A pedagogia libertadora de bell hooks
Por Rafael Kafka
bell hooks é
um caso ímpar de intelectual engajada que vive uma profunda intersecção de
militâncias políticas. Os ensaios de Ensinando a transgredir são uma forma
bem interessante de conhecer o seu pensamento multifacetado, pois por meio de
uma escrita repleta de elementos autobiográficos hooks expõe suas visões
políticas acerca de temas como o feminismo e a política identitária. O fio
comum desses ensaios é a pedagogia libertadora e em diversos pontos dos textos
a autora não esconde o débito tido com o pensador brasileiro Paulo Freire, que
em seu exílio também trabalhou por alguns anos nos Estados Unidos.
Os ensaios
contidos nessa coletânea, aliás, podem também ser considerados um pequeno
tributo à obra de Freire. A sua pedagogia é vista pela autora como a base fundamental
para o desenvolvimento de um conjunto de metodologias as quais favoreçam o
pensamento crítico por meio do uso dos saberes prévios dos estudantes. A partir
de então é possível se questionar as bases do pensamento conservador que rodeia
a vida de jovens e professores e servem de esteio para as bases morais de uma
sociedade profundamente segregacionista.
Muitos podem
considerar a pedagogia libertadora como uma espécie de doutrinação, mas hooks é
ácida ao criticar esse pensamento quando ele ainda nem era formulado na
estrutura bizarra da defesa de uma “escola sem partido”. Em um dado ensaio,
ela responde às críticas de quem fala que em sala de aula o identitarismo funda
uma educação baseada em essencialismos e em uma autoridade da experiência. Para
a bell hooks, o discurso hegemônico que cria uma ilusão de neutralidade desde a
pose superior dos professores é por si só a prova de não existir escola sem
partido e tal discurso é por si só uma defesa de um pensamento essencialista,
reprodutor que é de sexismo, racismo e outros discursos opressores.
A autoridade
da experiência se liga ao que hoje é muito comum conhecermos, graças ao
trabalho de Djamila Ribeiro, como local de fala – ou como os existencialistas
chamariam e “situação”. Fala melhor de uma opressão quem a sofre, quem a sente
todo dia na pele, porque essa pessoa não apenas tem uma noção teórica do que
fala, mas sente em toda dimensão o fenômeno da opressão. Isso não significa que
a teoria deve ser deixada de lado, porém.
Em seus
textos falando da carreira docente, hooks foca demais na necessidade do
entusiasmo e da autoatualização. Professores, como sabemos, não devem ser
vistos como sacerdotes do saber e precisam o quanto antes de uma devida
valorização econômica e social de seu trabalho. Mas essa é uma luta difícil de
ser travada, pois uma pedagogia libertadora é a base para uma renovação social
profunda e quanto mais professores são desvalorizados mais um projeto de poder
é evidenciado: o de uma educação precarizada para formar cada vez mais sujeitos
passivos no modo de entender a realidade ao seu redor.
Nesse
sentido, hooks cobra dos professores um posicionamento engajado no sentido de
buscar sempre e de todas as formas novas leituras para ampliação de suas
metodologias de ensino e a mudança de um discurso voltado para a afetividade,
mesmo que esse termo em si não apareça exposto de forma pressuposta em seus
escritos. A afetividade aqui está no reconhecimento do estudante como um
produtor de saberes e não como mero receptáculo de conhecimentos passados pelo
professor, os quais serão cobrados em provas que avaliarão basicamente a
capacidade de memorização dos estudantes.
O afeto
existente aqui é um ato de amor em que o professor traz o aluno para o processo
de transformação social, mas não dizendo a este como ele deve pensar e sim
estimulando o pensamento por meio da leitura e dos debates políticos racionais.
Muito se fala em obras de intelectuais como Raymond Aron de como as bases da
democracia liberal devem ser defendidas de todas as formas possíveis. Por mais
que hoje eu reconheça a importância do Estado democrático de direito como uma
conquista do pensamento liberal, ainda vejo a democracia liberal como uma
utopia vivida, um objeto que está diante de nós, mas ainda é intocável de certo
modo.
Os mecanismos
de democracia direta e indireta que temos em nossos meios sociais são de suma
importância para a garantia de direitos fundamentais – a lei do SUS no atual
momento de pandemia é bem prova disso –, mas importa que cada vez mais pessoas
tenham conhecimento mediado da existência desses mecanismos para eliminarmos de
vez de nosso convívio social a influência do paternalismo e do clientelismo. A
pedagogia libertadora, apesar de criada por um marxista, pode e deve ser vista
como um instrumento de defesa da chamada democracia liberal, pois garante ao
sujeito a possibilidade de se sentir participante do maior instrumento
democrático possível: a luta no campo das ideias.
Por isso
disse acima que não há sustentáculo para a ideia de ser tal pedagogia uma doutrinação.
hooks pensa o feminismo e o racismo a partir das vivências de seus alunos e são
eles que colocam e veem a relevância do tema para os debates travados em sala
de aula. Por conta disso, a autora vê o pensamento de Freire como um fundamento
para as metodologias que se propõem críticas e colocam os estudantes no centro
do processo de aprendizagem. A escola é uma reprodutora do status quo quando
coloca os estudantes em posição passiva, subalternos à autoridade intelectual o
mestre. A pedagogia libertadora subverte isso dando ao mesmo tempo aos alunos a
possibilidade de se pensarem enquanto sujeitos oprimidos com capacidade de por
meio do pensamento suprimir as marcas negativas dessa opressão em suas vidas e
pensar em formas de combater o mal social causado por forças dominantes.
O entusiasmo
mencionado acima é fruto da auto atualização, da busca por novas leituras. O
sujeito leitor é um ser entusiasmado, pois cada leitura leva a um novo conjunto
de leituras e quando lemos algo queremos falar daquilo, queremos discutir
aquilo com alguém. Em dez anos de docência, aprendi a ver na escola um espaço
onde eu poderia com os alunos discutir aquilo que lia e muitas vezes passei a
entender melhor minhas leituras dialogando com eles. O entusiasmo não gera o
amor que suplantará a necessidade de valorização, porém gera uma maior força e
resiliência no sentido de seguir em uma militância por uma educação pública de
qualidade, pois diante de mim há a importância desse fato se quisermos de
verdade uma sociedade melhor e mais justa.
O discurso
entusiasmado permite uma maior mediação de leitura e de outros saberes. Exemplo
disso ocorre quando em sala percebo que mesmo quando não levava, por falta de
talento e de estrutura, leituras para meus alunos bastava eu citar coisas que
lia e via no cinema ligadas aos temas discutidos para muitos se sentirem
motivados a ir atrás daquilo ou me pedirem para passar este ou aquele filme que
mencionei empolgado em sala. O entusiasmo é a prova viva de que o sujeito ama o
conhecimento, que vê sentido em estar em sala de aula para promover nos alunos
a reflexão crítica e auto aprimoração. Muitos educadores parecem não ver mais
sentido em seu ofício e reproduzem as mesmas velhas formas de dar aula e
avaliar, pois o motivo de estar em sala foi obliterado e eles vivem agora um
velho hábito.
Os ensaios
de hooks são de leitura provocativa e bem fluida e para isso contribuem demais
seus relatos vivenciais. Jamais, porém, ela afirma ser a vivência a única voz
dentro do debate político. O entusiasmo pela leitura é fundamental para que se
crie uma práxis plena de sentido engajado. Sem uma leitura que discuta com
fatos práticos de forma concreta não há a possibilidade de uma pedagogia
libertadora plena e por isso os educadores que se propõem a fazê-la devem sempre
estar em contato com textos relevantes para sua reflexão. A partir deles, os
debates sobre conteúdos curriculares devem visar sempre a visão do estudante
sobre os saberes para provocar neles o desejo de refletir, de falar, de
criticar analiticamente o espaço no qual estão inseridos. Como tentei dizer
acima, se há realmente um espaço de uma democracia liberal em nosso meio
somente por essa mudança cognitiva e discursiva faremos com que cada vez mais
cidadãos sejam aptos a participarem ativamente dos processos políticos de nossa
sociedade, usando sua voz e sua reflexão crítica como um importante instrumento
de engajamento e luta política.
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