O amor, saída para o tempo
Por Tiago D. Oliveira
Só
quando terminei a leitura percebi os protestos vindos das panelas em vários
prédios ao meu redor. Voltei para o livro, ainda sobre a mesa, e entendi – está
tudo ali. Assim, entre a literatura e a realidade, comecei a digerir os versos
de O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição, novo livro de
Clarissa Macedo, que ainda me levou para deambulações que me desconectaram
permitindo-me imaginar como seria se tudo fosse diferente.
Depois de polarizar,
calmamente, preenchi a mão direita contra o peito, guardei-me em uma respiração
mais profunda – faz anos também que o cheiro do peixe invade as paredes, o
catre, os sonhos, /[a minha oração. (“Dança”) – para uma aflição mapeada,
desmitificada e combatida com a voz da poeta empunhada – eu continuo:
persisto,/ de anzol gasto,/ no exercício de dar de comer à mãe, às filhas, às
irmãs;(“Dança”) – e entendo que a voz dessa mulher, que é filha, irmã e leitora
de seu espaço/ tempo, é o ponto alto deste livro.
Editado pela Ofícios Terrestres no final
do ano de 2019, o conjunto de 52 poemas é dividido em duas partes: “Memórias do
cotidiano”, com 40 poemas, e “ou um (mini)épico do espanto nos olhos”, com mais
12 poemas na sequência. Um livro sensível que é dedicado a três mulheres que se
aproximam também de Clarissa Macedo por
suas trajetórias, exemplos de artistas fortes, mulheres fortes: Carolina Maria
de Jesus, Elza Soares e Irina Henríquez, assim sua força é realizada também
pela localização de um tempo e seu eco operante. Desde a primeira parte da obra
percebemos a grandeza de sua autora, quando o lirismo da poeta mapeia e combate
a violência que se espraia sob matrizes seculares e contínuas no país.
Ela aqui
ensina caminhos, através da estrada de seus versos, enquanto aponta para o
presente e para o passado em marcações históricas de dor e diapasão. Olhar para
o passado, segunda parte do livro, ao balizar o agora, é uma função social buscada
de forma consciente por Clarissa, não era espelhos o que queriam / mas a terra,
a terra que lhes foi roubada (I), também quando grafa afiançada, a voz da
chacina sempre foi grave (II), ou em, Os escravizados são soltos / mas
continuam a doer às levas (VIII), ou, e os novos colonizadores / são mais
cruéis dos de antes (“Epílogo”), mostrando assim que a ganhadora do Prêmio
Nacional da Academia de Letras da Bahia de Literatura – Poesia 2013,
constrói a sua poética diante de um comprometimento que atua e reage de forma
imediata e didática na contemporaneidade. A poesia e as adversidades do mundo, indissociáveis.
No passar das páginas a consequência do
mundo, esse lugar que ninguém consegue fugir, mas que os poetas digerem e
transformam, vai sendo acumulada e entregue:
Ontem havia
esperança
Toda a
esperança do mundo.
Hoje sou um
estilhaço
Um catálogo
de dúvidas
E desejo.
(“Faísca”)
Pontuar
a dúvida é um reflexo humano, não a negar é para poucos, ferramenta espiritualizada
que só amplia o ângulo da visão. A dúvida aqui existe, mas não sabota sua
essência, ao contrário, abraça o desejo, faísca de um sentido contínuo a se
redesenhar. Na pontuação da poeta, o olhar do outro é o lugar comum que não
afeta, digam que perdi:/ que faltei às classes de empreendedorismo, a percepção
é barro crítico do poema, que não vou ao shopping / que rasguei os papéis e os
comi, a intenção semântica é costurada com a linha dos dias, uma identificação
atual, digam que perdi tudo: / a fé, o sonho, o dinheiro que não sobra. No
final, a virada é tão comprometida com a beleza quanto com a raiz norteadora que
nos defenderá do des/conhecido:
mas amo como
se fosse eu o país
essa
cavidade aberta
exposta,
sangrando até a morte.
(“Faísca”)
A leitura dos poemas reserva momentos em
que a afecção, dotada de oportunidades, já que a partir do outro conseguimos
uma imagem de nós mais crítica, para que assim notemos o outro como parte de
nós também. Desta forma cabe ao poeta explorar uma linguagem e um discurso que
construam essa direção. No livro de Clarissa tudo funciona, como essa reflexão,
desde o título até os nomes dos poemas. A funcionalidade é parte do mecanismo
de produção a guinar o livro trazendo contextos compostos em nomes curtos e
simples para os poemas, mesmo para O nome do mapa e outros mitos de um tempo
chamado aflição. Tudo funciona paulatinamente como se propõe.
O grau de complexidade do livro se dá
principalmente pela sua capacidade de tocar em temas que são tangenciados e
explicados no final por um sentimento que é razão de tudo, o amor. A percepção
do amor pelos homens:
A amendoeira
dos teus óculos
me ensina
que o amor entre os seres
é intimidade
e navalha
(“Romaria”)
Uma romaria como resposta ao desencanto
pelos homens, essa que é justificada pela continuação das marcações. A poeta
não desiste de grafar o mundo, ele está nela, em sua poesia, como um amor no
ciclo de um dia futuro, uma ação pretérita imperfeita:
Não teve na
vida
pessoa que a
inspirou:
mãe, pai,
tio, avô
o que teve
foi um dedo
apontado
na verruga
mais triste
na ferida
mais velha.
(“Clichê”)
E a partir de pequenos oratórios o leitor
vai construindo uma imaginação verossímil que refunda antigos lugares ao passo
em que também os reafirma:
Inábil para
tudo no mundo,
nada, nem
mesmo viver,
detém o passo
de fazer palavras
e sua
amargura.
(“Mula”)
O poeta, em seu lugar de deslocamentos,
está quase sempre buscando experimentar, diante da poesia, uma vida que se
justifique, se reintegre, a ternura necessária para voltar, ficar ou partir:
o afeto é
uma longa estrada
onde você
fez abrigo e brasa,
um andarilho
com destino ao sol.
(“Notas de
ternura e verso”)
Depois do livro guardado na estante, fica
a certeza de versos medidos pela reverberação após as horas, o esmero de
Clarissa Macedo ao lapidar cada oração em ações proativas, versos conjugados
com afeto e a seriedade de quem flexiona a vida. Fica nítida uma saída para os
dias atuais, O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição, talvez
a única que resiste ainda depois da entrega, o amor. Só o amor, o amor pela
palavra, pelas pessoas, pelo país, o amor é saída para o tempo.
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