a ornamentação discursiva enquanto procedimento retórico inadequado a priori”
(PÉCORA, 2014, p.17). Tal embate que travam a estética e a ética no campo da
concepção do sermão, também pode ser expandido para uma discussão que tomou boa
parte dos críticos de literatura pós New Criticism, no século XX. Claro está
que Padre Antônio Vieira não pensava em matrizes modernas, ainda que sua obra
seja uma leitura
extremamente rica para
entendermos o seu
século e os posteriores como leitura do Brasil, mas no
fato de podermos observar esses desdobramentos como mostra da complexidade do
período e dos juízos em que estava inserido.
Quando pensamos numa espécie de pragmatismo
que orienta a fatura dos sermões, temos que pensar como este tipo de composição
como obra de arte se difere dos demais do período que agrega o barroco. A
agudeza, o engenho, a metáfora e as imagens só podem ser entendidas na junção
do propósito da conversão religiosa e manutenção de uma visão que além de
agregar a política dos Estados Nação e dos impérios, legitima um estamento
social, uma disposição moral e mental, reforçadas pelo poder que a igreja
exercia em todos os setores da vida pública. Nesse sentido, a obra de Vieira
teria uma espécie de função diferente do que a obra de um Góngora, por
exemplo. Não que na arte de Góngora houvesse a problemática definição de “arte
pela arte”, e na de Vieira de uma arte engajada, não é isso. O que se
tem é um ponto de vista, que nestes autores operam de maneira diversa:
em Góngora, o engenho está a serviço de um prazer estético e de uma “vontade-de-forma”
que legitimam a fatura poética como peça que vale por si mesma e ao mesmo tempo
como marca do “Siglo de Oro” e das divergências que marcaram as produções
literárias espanholas do XVII e XVIII – popularismo x universalidade;
em Padre Vieira, essa poética está atrelada a um efeito, qual seja, a conversão
e a legitimação de uma visão religiosa do mundo, estando a agudeza posta como
veículo que possa contribuir para esta mentalidade histórica.
É notável perceber como essa crítica feita ao
cultismo se mostra muito mais complexa do que aparenta, pois ela coloca de
frente concepções que diferem – o estético e o ético –, mas que são de essenciais
para a discussão dentro dos estudos literários. Entender o mundo que figura
dentro da obra de Vieira, é entender uma “comunhão” que mistura o “Corpo Social”
da juntura política do século XVII, ao “Corpo Místico” da doutrina da igreja
católica; nessa comunhão reside todo espírito da época (Zeitgeist), numa
visão da História como figura, ou seja, como um tempo de
correspondências entre o remoto que é apresentado nas Escrituras, e o presente
que reencena e refaz os antigos dilemas cristãos. Mais do que um exercício
estético, os sermões representam uma reflexão temporal, talvez não hegeliana –
linear e positiva –, mas uma em que existam relações que objetifiquem,
legitimem e construam uma moldura que nunca deve ser ignorada dentro da
literatura brasileira.
Notas
1 Aqui cabe fazermos um paralelo com o sermão analisado ‘‘das Lágrimas de Heráclito’’. O riso, por se encobrir de
sedas supostas, montar palco e cenário, deixa confortável e ilude o espectador
pelo encanto da eloquência. O riso, portanto, está muito intimamente ligado ao
mal pregador, pois este fala de si e não da palavra de Deus, trasveste as
palavras das Escrituras sobre as suas, numa fabulação. Como diz Vieira em outro
trecho: “Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão as fábulas. Fábula tem
duas significações: quer dizer fingimento, e quer dizer comédia; e tudo são
muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são sutilezas e
pensamentos aéreos sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes
vêm a pregação como às comédias; e há pregadores que vêm ao púlpito como
comediantes.” (VIEIRA, 1957, p.49).
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