João Cabral de Melo Neto em Barcelona
Por
Ernesto Hernández Busto
No verão de
1947, o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto chegou a Barcelona para
servir como vice-cônsul de seu país. Nesse mesmo ano, ele se tornou amigo do
pintor Joan Miró e, nos meses seguintes, se relaciona com vários representantes
do grupo de vanguarda catalão que, no ano seguinte, em setembro, se uniria à
revista Dau al Set (Modest Cuixart, Antoni Tapiès, Joan Brossa
Joan-Josep Tharrats, Joan Ponç).
Até essa
data, Cabral já havia publicado três de seus livros de poesia – Pedra do sono
(1942), Os três mal-amados (1943) e, especialmente, O engenheiro
(1945) – consumando o trânsito entre suas primeiras preocupações surrealistas e
uma posterior revolução formal da linguagem poética brasileira, onde poderá
incorporar as mais radicais conquistas estéticas do século XX. Apenas durante
os primeiros anos em Barcelona, ele publicará duas outras obras fundamentais:
Psicologia da composição com a fábula de Anfião e Antíodo (1947) e o
extenso poema O cão sem plumas (1950), que completam o corpus de
uma singular estética antilírica anticonfessional.
Em 1949, ele
apresentou uma exposição de Antoni Tàpies no Instituto Francês de Barcelona. Na
mesma época, a edição de Dau al Set correspondente a
julho-agosto-setembro de 1949, inclui alguns poemas de O engenheiro
traduzidos para o catalão por Joan Brossa. Meses depois, é o próprio Cabral que
publica em Cobalt 49 seu ensaio “Tàpies, Cuixart, Ponç”, texto que traça
alguns dos parâmetros que mais tarde definirão a estética de “Dau al Set”.
O trabalho
desses pintores amigos aparece para ele, como o de Miró, sob o signo de uma
luta contra os princípios da composição e do equilíbrio renascentistas, em
busca de uma liberdade que não é mais apenas, como na pintura surrealista, liberdade
metafórica, mas também “liberdade de sintaxe”:
“O que
caracteriza esses três pintores, de tão diversa mitologia e linguagem, é,
portanto, o fato de coincidirem em tipos de composição igualmente independentes
da composição estática tradicional. Mas essa caracterização é oferecida no lado
negativo, porque o estado de espírito com o qual eles abordam essa liberdade é
absolutamente diferente nos três (...) e, assim como são diferentes os estados
de espírito com os quais eles usam essa liberdade, são diversos, no terreno
estrito da composição, os resultados alcançados pelos três. É diferente, por
exemplo, o comportamento de cada um dos três em relação à moldura, ou melhor, com
o limite da superfície da pintura. (Todos sabemos a importância do limite da
pintura na composição tradicional; e é a partir disso que o trabalho de
equilibrar e fixar o todo é estabelecido de fora para dentro)”.
Aqui estão delineadas
as ideias que serão desenvolvidas mais adiante no ensaio sobre Miró, em que as
críticas à composição renascentista terminam com perguntas semelhantes às da
estética vanguardista: “É possível outra forma de composição? É possível devolver
à superfície aquele sentimento antigo que seu aprofundamento numa terceira
dimensão foi completamente destruído?”
Parece a
Cabral que a pintura de Miró responde afirmativamente a essas questões e
concede à superfície pictórica a missão de receptáculo da dinâmica, liberando o
ritmo de um equilíbrio que o aprisionava e terminando o caminho que seus
contemporâneos haviam iniciado de maneira única. A luta de Miró, que define sua
originalidade, será contra um conceito limitado de composição (compor como equilibrar)
e passa por dispensar perspectiva, pintando sem centro subordinado, sem
hierarquia de pontos de interesse, para encontrar uma polifonia, “uma série de
dominantes que se propõem simultaneamente e que solicitam ao espectador uma
série de fixações sucessivas”.
A composição
em Miró, no entanto, não pode ser reduzida a uma gramática e apenas admite leis
negativas. Não se trata de construir um paralelo prescritivo ao da Renascença,
mas de desenvolver buscas simultâneas, pontos de fuga: da estrutura, primeiro;
depois, a exploração das possibilidades dinâmicas da superfície; a
multiplicidade, em terceiro lugar e, acima de tudo, o que Cabral chama de “o
poder crescente da linha”, que, diferentemente da mancha e da superfície
estática, é carregada de dinamismo:
“Nesse tipo
de composição, a linha não é um elemento perigoso, como acontece na composição
tradicional, onde, se não é dominada, é um elemento dissociador. Nesta
composição, a linha é a instigadora. Não é apenas o que contemplamos, mas a
indicação, o guia, a norma da contemplação. Ela nos pega com a mão com tanta
força que transforma em circulação o que era fixação; em tempo o que era
instantâneo”.
Cabral
procura explicar a oposição entre dois mundos e duas maneiras de compor que
podem ser aludidos com duas metáforas de seu próprio trabalho. Por um lado, a
fixidez da pedra, o olho estabelecido, os costumes da tradição; por outro, a
mobilidade das representações do sonho e do mito, que, diferentemente do
surrealismo, não se acomoda ao automático, mas se transforma num fazer.
Pedra e sonho construído.
“Em Miró,
mais do que em qualquer outro artista”, diz Cabral, “vejo uma enorme valorização
por fazer. Pode-se dizer que enquanto em outros o fazer é um meio de
chegar a uma pintura, para expressar as coisas que são anteriores e estranhas
ao ato de realizar, a pintura para Miró é um pretexto para o fazer. Miró não
pinta quadros: Miró pinta”.
A ideia de uma
nova composição que não fosse puro onirismo, mas que, ao contrário, se baseava
no fazer e sua relação com o mundo foi a grande descoberta de Cabral de Melo Neto
na Catalunha. Enquanto o surrealismo tentou, de alguma maneira, anular o
trabalho e o artesanato pictórico submetendo-os ao ditado espontâneo, ou
automático, em Miró e nos pintores de Dau al Set Cabral descobre um
rigor acompanhado pelo ofício e da invenção permanente. Por isso, ele também se
recusa a ver em Miró um tipo de pintura psicológica, qualquer “psicografia”,
como costumamos dizer nos manuais de arte moderna. Primeiro, porque na
apreciação do trabalho de criação, a temática é sempre algo secundário ou
mínimo, se não ausente; e depois porque “Miró pintou apenas o que tem sido até
hoje objeto de representação para a pintura”.
Ao valorizar
principalmente o fazer, a matéria do trabalho, o trabalho pictórico em si, o
artista controla cada mínimo resultados e inicia um experimentalismo que lhe
permite se abrir para as técnicas mais diferentes.
***
O papel de
Cabral no fermento criativo de Barcelona da época pode ser rastreado não apenas
em seu relacionamento pessoal com Miró, em suas reuniões na rua Muntaner e em
suas interessantes anotações sobre Tapiès, Cuixart e Ponç, mas também em seu trabalho
como editor, acompanhado do próprio Miró e seu amigo Enric Tormó. Seu interesse
pela impressão e tipografia – que ele compartilha com artistas de Dau al Set,
como Brossa ou Tharrats – se desenvolve paralelo a uma estética construtivista
do poema, que torna o livro muito mais do que um mero suporte instrumental. O
trabalho de Cabral na “Livro inconsútil” (o nome que ele deu à minieditora onde
imprimiu 13 plaquetes de esmero tratamento gráfico, incluindo o primeiro livro
de Brossa), não é um assunto episódico nesse interessante processo estético. Da
mesma forma, sua insistência como crítico no rigor e dinamismo da pintura
também aponta para uma “estética da composição” que vai além da ideia formal da
moldura e da própria pintura.
A
comunicação entre poesia, gráfica, pintura e arquitetura e a radicalização de
uma estética construtivista (tema que também alcançou os criadores de Dau al
Set através da tradição artesanal catalã) são o marco de uma curiosa
constelação de coincidências que toma forma no ensaio de Cabral sobre Miró.
Este livro, cuja importância não foi suficientemente advertida, foi impresso
por Tormo em apenas 130 cópias e foi publicado nas Edicions de l'Oc em 1950. É
uma pedra de toque inicial para entender não apenas a obra de Miró, mas de um
tipo particular de arte de vanguarda. Conceitos desenvolvidos ali, como “o fazer”
ou “o processo” em elementos que vão além da ideia de um meio para alcançar a
pintura, ou a crítica do automatismo pictórico, são os pilares de uma
interessante “gramática da criação” , antilírica e anticonfessional, que liga
Cabral a Miró e seus contemporâneos, mas que também continua dentro do chamado modernismo.
Cabral, assim, estende a abordagem da vanguarda a um diálogo produtivo com
Mondrian e Le Corbusier, antecipando ideias decisivas na evolução subsequente
da arte concreta.
Não basta
citar a amizade entre Cabral de Melo, Miró e os membros do grupo Dau al Set,
ou sua condição indubitável como ponte fértil entre duas circunstâncias
artísticas completamente diferentes, mas também vale a pena explicar as chaves
para uma estética compartilhada para lançar luz sobre esse processo interno na
arte de vanguarda e na dinâmica modernidade-modernismo.
Cabral de
Melo foi brilhante como um “embaixador cultural” (alguém essencial para avançar
na Espanha franquista as novas ideias que animavam o ambiente artístico fora da
península e principalmente na América Latina), mas precisamos ir além: analisar
o processo que desde o final da década de 1940 até meados da década de 1960 (a
data em que, aliás, Cabral retornou a Barcelona) contribuiu com os elementos de
uma poética de vanguarda baseada na ideia de “composição”.
Nesse
diálogo particular entre poesia e pintura, encontramos algo que excede os
limites da rebelião romântica contra uma ideia de beleza historicamente
estabelecida a partir de uma forma limitada de percepção, e mesmo contra a ideia
surrealista concebida ao pé da letra, para sugerir um método de criação mais
complexo que provoca desconstruções históricas e geográficas e que prolongará
sua validade até o concretismo da década de 1960.
O poeta João
Cabral de Melo Neto também foi, nesse sentido, o arauto desse novo método de
composição, o embaixador de uma poiesis racionalista de vanguarda que
buscava alcançar a arquitetura final da obra concreto.
Ligações a esta post:
* Este texto
é a tradução de “João Cabral de Melo en Barcelona”, publicado aqui em Literal
Magazine.
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