Algumas palavras sobre Rómulo Gallegos

Por Hector Rojas Herazo




Para muitos críticos ou escritores de ficção, é possível se aproximar, sem maiores dificuldades, da obra de Rómulo Gallegos. É fácil porque já se tornou um clássico das letras e porque quase todos os assuntos que o apaixonaram, e para os quais quis encontrar soluções adequadas, foram renovados. E se renovaram, precisamente, pela constância e a intensidade criadora de homens como o escritor venezuelano.

O romance latino-americano, depois de vencer a decisão reducionista de seus escritores fincados no seu próprio solo e de buscar se equiparar com outros sistemas expressivos, encontra-se em posse de recursos técnicos mais ambiciosos e imprevisíveis. Agora não é o solar – a terra como vastidão e indefinição, como assédio da natureza, como grandiosa e ardente questão de pátria – o que interessa ao romancista desta parte do mundo. Agora, o que lhe interessa é sua descoberta do que é um fantasma. Já não obseda ao romancista (mas de fato os envolve, os prendem, no contexto de sua obra) nem o destino das crenças, nem a opulência ou a ruína de seu entorno, tampouco, a celebração ou a rejeição ideológicas ou simplesmente políticas de sua criação. Não lhe interessa, em suma, imiscuir-se, com categorias alheias à sua estrita alienação, na marcha de sua comunidade. Seus temas, e inclusive sua pura vontade de se comunicar, são bem distintos. Interessa-lhe, isso sim, purificar seu terror; ampliar, para questioná-lo com melhor lucidez e liberdade, o horizonte de sua orfandade; insistir com elementos documentais, que fizeram o sucesso e a complexidade da narrativa contemporânea, em sua seleção e vitimização por parte do absurdo. Quer, assim, explicar-se a terra ao explicar-se a si próprio e sua contingência. Com isto queremos dizer que o romance, enquanto menos se ocupe de motivações acessórias, mas se ocupa do homem, mais território ganha na indagação de seu mistério pessoal.

Por isso, o romance é cada vez mais subjetivo e poético. Por isso insiste em se aprofundar nas regiões castigadas do ser. E é com isso que se liberta da última e decisiva contenda do romantismo fáustico, que o tornou possível como gênero contemporâneo e que continua alimentando com as instâncias mais caras e valiosas de sua própria aniquilação. Entendido o romântico, logicamente, como um delírio do drama individual, e entendido o fáustico como um impulso demoníaco que obriga a consciência racional primeiro a questionar e logo a transformar tanto a essência como as formas visíveis do mundo. Isso explica a tendência, cada vez mais visível, de anular a personagem no romance. Durante o tempo romanesco, que poderíamos considerar como totalmente diferente do tempo exterior, as personagens foram substituídas por obsessões particulares do autor. O que aí ocorre, por liquidação da privacidade, por autofagia subjetiva, é de índole fantástica. O mesmo quadro e sucesso em que se desenvolve sua dimensão temporal. De Dona Bárbara ao O estaleiro, por exemplo, há um longo e lento intervalo. Durante esse espaço se adestraram ferramentas estilísticas de alta precisão, se conseguiu o manejo perturbador da memória e o tempo como forma da ilusão, se conseguiu transformar o idioma, que antes era exclusivamente na narrativa o suporte para o elemento fabular, sedimentar e devastador, que exige, como personagem, um tratamento e um rigor específicos. A tal ponto chegaram essas conquistas, que na atualidade o romance é indefinível como forma.

Por isso, longe de esgotar, se acrescenta a importância de um escritor como Gallegos. Porque o dever primeiro do romancista, o que o faz ponto de inflexão, em especial quando uma geografia começa a se evidenciar pelo romance, é olhar seu entorno em profundidade, nele se instalar. Essa foi sua tarefa. E a realizou fazendo frente a outros compromissos, tão ou mais urgentes que o de acentuar uma linha temática ou performar um sistema verbal. Gallegos se propõe, com o desvelo e a honestidade do verdadeiro artesão, a tradução literária de uma circunstância. Mas isso o compromete na ordem política e coloca em perigo, num transe crucial de seu país, sua vida e a vida de seus mais íntimos. Esse dado, sabemos de sobra, é de ordem extraliterária. Mas nos serve para nos colocar, no seu justo momento, frente a um dos dramas – talvez o de maior eficácia destrutiva – que o escritor precisou padecer, literária e pessoalmente. Também nos coloca ante um exemplo da maior elevação humanística. Hoje, escrever é uma façanha mental. Na Venezuela de Gallegos, tomada pela ubiquidade da ditadura gomecista, escrever era, além disso, uma façanha viril. Por isso, tanto como uma referência inescapável no nosso fazer literário, Gallegos é uma figura de predileção na família indo-latina. Com muito de Sarmiento e de Martí. Com muito do professor que precisa se colocar à sério para se fazer ouvir.

Seu tema é a desordem, a palpitação, a insistência de um acento destrutivo num lugar da terra onde o homem e a natureza se encontram abalados por paixões imprevistas. Suas personagens, por isso mesmo, são duras, elementares e concentradas. São o produto de uma magia vivencial – o estado é governado pelo elfo; a medicina é reza e elixir; o fanatismo rudimentar se sintetiza no santo transmutado em fetiche – e mesmo isso são magia, criaturas e destinos mágicos. Nisso se parece com Rivera e Güirlades. E seu tom é o de um bardo transcendente que busca – no refrão, no dito popular e na ironia solta, mas sentenciosa – os resquícios de uma filosofia rústica que torna possível a vida, e inclusive a alegria, ante o imprevisível, o fatalismo endêmico e o desajuste econômico.

Disso, de sua angústia por encontrar categorias confiáveis (as modulações específicas da fala e do gesto, o mistério intercomunicativo das presenças com homens, objetos, vegetais ou fantasmas, a influência do tempo no comportamento e temperamento das coisas e pessoas) ao habitante e à comarca venezuelanos, que em linhas gerais têm idênticas recorrências em quase toda a América Latina, advêm, dentre outros, do simbolismo indianista de Asturias ou a identidade fantasmal e a atmosfera sobrenatural em que transitam os camponeses de Rulfo. O que Borges, num exemplo aleatório, alcança por um interesse cultural (descobrir-se como indivíduo que quanto mais submerge no nacional mais prolonga seu fluir universal, encontrando, por sua vez, o eco de eternidade que existe na tradição, no interior familiar, nas conversas comuns) Gallegos alcança com sua vigilância reiterativa e seu frescor testemunhal. Por isso, é um mestre. Por isso, é ativa sua palavra. Por isso, suas personagens espalham essa vitalidade acre, às vezes feroz, sempre turbulenta, e em todo caso de uma plasticidade repentina e abrasadora, tão nossa e tão universal ao mesmo tempo, que as coloca ao lado das personagens mais vigorosas do romance naturalista.

Agora, todo esse mundo de Gallegos – os cavaleiros cantores; os espectros da malária entre seus ranchos de pau a pique; os lanceiros que galopam em planícies de extensão planetária; os profetas antigos a quem seguem homens em flagelação para se salvar de pestes ou incêndios imaginários; as danças, de ladrões com moças do sítio, ante o fogo que exala carne assada; as mulheres de sexo pródigo e paixões avassaladoras; os militares, embrutecidos pela abjeção e os desaforos eleitorais e os que irrompem à meia-noite, entre os currais, assustando por igual peões e vaqueiros; os oficiais de província, envoltos em litígios e rusgas sem solução, e os rezadores rurais que transmitem aos vivos, a força, a ira e a luxúria demoníaca dos mortos; os sóis furiosos e os invernos que embebem a terra; o tédio, a demência, a solidão, a cerrada esperança – se renovou, se tornou mais interior, encontrou novos e cautelosos métodos para se fazer entender ao restante de todos os homens. Mas ele, insistimos, foi um dos descobridores desse mundo. Sem ele, pacientemente tecedor de seus sentidos, aplicado à sua vontade comunicativa, não poderíamos destrinçar, saborear e finalmente transcender o repertório de costumes que por sorte nos deu. Sem ele, e este é o verdadeiro saldo de seu trabalho, continuaríamos forasteiros de nós mesmos.


* Este texto é a tradução de “Unas palavras sobre Rómulo Gallegos” publicado inicialmente em Cuadernos Hispanoamericanos. Madri, jul.-ago. 1980, n.361-362, p.350-353.

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