Marca, memória e literatura
Por Paula Luersen
Em 28 de
março de 1941, Virginia Woolf encheu os bolsos de pedras e entrou no rio Ouse.
O marido, Leonard Woolf, era obsessivamente meticuloso, e manteve na vida
adulta um diário no qual registrava todos os dias as refeições e a
quilometragem do carro. Aparentemente, não houve nenhuma diferença no dia em
que sua mulher se suicidou: ele registrou a quilometragem do carro. Mas, diz a
biógrafa Victoria Glendinning, a página dessa data está borrada, com “uma
mancha amarela pardacenta que foi esfregada ou enxugada. Podia ser chá, café ou
lágrimas. É o único borrão em todos os anos de um diário impecável”. (James Wood)
Uma mancha
isolada em um diário acurado. Uma marca que sofreu a tentativa de apagamento,
borrada e enxugada, como para ser esquecida. Não se sabe sua origem ou sua
exata constituição – chá, café, lágrimas? Dela só se sabe que permanece,
representando um elemento de diferença em um caderno que reunia a catalogação
obsessiva de atividades cotidianas. Esse episódio, destacado por James Wood no
livro Como funciona a ficção (2011) nos ajuda a perceber a diferença entre uma
memória devotada à lógica linear dos fatos – a lista em que Leonard Woolf dá
conta de informar, dia após dia, sobre suas refeições e a quilometragem do
carro – e uma memória outra, que vai além do que o diário dá a ver, denunciada
por uma marca ímpar dentre páginas imaculadas.
Tal
acontecimento evidencia diferentes modos de relação com a memória, mas penso
que também nos fala sobre o que buscamos ao escapar da nossa escrita diária – a
memória do eu – para buscar a literatura – a memória de outrem, a memória das
marcas. Suely Rolnik diferencia no texto Pensamento, corpo e devir: uma
perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico (1993) a memória
ligada à narração de eventos, de uma memória habitada pelas marcas de vibrações
de coisas do corpo. Enquanto a primeira, feita de fatos, diz respeito a um
relato que segue o encadeamento cronológico – como no diário de Leonard – a
segunda, feita de marcas, não pode ser apreendida por uma sequência linear,
justamente por partir de um conceito que dispensa a ideia de cronologia: as
marcas.
Marcas são,
nas palavras de Rolnik, estados inéditos que se produzem em nosso corpo, a
partir das composições que criando à medida em que vivemos, cada um destes estados
constitui uma diferença e instaura uma abertura para a criação de um novo
corpo. A marca, uma vez posta em circuito, continua sempre viva e tem a
potencialidade de voltar a reverberar quando atrai e é atraída por ambientes
onde encontra ressonância.
Assim como
não se chegou à conclusão sobre a origem da mancha “amarela e pardacenta” dos
cadernos de Leonard, é difícil determinar a origem das marcas definidas por
Rolnik: elas compõem uma memória do invisível, feita de textura ontológica, cerzida
pelos diferentes fluxos que se encadeiam dentro do vivenciar cotidiano. Em
resposta à lógica dos encontros, elas podem gerar novas linhas do tempo assim
como se deu com a biógrafa Victoria Glendinning que, ao perceber a marca, passa
a admitir a intersecção entre as ações de Leonard e de Virginia, para além dos
fatos relatados no diário, criando uma nova possibilidade de linha de tempo: a
história do casal, dos encontros entre biografias.
Sendo assim,
caberia àquele que procura trazer à tona a textura das marcas, perseguir o que
ainda está no plano de uma memória do invisível. Não estaria aí o que nos toca
na literatura? Desafiar a cronologia dos fatos para tatear em busca de marcas
que ressoem em nosso corpo. Coisas que nos façam sentir e saibam nos deslocar daquilo
que nos soa excessivamente familiar.
Como
identificar, no entanto, essas marcas? Suely Rolnik dá pistas de como fazê-lo
ao citar o livro Artes (1996) escrito por Sônia Lins em homenagem à irmã, a
artista Lygia Clark. O livro traz episódios da infância compartilhada que
revelam a intimidade do convívio entre as irmãs, ainda crianças. Para Rolnik, a
escrita desse livro não é composta de uma memória do eu – fatos ou mesmo
segredos vivenciados e narrados por Sônia – mas de uma memória composta por
marcas. Como, por exemplo, quando Sônia escreve sobre a lembrança do encontro
noturno das irmãs com a escada que as levava ao dormitório, referida a partir
de uma sensação: “O medo subia [as escadas] pisando calcanhares”. A escritora
alude ao que lhe ficou marcado como reminiscência. Aborda, assim, no dizer de
Rolnik, a magia de uma região invisível da subjetividade, onde as coisas são
vivas e suas reverberações no corpo destacam-se, ganham autonomia e geram
mundos inesperados.
A partir
desse e de outros exemplos, a autora mostra ser possível captar esse outro tipo
de textura, de uma memória do invisível. Passamos, então, à ideia de que se as
marcas estão atuantes certamente se fazem ver em algum âmbito, transpassando
pensamentos e textos. Elas são evidenciadas e se atualizam nos momentos em que
encontram ressonância, nos recompondo continuamente: o pensamento corporifica
as marcas, o texto as encarna.
Buscar na
literatura uma memória do invisível. Será isso que fazemos quando analisamos ou
apenas nos entregamos à leitura de uma obra literária? Gostaríamos de escapar
de uma memória do eu, do que se passa no correr dos dias, para acessar uma
memória outra, que se faz texto através das marcas?
As
refeições, as horas, os quilômetros continuarão presos ao diário. Mas a dúvida que
corporifica a marca certamente nos interessa mais. Chá, café ou lágrimas.
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