Sobre duas narrativas de Thomas Bernhard
Por Joaquim Serra
Extinção:
uma derrocada não é um livro para qualquer cabeça. Thomas Bernhard não é
escritor para qualquer leitor. Cheio de repetições, divagações longas que
parecem, por vezes, quase sem sentido. Parece, mas não é. O ritmo lento parece
música, uma música truncada como o espírito que escolhe guiar, pelas
desventuras do homem que acorda um dia e recebe um tal telegrama com notícia de
morte (“Pais e Johannes mortos em acidente. Caecilia, Amalia”), uma tal
metonímia que o força a reconstruir seu passado e os interesses materiais da
família que sempre se reúne em uma sala escura, e que insiste em se comportar
como aristocratas. Franz-Josef Murau agora é um professor, mora longe de casa,
e tem um aluno preferido: o brilhante Gambetti. Um reflexo dele, interessado e
inteligente.
Wolfsegg vai
ficar cravada na memória do leitor. Wolfsegg, onde ele foi criado como filho de
proprietários de terra ainda carrega fortes desejos – quase de vingança – pelos
primeiros anos de sofrimento, pela diferença que sentia pelas aptidões dos
irmãos. Mesmo que mortos, nenhum comentário ácido é poupado aos seus e as irmãs
Caecilia e Amalia também têm sua parcela de crítica. “É natural amar nossos
pais, e igualmente natural amar nossos irmãs, pensei, de novo defronte da
janela e olhando a Piazza Minerva lá embaixo, que continuava deserta, e não
percebemos que, a partir de um determinado momento, os odiamos contra nossa
vontade, mas de maneira tão natural quanto antes os amávamos, por todos esses
motivos de que tomamos consciência somente anos, muitas vezes décadas mais
tarde (p. 22).”
Quem o
salvava Franz era o tio Georg (todo romance de formação, assim como Extinção,
precisa de um mestre) que iluminava a sala escura a contragosto de todos, para
alegria do menino. Tipo irônico e falador – aproximado pela crítica ao avô de
Thomas Bernhard. O preceptor também levava luz para o seu espírito, falava de
música, literatura e era o enfant terrible, o diabo sem patas que perturba a
ordem do lugarejo remoto em que todos viviam, para aquele menino diferente, um
simulacro de vida. O provocador deixou-lhe marcas profundas. O gosto pela arte
que agora transfere a outros, como ao jovem Gambetti, e a crítica a tudo, vivo
ou morto.
Outro relato
que é um mergulho profundo na solidão está em O frio, quarta parte do ciclo de autobiografias
contido em Origem. Ali o jovem se apresenta em um sanatório, o terrível
Grafenhof, com uma “sombra no pulmão” que o impedia de viver uma vida comum. O
contato frequente com a morte e a falta de esperança de sair de lá faz com que
ele saia de si para se ver de fora e só assim controlar o desespero. Mesmo
reincidente – ele já havia passado por tratamento em Salzburgo e em Grossgmain
–, por vezes ele não consegue segurar o desespero. Mas em Grafenhof é preciso
se controlar para ajudar os demais já que “a vida não é mais que o cumprimento
de uma pena” (p. 40).
Tampouco
aquilo que está além dos muros de Gragenhof poderia lhe dar uma esperança.
Sentia-se bem de ter saído dos braços de “uma família desamparada, já quase
destruída, para ser cuidado. Aqui, de repente, me davam comida em horas
estabelecidas, me deixavam em paz afinal de contas.” (p. 38).
O abandono o
levou a se juntar à nova família. Aos poucos ele já pertencia àqueles “marcados
pela morte” e também arrastava os pés e o corpo como eles: “já que estava ali,
queria pertencer àquela comunidade, ainda que se tratasse da comunidade mais
horrível e espantosa havia imaginado” (p. 17). E juntava-se também ao coro da
denúncia da hipocrisia daqueles que repartem o mundo: “o chamado mundo são
tinha pânico da expressão enfermidade pulmonar, do conceito de tuberculose” (p.
34). Lá pelas tantas do relato, o tempo começa a agir e muda significativamente
a narrativa. Um estranhamento com relação ao ambiente e seus habitantes dá
lugar para perguntas sobre a sua origem, sobre os avós, pais; por que eram como
eram? Ao conviver com a morte, O frio é um encontro de um adolescente consigo
mesmo, a descoberta da literatura, narrado no estilo que caracterizou a prosa
de Thomas Bernhard e que vale a pena ser lido em tempos tão difíceis de
pandemia.
Para este
texto:
Thomas
Bernhard. El frío: Un aislamiento. Editorial Anagrama, Barcelona, 1987. (Mas há
o ciclo completo de autobiografias publicados no Brasil: Thomas Bernhard. Origem. Companhia das Letras. 2006).
Thomas
Bernhard. Extinção: uma derrocada. Companhia das Letras, 2000.
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