O lume das recordações: Uma leitura do romance “Coivara da memória”, de Francisco J. C. Dantas
Por Flaviana Silva
Reconhecer a grande marca estabelecida pelo romance de 1930
nas produções dos autores do Nordeste é essencial para viajar pelas obras que
nomeamos como sendo contemporâneas. Após a leitura de Coivara da memória é
prudente ter em mente que essa influência ainda “arde” positivamente em nossa
arte literária. Diante desse livro de estreia do autor Francisco J. C. Dantas,
cabe ao leitor sentir o aroma da terra e viajar em um enredo intrigante, guiado
por uma originalidade singular.
O romance
foi publicado em 1991 e logo a escrita do seu autor comparada a de Guimarães Rosa; não é exagero. O que encontramos nesta obra é uma construção interessante; e, apesar de elementos em destaque, como a descrição do espaço, por exemplo, ela
não permite generalizações. A tessitura da narrativa é cheia de desconstruções
em relação ao tempo e às personagens e se fundamenta entre contrastes que
cercam questões ideológicas e culturais.
O narrador
é um acusado de homicídio que tem sua memória como ponto de fuga para a
realidade que o encara; ele espera pela decisão da justiça sobre um
crime que diz não ter cometido e o leitor só consegue entender esse processo
no desfecho da obra e isso prende sua atenção no percurso da narração. O protagonista
que narra esta história desacredita de qualquer força que o livre de um destino
desastroso. O romance tem uma crítica social aguçada e muito bem construída
diante da hipocrisia encontrada nos ofícios daqueles que defendem a Lei, a
verdade e a justiça.
Em uma inconstância
entre passado e presente somos convidados a conhecer todas as fases da vida da personagem:
o menino que foi criado pelos avós (patriarcas da família dos Costa-Lisboa) que
moram no interior do Nordeste; seu crescimento e aprendizado pelas observações do trabalho do avô no engenho. A narrativa se
passa em Murituba. O lar é localizado na comunidade nomeada de Rio das Paridas.
A vida da personagem principal é
também um mistério a ser desvendado no decorrer do romance. O questionamento
sobre a história da mãe que nunca teve a oportunidade de conhecer alimenta a
curiosidade da personagem e também do leitor, ele sabe apenas que seu Pai nunca
foi aceito pelo seu avô e que falar sobre esse assunto é procurar desavenças em
sua casa, ele é um ser que apesar de ser amado pelos avós não entende suas
raízes, sem contar a humilhação que recebe dos seus tios.
A narrativa é criada a partir de tudo o que é
lembrado pelo protagonista no decorrer dos dias de espera; é interessante a
descrição que o narrador constrói em torno da sua relação com os avós, a
história de ambos e como eles se conheceram até chegar aos dias de convivência
com o neto - são passagens de uma beleza encantadora. O livro desperta o leitor para a
simplicidade através de uma linguagem nada convencional, muito pelo contrário,
o texto é norteado por um vocabulário rico e atípico.
Não se limitemos a pensar que a obra se resume aos costumes
do Nordeste; o romance tem isso como estilística e essência, mas tem outras
representações. As personagens poderiam ser caracterizadas como personagens-tipo já que possuem atitudes já esperadas levando em consideração o tempo e
contexto, mas elas não são descritas com uma aparência marcada, o diferencial é
dado exclusivamente pelo afeto imposto pelos sentimentos do narrador.
A avó é uma personagem interessante. A relação do neto com a
senhora tem um significado importante para a reflexão sobre a sua vida: numa passagem ele narra como ela cuidava das flores mesmo sendo tão dura consigo mesma
e essa passagem tem um sentido importante para entendermos a personalidade da
personagem que não parava de cuidar de sua flor preferida mesmo estando em dias
difíceis.
Em todo o romance o
narrador também compara a sua situação misteriosa com a terra de sua infância e
com as atitudes ensinadas pelos seus familiares. Sem dúvidas é um narrador que se utiliza de um espaço já esperado, mas que vai além com uma abordagem
original e marcante. É uma leitura que pede atenção e calma, mas que
impressiona desde as primeiras páginas.
O título da obra tem um grande significado após a leitura, o
desenvolvimento da narrativa é um queimar das memórias que restaram, na verdade coivara
é uma palavra tupi que significa tudo aquilo que restou da queimada que faziam
os indígenas para limpar o roçado; essa prática ainda é muito utilizada no
sertão, o fogo devora mas as cinzas servem de adubo; esse sentido é bastante
simbólico para a narrativa, já que a personagem afirma que são as memórias que
o mantém vivo.
O significado do fogo para a narrativa também é presente em
nossa sensação durante a leitura. Parece que a escrita queima e arde em nós de
uma maneira agradável, sem contar nos sentimentos que sempre envolvem essas
relações entre a terra e seus elementos. Em uma passagem que o rapaz adoece, o avô, que
sempre mostrou ser um homem forte e de personalidade inalterável, é apresentado
de maneira bastante peculiar: “Lá dentro, na camarinha de meu avô, eu ia
aguentando a pulso, num febrão danado, o embate da vida e da morte enrodilhadas
no chiado do peito. Arranchado ao pé do neto, meu avô nem comia nem bebia. Era
um bicho ferido, era um boi amocambado!” Neste trecho da narrativa a comparação
mostra um estilo bastante encontrado neste romance.
Coivara da memória é a história do homem moderno que está
preso às suas raízes, mas não se identifica com elas; é o ser que está nas mãos
do sistema injusto sem ter saída para si mesmo; é tudo que restou de um enredo
bonito mas que agora é propriedade do passado.
Estamos diante de um romance triste, mas consideravelmente belo, talvez
seja essa beleza que define as coisas que se foram, o encanto reside na
impossibilidade de reviver os momentos que fizeram a vida um dia ter
sentido. É impressionante como a literatura tem a capacidade para fazer fluir uma fonte inesgotável no mundo.
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