Lasca, de Vladímir Zazúbrin


Por Pedro Fernandes

Vladímir Zazúbrin, Novosibirsk, 1918.  


A certa altura do segundo capítulo de Lasca, o narrador que acompanha Srúbov, um agente da Tcheká, Comissão Extraordinária para Luta contra a Contrarrevolução e Sabotagem, primeiro órgão de segurança da União Soviética, antecessor da KGB, o narrador registra o encontro da personagem com uma carta do pai que assim diz: “Pense nos milhões de torturados, fuzilados, aniquilados para erigir o edifício da felicidade humana... Você está errado... A humanidade futura recusará a ‘felicidade’ criada sobre o sangue das pessoas...” Este excerto, sem desprezar toda a sua dimensão profética, pode ser tomado como uma síntese sobre um livro que atravessou as fronteiras do horror e se tornou numa das primeiras peças sobre um regime de dor e morte cujas marcas são indeléveis na história do povo russo.

O que acompanhamos nas poucas páginas dessa novela é a crise de uma consciência que, mesmo obnubilada pelos interesses de uma ideologia, não deixa de hesitar entre a renúncia e denúncia. Sem se preocupar com a transformação dessa consciência, nem em assumir uma posição ou outra, Vladímir Zazúbrin propõe uma leitura acerca das contradições do poder que em muito se ajustam às próprias contradições humanas, estas capazes de levar o homem a atitudes que, por mais próximas que sejam de si, deixam de ser percebidas como descabidas. No caso de Lasca, isso é visto na certeza de controle de uns sobre a vida de outros.

O conflito de Srúbov reside entre a ação e a palavra. Integrado ao ideal revolucionário, compreende que o poder sobre as vidas alheias é um princípio moral pelo qual deve zelar pela vida e memória daqueles que no passado recente foram submetidos às forças brancas. Por outro lado, receia o julgamento imposto por aqueles que estão fora dos impasses ideológicos de poder que nele e nos tchekistas veem a mesma face da moeda do regime anterior. A percepção de Srúbov como carrasco aliada à sua tentativa de reconhecimento no interior de uma engrenagem e sua temível dedicação ao sonho comunista leninista constitui um epicentro de tensão que destitui qualquer certeza acerca de um mero embate de forças de poder.

Uma visão apressada sobre o impasse que constitui essa narrativa pode atender a duas leituras questionáveis: certo medo do narrador em assumir esta ou aquela posição ideológica; certa justificação dos horrores comunistas na recém-nascente União Soviética. A primeira possibilidade se desfaz integralmente quando colocamos em relação este livro e a atitude política do escritor. Vladímir Zazúbrin atuou desde cedo nas agitações políticas de oposição ao regime czarista e, mais tarde, expulso Partido Comunista, é morto logo no início do poder stalinista sob a acusação de integrar uma organização de terrorismo e sabotagem do regime. Parece que, preservar aquela leitura é reafirmar a condição de incompreendido que repousa desde sempre sobre sua obra.

Dizer que Lasca instaura certa justificativa dos rumos ensandecidos do poder vermelho é outra conclusão inválida e tão perigosa quanto a que quer reduzir a novela de Zazúbrin entre as obras que constituíram uma denúncia acerca do regime. Embora essa segunda possibilidade vigore no variado conjunto de descrições de cunho expressionista sobre o horror, seu interesse reside não na superfície descritiva-documental e sim no interior dessa engrenagem feita de homens. Ao apresentar assim, o escritor reafirma que toda ideologia não está situada acima ou à parte dos homens, tampouco se oferece enquanto uniformidade.

Logo, o que prevalece é uma leitura acerca das contradições de um modelo de poder cuja ordem foi se colocar no lado oposto do poder dominante e ao assumir a mesma posição de dominância (ou antes disso) recai no mesmo modelo de usura conhecido. Ao desconstruir o poder enquanto unidade ou diferença, a narrativa rompe com outras dicotomias, sobretudo aquelas que separam os homens entre bons e maus ou que este regime foi necessário à civilização. Todo regime, pela própria natureza do termo, parece condenado a repetir os mesmos princípios de sempre.



Ao oferecer uma imagem sobre o cotidiano do carrasco ou este como um homem comum (“Srúbov era um combatente, um camarada, e a pessoa mais comum, de olhos humanos e grandes”) e apresentá-lo através dos embates de sua consciência, Lasca produz uma reflexão que nos desobriga pensar que os executores do mal são exclusivamente maus. Há um episódio descrito no final do sexto capítulo que é singular: o narrador apresenta pelo ponto de vista do prédio da Gubtcheká a brincadeira de seus funcionários que atiram uns contra os outros bolas de neve: “os tchekistas, como alunos que saíam na rua para o recreio, começaram a atirar neve uns nos outros, com guinchos. [...] Srúbov ficou coberto de branco da cabeça aos pés.” E isso nada tem a ver com compaixão para com o mal – é sim a dura constatação sobre a ingovernabilidade das determinações; o desfecho trágico do protagonista aponta perfeitamente sobre.

Do episódio citado acima e do fim de Srúbov destacam-se algumas questões interessantes de pontuar com alguma atenção. A primeira é a maneira como o narrador de Lasca apresenta a sede da Tcheká: o narratário é levado pelo seu interior de labirintos que findam no grande galpão de execução; depois, visto de fora, a narrativa apresenta algo da história do espaço, antes um agrupamento comercial onde se identificava à entrada a inscrição “Vinho. Secos. Molhados. Innokenti Pchenátsyn”, agora, “Comissão Extraordinária da Província: Gubtcheká”. Nos dois casos, entretanto, assinalando-se duas temporalidades distintas, homens e coisas aparecem alinhados como produtos. Essa sutileza reanima o que dissemos acima sobre a invariabilidade dos regimes.

O prédio branco de três andares com inscrições vermelhas por vezes adquire o estatuto de personagem, testemunha dos horrores, das maquinações dos líderes da Tcheká, das suas indecisões e, como vimos, das suas alegrias. Há dois instantes na narrativa que são singulares; neste, o narrador reitera o espaço enquanto ponto de vista, no seguinte, o prédio é transmutado no sonho de Srúbov em grande máquina de matar, o símbolo máximo oferecido neste livro.

“À noite, o prédio branco de pedra de três andares, com a bela bandeira no telhado, tabuleta vermelha na parede, estrelas vermelhas nos gorros dos vigias, fitava a cidade com os olhos famintos brilhantes e quadrangulares das janelas, arreganhava os dentes congelados dos portões gradeados de ferro fundido, agarrava, mastigava braçadas de presos, engolia-os com as goelas de pedra dos porões, digeria-os na barriga de pedra e, como escarro, baba, suor e excrementos, cuspia-os, escarrava-os, expelia-os na rua. E, à alvorada, cansado, bocejando com rangido de dentes e maxilar de ferro fundido, punha para fora do portão as línguas vermelhas de sangue. // De manhã, os olhos quadrangulares das janelas embaçavam e enegreciam, ardia mais intenso o sangue da bandeira, das tabuletas, das estrelas dos gorros dos vigias, eram mais ardentes as línguas de fogo do portão, lambendo a calçada, a rua, os pés dos transeuntes trêmulos. De manhã, o prédio branco, impertinente, insistente, apalpava a cidade com tentáculos metálicos de fios, os prédios com tabuletas multicoloridas das instituições soviéticas.”

“Srúbov sonhou com uma máquina enorme. Havia muita gente nela. Os maquinistas principais, nos postos de comando, acima, manejavam as alavancas, giravam as rodas, miravam ao longe sem parar. Por vezes inclinavam-se no peitoril da passarela, abanavam as mãos, gritavam algo para os trabalhadores de baixo e sempre apontavam para a frente. Os de baixo carregavam o combustível, bombeavam a água, corriam com o lubrificante. Estavam todos magros e negros de fuligem. E bem embaixo, junto às rodas, giravam discos de corte reluzentes. Perto deles, os colegas de trabalho de Srúbov – os tchekistas. Os discos giravam em uma massa de sangue. Srúbov deu uma olhada – eram vermes. Em colunas rastejavam para a máquina, vermes vermelhos e moles, ameaçando obstruir, estragar seu mecanismo. Os discos cortavam-nos, cortavam-nos. Uma massa vermelha crua caía sob as rodas, arrastando-se na terra. Os tchekistas não se afastavam dos discos. Um cheiro de carne perto deles. Srúbov só não conseguia entender por que não era crua, mas frita.”

É verdade que em nenhuma parte do sonho de Srúbov – e esta é apenas a primeira – se apresenta a sede da Tcheká, mas a leitura anterior pressupõe-na. Afinal, toda volição onírica da personagem é ora o resultado de seu longo dia de estafa na máquina da morte, onde desempenha funções que vão da recepção de queixas ao interrogatório de presos, da vigilância ao acompanhamento das execuções na sede do comando. Esta incorpora o papel de centro da União Soviética, de onde emana todo poder e controle; estranha máquina alimentada de dor e de carne humana.

Vale sublinhar dessas descrições as relações entre as cores branca e vermelha. A recorrência ao longo da narrativa preenche sentidos variados: ora o tratamento histórico, distintivo entre czaristas e bolcheviques, do antigo e do novo regime, ora o simbolismo da paz e da violência, da resignação e da luta. Numa passagem, o próprio Srúbov questiona as razões da escolha do vermelho como designativo do regime resultado da revolução pelas sugestões negativas remetidas pela cor, ou por que nesse cenário, o pensador transformado em seu ideólogo, Karl Marx, se apresenta vestido de branco na imagem que se mostra numa das salas da sede da Tcheká. Mas, outra vez, a dinâmica das cores não se apresenta como determinação pura e simples de polos em oposição. Note o leitor que, além de um Marx vestido de branco, o prédio da Tcheká também é branco. Tudo isso pode ser lido como uma sutil maneira do narrador de questionar quais os limites que separam e superam o antigo d/o novo regime. O branco é ainda um signo de aparência enquanto à cor vermelha, signo da revolução, sobram as referências do oposto à luta. O sonho de Srúbov reafirma isso. É uma retomada do seu dia-a-dia como carrasco e ao mesmo tempo uma imagem premonitória.

Aqui chegando alcançamos a segunda questão das observadas antes das citações apresentadas acima; ela se liga muito proximamente com a premonição do sonho: vermes vermelhos tragados pela máquina da morte. É o fim de Srúbov e, por conseguinte da revolução. A União Soviética, como qualquer regime autoritário, não matou apenas opositores, mas aqueles que mais se dedicaram aos ideais da revolução. Da variedade de contradições oferecidas pela novela de Vladímir Zazúbrin esta talvez seja a maior delas. Se pensarmos na biografia do escritor soviético, Lasca foi a profecia de seu próprio autor. E, no entanto, bem sabemos que nada disso tem a ver com previsão; mas com a compreensão aguçada de um verdadeiro revolucionário. Há algo que esta novela sugere para todos nós: deixar-se perder pelas ideologias é a pior das atitudes de um homem. É verdade que nada escapa da ideologia, mas estar são é estar sempre à espreita.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual