O Boom, modelo para desarmar
Por
Verónica Boix
Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares. |
Julio Cortázar chamou os leitores passivos, que não aceitam desafios, com o triste célebre designativo “leitor feminino”. Mas, além do óbvio menosprezo, a associação deixa à
vista os males de uma sociedade patriarcal no século XX. Não é de estranhar,
então, que nenhuma mulher tenha constituído parte do chamado Boom
Latino-americano. Assim, seria impossível pensar a literatura atual – e a
inusitada vitalidade que as mulheres imprimem – sem antes faltar sobre as escritoras
latino-americanas que em meados do século passado já utilizavam as letras de
forma transgressora, revelando-nos subjetividades novas e emoções complexas.
Se já um
processo literário que acontecia nos países da América Latina ou uma invenção
publicitária impulsionada pela agente literária Carmen Balcells, o certo é que
o Boom captou em diversos escritores características essenciais: a busca de uma
identidade local e a inovação estética são algumas delas. Mas, essa perspectiva
excluiu as mulheres. Se sabe que na mesma ocasião em que Gabriel García Márquez
escrevia Cem anos de solidão (1967) e Carlos Fuentes publicava A
morte de Artemio Cruz (1962), existiam escritoras igualmente talentosas
que exploravam os limites da linguagem literária.
Basta pensar
em Silvina Ocampo, Sara Gallardo, Hebe Uhart e Lilian Heker, para compreender a
maneira como suas obras renovaram as letras. E isso se replicava, de uma forma ou de outra, em todo o continente.
Em Cuba, por
exemplo, alguns anos antes da Revolução, a etnóloga e escritora Lydia Cabrera
investiga, inspirada pelas vanguardas francesas, as influências da cultura
africana que alimentavam a cultura de seu país. Assim escreve os contos célebres
reunidos em Contos negros de Cuba (1940) e neles funde a cosmologia e as
fabulações sobre animais e consegue propor uma realidade do maravilhoso e do
lendário da ilha natal. A escritora adianta o que alguns, poucos anos mais tarde, fariam como autores do Boom: abre a porta aos mitos religiosos e tradicionais que
caracterizam a peculiaridade de sua região.
Acontece
algo parecido com duas escritoras mexicanas: Nellie Campobello e Elena Garro. A
primeira mostra sua visão feminista da revolução em Cartucho, romance
publicado em 1931, que antecipa muitas das características mais tarde atribuídas
exclusivamente a Juan Rulfo: a multiplicidade de registros de linguagem, as
frases objetivas, o silêncio, a comunhão entre o homem e a natureza, as metáforas
com características que antecipam o realismo mágico.
Por sua vez,
alguns anos mais adiante, Garro desenvolve sua própria literatura e experimenta
com sua capacidade de criação literária. Mas, passa esquecida para o mundo
intelectual e permanece à sombra de seu companheiro Octavio Paz com que esteve
casada de 1937 até 1959. Muito perto do Boom mas nunca parte dele, Garro
acompanhava Paz em seu trabalho como diplomata e vai se convertendo na
escritora que o mundo esqueceria para só resgatar depois de sua morte.
Muitos
críticos a destacam como precursora do realismo mágico, mas ela dizia que isso
era tão somente uma etiqueta mercantilista. Tanto faz, as características desse
chamado novo gênero se anunciam com vitalidade em As lembranças do porvir
(1963), seu grande romance, que constrói uma voz coletiva interessada em
recuperar a memória de uma pedra; a partir dela revela para o leitor seu futuro,
um destino já conhecido.
Isso explica
o total repúdio da cinta que envolvia a recente reedição desse romance que, ao
invés de ressaltar suas qualidades, dizia “Mulher de Octavio Paz, amada por Bioy Casares, musa de García Márquez e amiga de Borges”. É preciso dizer que
fatores extraliterários – o amargo divórcio de Paz e a grave e séria comprovada
delação de estudantes nos dias anteriores à matança da Praça de Tlatelolco em
1968 – serviram de justificativa para o seu esquecimento.
Costuma-se
dizer que o esquecimento das escritoras obedece ao fato de ainda as mulheres de
então não terem acesso igualitário à educação em relação aos homens, que elas não
tinham publicidade, ou simplesmente, que eram reclusas ao nicho da “literatura
de autoria feminina”. Mesmo assim, a Diretora do Doutorado em Literatura Latino-americana
e Crítica Cultural da Universidade de San Andrés, Florencia Garramuño, prefere
buscar as razões mais relevantes nas características próprias do fenômeno:
“O
Boom foi exclusivo e excludente em termos de fenômeno editorial e literário:
era um grupo fechado em torno de uma série de elementos próprios muito específicos.
As mulheres foram excluídas, assim como outras minorias. Além disso, foi um
clube notadamente machista. García Márquez disse numa entrevista que odiava as
mulheres metidas a intelectuais. Agora, o mais importante é que o tipo de literatura
do Boom – pelo menos a dos mais paradigmáticos – também pode se identificar com
certo machismo da escrita: um tipo de escrita notadamente assertiva,
autoritária, não aberta à diferença, ao outro, muito autocentrada. Basta pensar
em O jogo da amarelinha e sua divisão entre leitores machos e fêmeas
para se dar conta desta evidência, que além de tudo, se encarna na criação
de uma personagem como a Maga, insuportável.”
Clarice Lispector. |
Escrevendo em
português, Clarice Lispector é uma das escritoras que reunia todas as condições
para ser incluída no fenômeno, mas ficou de fora. A inovação na subjetividade
narrativa, outra de suas qualidades, se torna inclassificável. É preciso ler Água
viva para compreender a desmesura de uma voz que busca a matéria viva da
linguagem. Além disso, era uma figura deslumbrante, intelectual, com um evidente universalismo público. Mas, a primeira romancista brasileira a
conseguir romper os limites de sua própria redoma foi Nélida Piñón, e só nos anos
1990.
Enquanto
Clarice Lispector permanecia isolada como uma estrela no céu literário de seu
país, Cortázar deixava transluzir sua visão complacente sobre a violação,
falava sobre um olhar mais generalista acerca do lugar das mulheres na
sociedade. Para começo, em O livro de Manuel (1973), o
protagonista Andrés Fava tenta levar ao limite suas ânsias de revolução sexual
e em várias ocasiões impõe sua sexualidade à força. É constrangedora a cena
noturna em que leva Francine a um hotel e termina abusando sexualmente dela.
Uma ideia semelhante
aparece no conto “O anel de Moebius”, o último texto de Queremos tanto a
Glenda (1980), que relata minuciosamente um abuso sexual, como se uma ode ao estupro. Mas além da óbvia divisão entre narrador e autor, o certo é que ambas
ficções expõem uma cultura de gênero que atravessava as literaturas da época.
Compensações
contra a indiferença
Nesse
sentido, a pesquisadora da Universidade de Buenos Aires e que foi diretora do
Instituto de Estudos de Gênero da Faculdade de Letras, Nora Domínguez, revisitou
ao longo de seus estudos as formas em que a mulher aparece na literatura
argentina e compreende que a exclusão delas obedeceu a um fenômeno generalizado:
“Os processos de emergência ou institucionalização de movimentos ou grupos
literários em geral surgiram nos circuitos masculinos. Assim estiveram distribuídas
as funções dentro do sistema literário, isto é, diferenciadas por gênero:
literatura masculina e literatura feminina”.
E acrescenta:
“Não quer dizer que não existia escritoras: existiu nomes importantes nas
vanguardas, em certa fase da captação do mercado do Best-Seller nos tardios
anos 1950 na Argentina (Silvina Bullrich, Betriz Guido, Marta Lynch), também no
mesmo período dos anos 1960 e 1970. E nos 1980, fase talvez posterior ao Boom,
contou com um reconhecimento um pouco mais amplo de escritoras”.
“Peri Rossi,
Garro, Gallardo, Armonía Sommers, Rosario Ferré, Lispector, Diamela Eltit foram
lentamente reconhecidas para além e apesar do êxito do Boom com ficções que
colocavam a experimentação com a linguagem e o corpo no centro de suas preocupações
estéticas. Por isso, talvez poderia se pensar que chegaram mais tarde à literatura
ou que suas contribuições se perceberam fora do tempo, isto é, foram lidas
depois”.
“O reconhecimento
das escritoras foi uma fita elástica que adquiriu mais força nas décadas
seguintes até o limite de em 2020 chegar a se falar sobre um Boom de
escritoras. Qualquer dessas categorias que validamos teria que tomá-las com
delicadeza, adaptá-las a outros códigos e avaliações atuais e aí se verá o que
se resta em cada grupo e produz o quê. Nesse espaço as diferenças estéticas
podem ser abismais e dividir as águas entre as escritoras”.
Independente disso, as
mulheres não se deixaram intimidar e construíram com suas obras literaturas
imensas. Impossível seguir sem falar da ousadia de Rosario Castellanos. Apesar de
ter o reconhecimento devido, nem mesmo a atenção publicitária, chega a se
converter na mulher do México. Escreve poesia, ensaios, artigos e finalmente
consegue certo reconhecimento com sua obra narrativa, que denota uma grande
honestidade para expor a vida interior, a rebeldia do espírito feminino num
mundo dominado por homens.
Desde seu
primeiro e ambicioso romance Balão Canaã (1957), Castellanos se destaca
pela construção de uma história total que conta os enfrentamentos entre os
povos originários e os latifundiários na época colônia. Nas suas narrativas
fala sobre o aborto, a morte de uma filha, a infância triste e o amor tóxico. Seu
estilo experimenta com o tempo e as perspectivas narrativas, a linguagem oral,
o resgate de outras línguas, o fantástico e a cultura popular, todas as chaves
que caracterizaram os autores do Boom.
Algo
semelhante acontece com Libertad Demitrópulos, que mesmo considerada por
Ricardo Piglia uma das melhores escritoras argentinas é melhor reconhecida entre os da
academia. É interessante o que alcança com Rio das angústias, o romance sobre
a segunda formação de Buenos Aires, uma polifonia conformada pelas vozes de
dois mestiços, uma crioula e um negro. Toda sua obra está repleta de marginais,
bastardos, heroínas, índias, prostitutas, crioulas, inglesas.
Valeria Luiselli |
O mapa e os
territórios
Antes de
oferecer respostas conclusivas, para pensar o tema, a escritora argentina Elsa
Drucaroff, Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora da UBA, prefere abrir
novas interrogações: “Também existiu bons escritores homens que por motivos injustos
não foram incluídos no Boom. É preciso entender o que aconteceu para pensar sem
prejuízos como funciona a discriminação às mulheres na arte. Publicam-se mais
escritores, certo, mas se publicavam escritoras que vendiam muito”.
“Eram muito
conhecidas Bullrich, Guido, Lynch e outras. Mas não se levava a sério o que
elas escreviam. Vendiam muito, assumia-se que escreviam ‘coisas de mulheres’,
nas autoras citadas, coisas de senhoras burguesas. Diziam que Silvina Ocampo
escrevia contos policiais ou fantásticos com procedimentos clássicos. A incompreensão
ante uma obra tão diferente, original e politicamente incorreta, só se explica
pelo desinteresse sexista. Então, se o cânone não levava a sério a literatura
das mulheres e o público leitor tampouco, se um êxito de vendas ‘provava’ que
eram frívolas, por que o Boom Latino-Americano ‘deveria’ tê-las incorporado? A
obra original de Fina Warschaver não foi invisível apenas para o Boom; nem a
crítica, nem as editoras a registraram. À inusual busca de Sara Gallardo não se
prestou qualquer interesse, apesar do respaldo oferecido pelo jornal La
Nación. Angélia Gorodischer foi respeitada pelo gueto da ficção científica,
suposto ‘sub-gênero’. O talento de Griselda Gambaro não passou esquecido pelo
teatro, mas o bloqueio masculino a dramaturgas atacou com ferocidade porque se
atrevia às formas vanguardistas. O Boom Latino-Americano foi um fenômeno patriarcal
e o patriarcado estava completamente naturalizado, como esteve a escravidão na
Grécia ou tantas outras atrocidades de hoje. Trata-se de pensar como deixamos
de naturalizar o atroz”.
Poderia
Valeria Luiselli construir o notável Deserto sonoro sem os ecos de
Nellie Campobello ou Rosario Castellanos? Como imaginar Mariana Enríquez sem as
infâncias sinistras dos contos de Silvina Ocampo? E Selva Amada sem as imagens
do campo e as personagens de Sara Gallardo? Ainda assim, o mundo cultural
desses tempos insistia associar a intelectualidade ao homem. E não qualquer
tipo de homem, apenas os autores seguros de si próprios, capazes de desafiar as
convenções e construir regras próprias em suas obras.
Uma anedota serve
para mostrar isso: no Uruguai, a futura escritora ainda jovem, Cristina Peri
Rossi aproveitava a ausência de seu tio para ler os livros de sua biblioteca,
até que um dia o homem lhe perguntou se havia notado quantos livros de mulheres
havia nas estantes. Ela descobriu que eram apenas três: Alfonsina Storni, Virginia
Woolf e Safo. A mensagem era clara: as mulheres não escrevem, mas quando o
fazem, se matam.
Todavia há outra
leitura alternativa possível para entender o fenômeno, que lança luz na
individualidade de cada autora mais que a centralidade do Boom. Essa é a perspectiva
que elege Domínguez: “Quando as mulheres começaram a escrever com maior constância
não formaram grupos próprios, seguiram seus projetos onde estiveram e não existiu
uma referência direta ao Boom. Suponho que para muitas era um ponto de
referência do qual queriam se distanciar e não se reconhecer nele. As forças do
que se escreveu depois foram tão ricas e produtivas que ser ou não canonizadas
pelo Boom não importava ou não era negócio”.
Nem o desinteresse,
nem a marginalização, nem as sentenças lapidares dissuadiram as mulheres, que
continuaram escrevendo. E, quem sabe se deixando-as de fora do Boom não fizeram um
favor. Garramuño é enfática: “Muitas das características da literatura
contemporânea vêm mais delas que do Boom. O Boom, se pode repetir, não produziu
filhos. Mas o protagonismo da experiência, o descentramento da narrativa, o
discurso aberto, tão característicos de certa literatura contemporânea,
encontra na literatura das mulheres suas raízes”.
Por fim,
estar nas margens parece ter dado às escritoras uma perspectiva fora do cânone que
lhes permitiu abrir novas perguntas, mostrar as diferenças e as ambiguidades
dos sentimentos, dos vínculos, da identidade. Daí, a grande influência que
essas autoras – donas de uma voz poderosa – têm na literatura contemporânea.
Ligações a esta post:
* Este
texto é a tradução de “El Boom, modelo para desarmar”, publicado aqui, no
jornal Clarín.
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