O teatro do mundo (Parte 1)
Por Felipe de Moraes
© Lin Yusi |
1. Gioviale
& Giovevole
O mito nos
diz que Minerva nasceu de um parto feito da cabeça de Zeus, após este ter devorado, durante um jogo muito engenhoso,
a sua esposa então grávida, Métis (a Prudência). Atena, ao contrário do que
pensou o soberano dos deuses, não fora destruída, mas continuou seu
desenvolvimento no crânio do pai; e ao nascer com o auxílio de Hefesto (que
fende a cabeça de Zeus com um machado, pois ela doía e crescia à medida que sua
filha se desenvolvia), os deuses contemplaram sua forma já adulta (madura
de intelecto) e armada para a guerra.
A imagem da
razão como cosa mentale, como influxo vindo da mente, atravessa a
tradição ocidental e pauta todas as formulações e sistemas de pensamento desde
a antiguidade. É na atribuição dada às coisas do mundo, revestidas que são pelo
invólucro da linguagem, que a agudeza humana se manifesta não só como
particular imanência dos homens, mas sobretudo como dádiva dada pelos deuses.
Emanuele Tesauro, em seu monumental livro sobre a estética retórica
seiscentista, apresenta esse caráter divino da agudeza humana no capítulo de
abertura, do qual transcrevemos aqui as primeiras linhas:
“Um divino
parto do Engenho, mais conhecido pelo semblante, que pelo nascimento,
esteve em cada século junto de todos os homens, em tanta admiração. (...). Esta
é a Agudeza, grande mãe de cada engenhoso Conceito, claríssimo
lume da Oratória e da Elocução Poética, espírito vital da página morta,
agradabilíssimo condimento da Civil conversação, último esforço do intelecto,
vestígio da divindade no Ânimo humano.” (TESAURO, p.1, grifos meus)1
O movimento
retórico (e Acuto) foi o grande sopro estético que percorreu a Europa
durante o seiscentos. Advindo da boca do Barroco, esse sopro sustentava todas
as manifestações artísticas do período, configurando uma forma universalizada
de representação da arte, da oratória e da patrística. Movendo-se, então, de um
ponto a outro pelas estéticas humanistas, a noção de engenho como
produto da racionalidade se coloca como essência da composição de um juízo
dialético2 dos conceitos observados, que na práxis retórica
assume o “piacevolissimo condimento della civil conversatione” e reflete uma “vontade-de-estilo”.
Portanto,
esses conceitos (Concetti)3, apropriados pelo campo dos
sentidos, são a própria forma do pensamento traduzido em signo verbal – depois
em signo poético –, que comparados e aproximados dialeticamente fornecem o esprit
do Barroco: a metáfora. Usada largamente nas composições poéticas ao
longo da tradição literária, a metáfora é um recurso que não só é formado por
um processo racional de composição, como depende inteiramente da língua e do vocábulo
(“vedere in un Vocabulo solo, un pien teatro di maraviglie”4) para
se configurar. É a partir desta configuração que se articula, por meio da
agudeza, a junção de realidades distantes na esfera representativa, de modo a
que o espanto seja uma reação da percepção que terá o ouvinte/leitor da imagem
criada, e ao mesmo tempo seja a sua tentativa de devassá-la com seu próprio
exercício racional – um “pleno teatro das maravilhas”.
Essa
fulminação que a metáfora produz é consequência de um jogo, como resume
Tesauro,
“Engenhosíssimo,
verdadeiramente, porque o engenho consiste – como dissemos – no coligar o
remoto e o separado na noção dos objetos propostos: esta noção é o ofício da
Metáfora, e não de qualquer outra figura; porque atraindo para a mente não
menos que a palavra, [ela, a metáfora] dá um Gênero ao outro, exprime um
Conceito por meio de um outro muito diverso, encontrando na coisa dessemelhante
a semelhança.”5
Disso temos
que se não houver novidade na junção (accoppiamento), o engenho perde o
seu vigor e a metáfora sua força (o seu estranhamento, seu prazer). O elo no
encontro “in cose dissimiglianti la simiglianza” repousa no deslocamento de
sentido que o próprio conceito carrega: ou seja, a aproximação de dois
conceitos diferentes, gera um terceiro que além de ser a união dos dois outros,
apresenta uma nova inteireza semântica de composição. A metáfora, então, ao
contrário de outras figuras que “vestem” uma determinada ideia ou concepção de
uma palavra, veste a palavra de conceitos – “questa veste le parole medesime di
Concetti”6.
Para
atentarmos melhor a esses recursos, – a união, o deslocamento de sentido, a
composição de uma imagem mediante outras etc. – observemos um trecho do texto
da ópera do compositor italiano, Monteverdi, L’Orfeu.
Escolhemos
uma fala do próprio personagem Orfeu, que se encontra no primeiro ato:
Orfeu
Rosa del
Ciel, gemma del giorno7, e degna
Prole di lui
che l’Universo affrena,
Sol, che’l
tutto circondi e l’tutto miri, Dagli stellanti giri,
Dimmi: vedes
tù mai
De me più
lieto e Fortunato amante? Fù ben felice il giorno,
Mio ben, che
pria ti vedi, E più felice l’ora
Che per te
sospirai,
Poich’al mio
sospirar tu sospirasti (...)
(Orfeu,
Ato I, p.6)
Orfeu
Rosa do Céu,
gema da manhã, e digna
Prole, dele,
que o Universo frena,
Sol, que o
todo circundas e o tudo miras,
Das
estreladas voltas,
Dize-me:
vistes tu mais
Do que eu,
um ledo e Afortunado amante?
Foi bem
feliz o dia,
Meu bem, que
te vi primeiro,
E mais feliz
a hora
Que por ti suspirei,
Pois que ao
meu suspirar tu suspiraste (...)8
De pronto
nos sentimos pouco confortáveis diante da fala de Orfeu, ela é truncada, não
linear, e com uma sintaxe muito tortuosa. Mas, vamos adentrando passo-a-passo
para notarmos a beleza da construção das imagens e seu apelo junto a amada e ao
público.
Orfeu está
às vésperas de suas núpcias com Eurídice, a atmosfera é de alegria, de leveza,
o semideus canta para os bosques, para os pastores e para as ninfas, louvando
seu amor e sua amada. A grandiosidade deste amor se apresenta nas duas
metáforas que abrem a sua fala, e que depois vão conectar todas as outras
expressões, sempre de um modo alusivo a Eurídice: “Rosa del Ciel” e “gemma del giorno”.
Ambas se referem ao corpo celeste, o “Sol”, que só aparecerá como imagem plena
apenas dois veros mais adiante.
A euforia do
amante o faz perguntar ao próprio sol se este já havia conhecido algum ser que,
jazendo debaixo de seus raios, tenha amado mais do que ele naquele momento.
Para expressar isso de modo a impactar o leitor, o poeta traça um paralelismo
que aproxima o terreno do aéreo, dando a ver a desmesura de tal sentimento: se
de um lado temos a ‘‘Rosa’’ e a ‘‘gema’’ (pedra engastada), do outro temos o
‘‘Céu’’ e a ‘‘manhã’’, que se ligam por um esquema de correspondências:
Céu / manhã
Rosa / gema
Nessa
relação, os conceitos vegetal (rosa), mineral (gema) e espaço-temporal
(céu-manhã), se amalgamam numa traslata (para ficarmos com a expressão
dos tratadistas clássicos da retórica latina, Cícero, Quintiliano) que dá o tom
solar e pleno da fala do filho de Apolo.
Diante da
expectativa de seu ‘‘Imeneu’’, como diz o coro dos pastores e das ninfas,
Coro di
Ninfa, Pastori
Vieni,
Imeneu, deh, vieni, E la tua face ardente
Sia quasi un
sol nascente
Ch’apporti a
questi amanti i dì sereni,
E lunge
homai disgombre
Degli affani
e del duol gli orrori e l’ombre.
(Orfeu,
Ato I, p.5. Grifo meu)
a felicidade
de Orfeu chega a um paroxismo que é refletida por sua própria linguagem: ao
abrir seu canto, não saúda apenas o astro mais grandioso que traz luz aos mortais,
mas dirige-se também à terra e seus dons, e aos pastores que nela trabalham. A
imagem que nos penetra a mente é a de uma rosa de fogo, com pétalas ardentes que
dispende seus raios incandescentes para terra, que figura metaforicamente a
ardência de um pathos e a pureza da relação amorosa que o conceito “rosa”
carrega. Uma comunhão, portanto, que não só encarna a felicidade de um desejo,
como encerra em si o próprio mundo pastoril, na união de seus dois de seus topos
mais idílicos – terra e firmamento.
Mas é na
imagem seguinte, a hipérbole de um ethos despertado pelas palavras, que
há o reforço completo da ideia de lapidação na construção que a metáfora requer,
formando com ‘‘Rosa do Céu’’ o par solar e luminoso da representação.
“Gemma
del giorno” é uma imagem que faz o mesmo movimento de correspondência
vertical que sua irmã, “Rosa del Ciel”. Contudo, esse movimento, agora, opera
uma nova súmula que alude ao sol. A mistura entre o conceito terreno e o
celeste é encerrada na figura concreta da pedra: o sol seria, então, uma imensa
pedra luminosa que percorre o “stellanti giri” – “gemma”. Mas, ainda
cabe apontar mais um significado que está subtendido na metáfora da fala de
Orfeu: em italiano a palavra “gemma”, que é a mesma para o português ‘‘gema’’,
denota o sentido de pedra preciosa, com brilho; no entanto, se tomarmos um
dicionário latim-italiano encontramos a mesma palavra, “gemma; -ae; sub. masculino”
com um referente adicional, o de ‘‘olho’’. Com essa engenhosa montagem, a
imagem que nos acomete é a do sol como um olho que observa, parado, “Prole di
lui che l’Universo affrena”, o desenrolar da história dos mortais e dos imortais.
Tal cena,
que reflete a felicidade do casal divino e que a linguagem converte em forma,
não está resumida a uma afetação linguística, mas é construída com signos
poéticos que reforçam o tom do poema e não se dissolvem num mero
artificialismo, como muitos críticos avessos ao formalismo apontam; cumprindo,
assim, sua “vontade- de-forma” e seu arrebatamento, que a construção retórica
propõe. De tal modo isso é central na sustentação da obra, a ponto de podermos
dizer que em Orfeu o texto é dividido em duas instâncias de concepção da
metáfora: aquelas metáforas criadas antes da morte da amada Eurídice, como
analisadas acima; e aquelas concebidas após sua morte, quando as falas ganham
um tom lamentoso, obscuro, espelhando assim a descida ao Hades – a própria
imagem do céu ganha outras tintas de representação: “Cielo avaro”, “Ove
raggio di Sol giammai non giunse”.
Podemos
dizer, portanto, tratarem-se de “metáforas modelo”9, espalhadas pela
tradição da história da literatura e com reverberações em diversas representações
poéticas – para ficarmos com um exemplo de maior vulto, basta recordarmos como
Dante se refere ao sol, em seu Canto I do Paraíso: “la lucerna del mondo”10
Espero que
com essa pequena análise tenha conseguido dar a dimensão de como essa poética,
que vigorou no século XVII, sustentou uma visão de mundo, não só como influxo
histórico11 de representação das camadas letradas da Corte, mas como
processo de criação que se entranharia em todas as manifestações de linguagem,
reverberando séculos a frente nas correntes de vanguarda literária do
novecentos, que recuperaram o estudo e a leitura dos Metaphysical Poets12,
por exemplo; ou ainda, a retomada que fizeram de poetas como Góngora, Calderón
de Labarca, Sor Juana Ines de la Cruz, John Donne, Henry Vaughan e tantos
outros. Nesse sentido, o desprestígio e o esquecimento pelo qual passaram as práticas
dos estudos e das formas retóricas até o século XX se devem, em grande medida,
a uma resistência ao racionalismo que o Romantismo e o idealismo alemão trariam
consigo, defendendo uma visão de criação artística pautada pela inspiração e
pelo sopro do espírito ou gênio suprarracional.
Notas
1
Todas as traduções apresentadas aqui, dos trechos de Tesauro, serão minhas,
ilustrando propósitos meramente didáticos, sem a pretensão de reproduções
críticas ou estéticas. Segue o trecho no original, retirado do fac-símile
disponível online na Universidade de Torino: “Un divin Parto dell’Ingegno,
più conosciuto per sembianti, che per natali, fù in ogni Secolo, e apresso
tutti gli Huomini in tanta ammiratione. (...). Questa è l’Agutezza, Gran Madre
d’ogni ingegnoso Concetto, chiarissimo lume dell’Oratoria e Poetica Elocucione,
spirito vitale delle morte pagine, piacevolissimo condimento della Civil
conversatione, ultimo sforzo dell’Inteletto, vestígio della Divinittà
nell’Animo Humano.” (TESAURO, E. Il Cannocchiale
Aristotelico. Veneza, 1663). A
título de explicação,
a palavra “Ânimo” está atrelada a conceituação feita
por Aristóteles, depois retomada por Jung no estudo simbólico da divindade dentro
do corpo humano (cabe lembrar o mito de Prometeu e Epimeteu, e o fogo do
conhecimento roubado dos deuses, do Palácio de Atena, e dado aos homens).
2
“Na comparação dos conceitos, o juízo os decompõe dialeticamente, no sentido
dado ao termo ‘dialética’ no século XVII, ‘anatomia’ ou ‘análise’, para
estabelecer semelhanças e diferenças entre eles. No caso, o juízo é perspicaz,
penetrando nas mais recônditas partes dos conceitos analisados.
Simultaneamente, a versatilidade do autor sintetiza as semelhanças e diferenças
que foram achadas em uma forma nova e inesperada, que causa espanto ou
maravilha.” (HANSEN, João Adolfo. Retórica da Agudeza. São Paulo:
Letras Clássicas, 2000, nº4, p.318. Grifos meus).
3
“Désaje percibir, no definir; y en tan remoto asunto, estímese cualquiera
descripcíon: lo que es para los ojos la hermosura y para los oídos la
consonancia, eso es para el entendimiento el concepto.” (GRACIÁN, Baltasar; apud
CANTÓ, Eduardo Molina; CHIUMINATTO, Pablo. “Sobre la agudeza. Un capítulo del Catalejo
Aristotélico de Emanuele Tesauro”. In: Onomázein 9. Chile: 2004,
p.33.) Gracián foi outro grande teórico e poeta do século XVII, que contribuiu
de maneira muito profícua para a teorização da estética barroca, e para a
criação poética. Suas obras mais técnicas dialogam com as ideias de Emanuele
Tesauro, e oferecem um espectro bem amplo na discussão das figuras de linguagem
e dos mecanismos retóricos do discurso. São suas também as palavras sobre o conceptismo:
“palavra peregrina que velozmente indique um objeto por meio de outro.”
(Gracián, Arte de Ingenio).
4
TESAURO, 1663, p.246.
5
“Ingegnosissimo veramente peroche se l’engegno consiste (come dicemmo)
nel ligare insieme le remote e separate notioni degli propositi obietti: questo
apunto è l’officio della Metafora, e non di alcun’autra figura;
percioche trahendo la mente, e non men che la parola, da un Genere all’altro;
esprime un Concetto per mezzo di um’altro molto diverso, trovando in cose
dissimiglianti la simiglianza.” (Idem, ibidem, p.245).
6
Idem, ibidem.
7
Há uma variação neste verso, nos libretos que consultamos: do Boston Early
Music Festival, de 2012; e do site www.librettidopera.it
(2002). Ou se encontra como “gemme del giorno” ou “vita del mondo”. Optamos por
ficar com a primeira versão, por ser mais bela e apresentar uma imagem poética
tradicional.
8
Tradução minha.
9 Uso
aqui a expressão que Jorge Luis Borges emprega em seu texto, “La Metáfora”. Diz
Borges no mesmo texto: “Lo verdadeiramente importante no es que exista um
número muy reducido de modelos, sino el hecho de que esos pocos modelos admitan
casi un número infinito de variaciones. El lector interesado por la poesía y no
por la teoría de la poesía podría leer, por ejemplo, ‘Desearía ser la noche’, y
luego ‘Un monstruo hecho de ojos’ o ‘Las estrellas miran hacia abajo’, sin
dejar de pensar que estos versos remiten a un único modelo. (...) por supuesto,
podemos encontrar otras afinidades que son meramente asombrosas (...).’’ (BORGES,
Jorge Luis. “La Metáfora”. In: Arte Poetica – Seis Conferencias.
Barcelona: Crítica, 2001, p.24)
10
“Surge ai mortale per diverse foci / la lucerna del mondo; ma da quella / che
quattro cerchi giugne con tre croci (...)”(ALIGHIERI, Dante. “Canto I”. In. A
Divina Comédia – Paraíso. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p.14).
11
“As doutrinas italianas e ibéricas da agudeza dos séculos XVII e XVIII que
circularam nas colônias espanholas e portuguesas da América, principalmente por
meio das ordens religiosas, como a Companhia de Jesus – e novamente lembro os
tratados de Matteo Peregrini, Sforza Pallavicino, Emanuele Tesauro, Baltasar
Gracián, Francisco Leitão Ferreira – são uma interpretação neoclássica de
Aristóteles e de autores latinos. Todas elas incluem-se na racionalidade de
Corte das monarquias absolutistas e propõem a agudeza como a forma própria das
boas maneiras de falar e agir do cortesão. Lembro, com isso, que a agudeza deve
ser entendida como uma categoria histórica, ou seja, como um modo de pensar e
uma forma poética específicos do Antigo Regime, não como a futilidade afetada e
vazia de que ainda vão falando os nossos manuais de história literária
caudatários do idealismo alemão.” (HANSEN, op.cit., p.322)
12
Me reputo, aqui, ao ensaio de T. S. Eliot, de mesmo nome, publicado em 1921.
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