A par das aparências
Por Wagner Silva Gomes
Com
capítulos que desfecham em compromisso com os direitos humanos, a assistência
social e o humanismo, com crítica social em prol da almejada cidadania, o autor
Maxwell dos Santos nos alerta, o leitor vai atravessá-los olhando fixo para a
realidade, mas a tocando e a sentindo, pois há de fazê-lo subjetivamente, sem
vícios de reduções para o politicamente incorreto e muitas das vezes para o
politicamente correto, pois é axial a literalidade. É com o olhar apurado para
as possibilidades de sentidos gerados pela trama que o escritor nos mostra na
novela Um prato de ódio (2020)¹ como chegar de igual em uma cidadania desigual.
Entrando
propriamente no livro, percebe-se que se está a depender da parábola mental
que, embora em linha real, depende dos desvios hegemônicos da cultura branca,
eurocêntrica, estadunidense, que nos mostra consumo ao invés de resiliência,
aparência ao invés de parência, e assim nos torna a par, isto é, não dado ao
próximo, que ainda assim existe, ilusoriamente, quando o próximo não fecha no
que há de diferença, nos mostrando a aparência de um espelho social vicioso.
Os capítulos
dessa novela de Maxwell trazem uma literalidade do
socialmente posto em uma narrativa cotidiana que nas voltas do que se passa na
cabeça de um segurança, na cabeça de uma modelo de classe média, nos chocam,
bastando uma metáfora para provocar o encontro, parábola até o garoto de rua
esfomeado, vendedor de sinal (alerta maior).
O cotidiano da moça de classe
média foi tão formidável, politicamente correto. Mas o do
segurança faltou. Quem era o segurança? Quais eram as regras subentendidas dos
perfis proibidos de frequentar o restaurante onde o menino convidado pela
modelo jantou? O segurança não soube subentender quando o que valia mais eram
as aparências dos apares que apesar de próximos a ele, não fechavam com ele em
um princípio ético.
Este, que
tanto falta aos brasileiros, vai nos colocando em choque toda vez que aproximam aparências e vivências em torno do prato de ódio. Os personagens vão sendo
esmiuçados, do que foi mostrado a vivência é dado em outro conto a aparência, e
assim por diante. O garoto esfomeado? Tem uma história de mesmo subentendido
ético, com a diferença que agora foi varrida pra debaixo do tapete da justiça.
Ali não
tinha segurança pra culpar porque o que tinha era um juiz. Outra aparência
colocada na mesa diante do prato de ódio. E colocar um juiz, perante um prato
de ódio é como perguntar: Quem matou Malcolm-X, quem matou Marielle
Franco?
Como se as
histórias de ambos desse também na história do garoto. E dão.
E o
segurança? Nas palavras do autor: "O fato é que Bernardo sofria da
síndrome do pequeno poder ou síndrome do porteiro". O autor traz para o
contemporâneo a parábola do porteiro, de Franz Kafka, do conto "Diante da Lei" (1915), construindo o o contexto com o limiar que dá para o bovarismo social
brasileiro de quem não atravessa para o outro lado, se livrando da mente
colonialista, e ainda assim sente que é o colonizador.
Com isso, na
linha da prosa barretiana, com autenticidade singular, o narrador irá colocar a
passagem do portão, dos territórios periféricos para os bairros nobres, de uma
classe social para outra, a todo o momento, para que o leitor adentre com o seu
olhar subjetivo sem se dar conta, e muitas das vezes ao adentrar, espantado,
verá que estava longe
da entrada, observando tudo com o bovarismo ilusório que cobre a vista da
sociedade brasileira.
Nessa, tudo
parece tão simples e repetitivo, mas não é, um portal para um negro na porta
giratória de um banco pode ser uma esfinge que irá devorar a sua sanidade
mental mesmo ao adivinhar que foi vítima de racismo. Se se chega ao futuro sem
olhar para o passado escravocrata, colonialista, e suas consequências no
presente, não se chegou realmente, tudo não passou de bovarismo social.
É isso que
Maxwell problematiza, mostrando, quando necessário, mais por conteúdo do que
por estética, a linguagem de quem vive a cultura periférica, a linguagem do ciberespaço,
onde a cultura popular de um simples grupo de axé pode ter no portal
empresarial bovaristas sociais com o perfil de Bernardo.
Em Um prato
de ódio, o circuito do carnaval baiano Barra-Ondina é a Sapucaí desnuda, é
"O rei está nu", são séculos de história, sem alegorias, sem
fantasia. Atravessá-lo tanto pode ser adentrar como pode ser não adentrar o
portão do futuro.
Para o que Maxwell constrói contextos e nos faz pensar de forma criativamente espantosa já
nos disse o Caetano Veloso: "A Bahia, estação primeira do Brasil".
Nota:
¹ O livro, está disponível gratuitamente em formato e-book, com acréscimo de conta bancária no final, para quem puder colaborar com alguma quantia, no estilo da pioneira Hilda Hilst em O caderno Rosa de Lori Lamby (1990), sendo o que hoje é feito aos montes em lives, com seus picpays, o que não deixa de ser curioso: do isolamento literário para o isolamento da pandemia de COVID-19. Então, de alguma forma, temos aqui a tela do livro, para a live literária com a escrita.
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