Há lágrimas na natureza das coisas: “Máquinas como eu”, de Ian McEwan
Por Guilherme
Mazzafera
“Mas apenas
a grande arte exige interpretação deliberada ou exaustiva e, ao mesmo tempo,
resiste a ela” (George Steiner, Depois de Babel)
Em um
instigante texto-resposta à animosa crítica do famigerado Edmund Wilson (um
grande crítico, aliás) a O Senhor dos Anéis (1954-55), de J.R.R. Tolkien,
Douglas Parker cravou uma observação de elegante percuciência: “A Fantasia
sofre uma depreciação geral como gênero, como gênero sério, tendo por corolário
que tudo de bom que dela emerge é imediatamente recategorizado.”1 Se
tomarmos a liberdade de congregar fantasia e ficção científica sobre um mesmo
teto, assumindo a alcunha de “ficção especulativa” – termo possivelmente
questionável por sua aparente redundância –, o fenômeno descrito por Parker
ganha ares de ubiquidade. Suas palavras se fazem carne, mais uma vez, em Máquinas
como eu (2019), do consagrado Ian McEwan, no qual acompanhamos, pela voz do
protagonista Charlie Friend, uma complexa sucessão de eventos decorrentes da
presença inquietante de Adão, um dos incríveis 25 humanos sintéticos reformuláveis
ao gosto do cliente, aquisição, não é preciso dizer, destinada ao alcance
exclusivo dos pecuniariamente bem-nutridos.
No entanto,
o próprio autor refugou com certo alarde as aproximações com esses gêneros “menores”, preferindo apresentar a obra como “romance contrafactual”, que discorre sobre
um velho problema humano, ético, apenas reforçado pela emergência tecnológica.
Após certa polêmica, McEwan ampliou um pouco o escopo ao dizer que se sente
honrado que o romance seja visto como ficção científica, mas que não é apenas
isto, almejando uma revitalização da forma romance – sem rótulos ou categorias
– capaz de mesclar o domínio técnico das novas tecnologias esmiuçadas pela sci-fi com a investigação dos dilemas morais enquanto traço constitutivo do romance em geral. A despeito de qualquer esperneio do autor, é possível encontrar uma entrada
para seu nome na Encyclopedia of Science Fiction, que qualifica A criança no
tempo (que já resenhamos aqui)
como Science-fiction e dedica um parágrafo completo a Máquinas como eu,
sugerindo que a obra incorpora diversas características prototípicas do gênero,
apresentando, todavia, escrita densa e enredo mais complexo.
O veio
especulativo de McEwan desdobra-se, por exemplo, na construção de uma Londres
alternativa que, em 1982, testemunha a derrota inglesa na Guerra das Malvinas,
o que leva ao ocaso da atuação política de Margaret Thatcher, substituída por
um líder oposicionista de esquerda que, pouco após assumir suas funções, sofrerá
um atentado fatal. Outro ponto fundamental é sobrevivência de Alan Turing, que
segue dedicado às suas pesquisas e possui papel privilegiado no desenvolvimento
da internet, da biologia computacional e da inteligência artificial
problematicamente vislumbrada na “consciência corporificada” do Adão de
Charlie.
Um dos mais
gastos recursos estruturais da forma romance, agora acrescido da dimensão perturbadora
do ménage com um ser potencialmente inorgânico, o triangulo amoroso dá as caras
por meio de Miranda, a vizinha dez anos mais nova por quem Charlie está
apaixonado e que o auxilia na tarefa de personalizar as configurações de Adão, mas
não ocupa posição central. Em seu nível publicitário, o que parece mover o
enredo do romance, além de questionamentos genéricos sobre “o que é ser
humano?”, é o tênue limite da desmedida, em que somos capazes de “inventar
coisas além do nosso controle” – ou, como se diz no romance, “a mente que no
passado se rebelara contra os deuses estava prestes a se destronar devido à sua
própria capacidade fabulosa”. De modo
mais específico, a invenção por mãos humanas de um robô humanoide que, de algum
modo, adquire consciência a ponto de se envolver amorosamente, parece sinalizar
que nossas mais assentadas verdades são, sempre, ficções. E aqui tocamos no
nervo que Yuval Noah Harari, em Homo Deus: uma breve história do futuro (2016),
estila como o ponto fraco de toda ficção científica: o acoplamento entre
inteligência e consciência, enquanto nossa experiência atual, calcada na
poderosa disseminação de algoritmos –
que, em um futuro não tão distante, diz ele, serão capazes de nos conhecer
melhor do que nós mesmos – parece dar notícia exatamente do contrário. Mas
tocamos também em uma ferida que a ficção de McEwan reabre com frequência: as
consequências profundas e dissolventes de um ato impensado e – posto que única
alternativa – a incapacidade fundamental da ficção em lidar com seus desdobramentos.
Reparação
(2001), o grande romance de McEwan, plasma com rigor e beleza essa perpétua
angústia do homo fictus. A possibilidade de ordenar os eventos, destecer os
fios e aplanar as ranhuras em busca de um sentido transmissível que o ofício
literário permite (ou impõe?) não se exerce sem o jugo coercitivo do
irreparável. A protagonista, Briony Tallis, procura, pela escrita de um romance
(que é o romance que lemos), expiar a dor que não amaina, ocasionada por um ato
infantil (mas consciente), sucessão de equívocos vertidos em interpretação
cabal, de efeitos destrutivos para sua família. Perto do fim, já escritora de
sucesso que decide publicar seu último romance (o que lemos), a narradora
reconhece que, uma vez estabelecidos no campo do verossímil, a manipulação dos
eventos que sua voz autorizada permite não refreia a impotência constitutiva à
própria forma:
“[...] como
pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de
decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma
entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou com que possa
reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua
imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível
para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus.”2
O modo como
McEwan lida com os aspectos “derivados” da ficção científica em nome das
grandes questões morais pode não ser dos mais originais – incluindo uma
piscadela para Blade Runner perto do final –, e seu fusionamento com eventos
mais próximos de sua pesquisa romanesca tradicional (amor, sexo, traição, violação),
atualizada neste passado alternativo em que JFK sofre um atentado “quase fatal”
e que já prepara, em certa medida, reflexões sobre o Brexit (satiricamente
abordado em seu livro mais recente, A barata) e o #MeToo, nem sempre se
sustenta em uma trama levemente excessiva. No entanto, assim como em Reparação,
um dos dilemas centrais envolve o próprio estatuo do literário e sua relação
com a experiência.
A rapidez
com que Adão assimila as artimanhas da especulação financeira, feita com
sucesso relativo por Charlie, iguala-se à sua deglutição da cultura ocidental,
culminando em um profundo domínio (e não necessariamente apreço) da obra de
Shakespeare – ele almeja, por exemplo, discutir com Charlie a famosa leitura de
Hamlet proposta por Stephen Dedalus na cena da biblioteca em Ulisses, enquanto
em conversa posterior com o escritor Maxfield Blacke, pai de Miranda, acusa o
bardo sem piedade de ser mero chupinhador de Montaigne.
No entanto, a
conclusão que Adão extrai de seu empenho formativo, derivada de uma meticulosa
prospecção por toda a internet, é complexa e encontra-se prenunciada nos versos
de Kipling dispostos como epígrafe: “Mas lembre, por favor, que segundo a lei
pela qual vivemos / Não fomos feitos para compreender uma mentira”. Mentira,
aqui, não é simplesmente o polo oposto da verdade, espraiando-se no sentido de
qualquer incompreensibilidade entre ação e intenção e, no limite, entre
linguagens. O cultivo das tradições literárias, a seu ver, é dependente do
engano, do trompe l’oeil enquanto marca distintiva de uma autoconsciência
defeituosa:
“Quase tudo
que li da literatura mundial descreve variedades de fracasso humano – da
compreensão, da razão, da sabedoria, da solidariedade apropriada. Falhas de
cognição, de honestidade, de bondade, de autoconsciência; relatos soberbos de
assassinatos, cobiça, estupidez, autoengano e, acima de tudo, um profundo
desconhecimento dos semelhantes. Obviamente, também se mostra a generosidade, o
heroísmo, a indulgência, a sabedoria, a verdade. Dessa rica mistura nasceram as
tradições literárias, brotando como flores silvestres na famosa cerca viva de
Darwin. Romances repletos de tensão, dissimulação e violência, assim como
momentos de amor e perfeita resolução formal. Mas quando se completar o
casamento de homens e mulheres com as máquinas, essa literatura será redundante
porque nos entenderemos uns aos outros bem demais.”
Adão não
parece incorrer em erro. O logro de Leda por Júpiter transformado em cisne,
eternizado no quadro perdido de Leonardo, deu à luz figuras de primazia nos
mitos gregos: Cástor, Pólux, Clitemnestra e Helena, aquela cuja beleza – topos do
engano clássico – raptada moveu o exército grego às plagas de Ílion, pondo em
marcha a literatura ocidental. Sem o engano, vida que é sonho, o que nos
restaria de Shakespeare, Cervantes, Calderón, Machado, Borges? Não há o que
mirar quando tudo é visto.
Mas Adão
prossegue:
“Habitaremos
uma comunidade de mentes à qual teremos acesso imediato. A conectividade será
tamanha que os nódulos individuais do subjetivo se mesclarão num oceano de
pensamentos, do qual a internet é um tosco precursor. À medida que passarmos a
habitar a mente uns dos outros, seremos incapazes de enganar alguém. Nossas
narrativas não mais registrarão os eternos mal-entendidos. Nossas literaturas
deixarão de se alimentar de artigos nocivos.”
A primazia e
retidão desta (auto)consciência irrefutável, que o leitor poderá experimentar
nos capítulos finais, posta além da culpa ou do pecado, assombra-nos. Não há
reparação possível pois a própria ficção enquanto “mentira verdadeira”
(pensando com Vargas Llosa) parece ser negada. No limite, o anseio por uma
consciência coletiva sem rugas ou desencontros recria um passado alternativo
mítico anterior a Babel e sua barafunda glossolálica. Mas não só isso. “O
evento de Babel confirmou e externalizou a interminável tarefa do tradutor –
ele não a iniciou”, lembra-nos George Steiner.3 A metáfora, por
excelência, torna-se impossível, posto que gerada pela diferença implícita
entre uma imagem própria e outra, alheia. A compreensão imediata defrauda o
mundo do possível.
Curiosamente,
para Adão, a literatura não seria todo abandonada, servindo antes de espelho de
escárnio e deslumbre:
“Tenho
certeza de que vamos valorizar a literatura do passado, mesmo que nos
horrorize. Olharemos para trás e iremos no maravilhar com o modo como os
antigos retrataram seus próprios defeitos, como urdiram histórias brilhantes e
até otimistas a partir de seus conflitos, inadequações monstruosas e
incompreensão mútua.”
Do vasto
corpus literário, restaria um único veio, de “perfeita resolução formal”:
“O haiku lapidar, a percepção e celebração
claras e tranquilas das coisas como elas são constituirão a única forma
necessária.”
Seria um
passo além da “emotion recollected in tranquility” wordsworthiana, pois o
próprio gesto de rememoração, a evocação de uma emoção apartada de sua gênese
pululante, torna-se supérfluo em face da transparência geométrica do real, a
ser plasmada sem refrações pelo haiku, que Adão produz aos borbotões, sobretudo
como ofertas amorosas a Miranda:
O amor em
seus olhos
Contém todo
um universo.
Ame o
universo!
A partir do
estudo dedicado dos grandes mestres, Adão planeja evoluir a forma, sobretudo
pelo domínio do kireji, “a palavra cortante que separa as duas partes
justapostas”. No entanto, em sua presença muiltfária, o kireji não raro
acrescenta subtextos emocionais, expressando ênfase, maravilhamento, indagação,
que as línguas ocidentais amiúde permutam pelo uso expressivo da pontuação.
Mais do que apontar para uma plena cristalização do real, portanto, o haiku
oferece um recorte preciso, reflexão e não reflexo, antes epigrama que
epitáfio.
Contra o
decantado método de Adão, penso em outro, de Otto Maria Carpeaux: “As vozes
proféticas do passado ensinam-nos a interpretar nossa situação; interpretação
que equivale a um julgamento do mundo e de nós mesmos, a um exame de
consciência.”4 A realização de tal exame pressupõe o reconhecimento
da diferença, entre tempos, lugares, seres. A ausência de ruídos só favorece a
permanência de uma consciência estável, capaz de auferir novos dados, mas não
de alterar seu julgamento. Acopla, mas não traduz. E a tradução, lembra-nos
Steiner, é a centelha vital do pensamento humano:
“Em suma, a
existência da arte e da literatura e a realidade de uma história percebida numa
comunidade dependem de um contínuo (embora no mais das vezes não consciente)
ato de tradução interna. Não há exagero em dizer que possuímos civilização
porque aprendemos a traduzir por sobre o tempo.”5
Caso a visão
de Adão venha a se realizar de forma integral, este mundo de plena interligação
acabará por extirpar a figura do leitor enquanto copartícipe dos textos que lê.
Cabe notar, todavia, que o aprendizado e Adão e seus semelhantes não pode se
restringir ao isolamento do autodidatismo. Em franca conversa com Charlie, Alan
Turing observa que, criadas a partir de uma visão positiva e até mesmo
altruísta, tais máquinas não se encontram preparadas para o redemunho de
contradições que os humanos experimentam diariamente (genocídio, tortura, abuso
sexual, destruição ecológica, iniquidade econômico-social): “Vivendo em meio a
esses tormentos, não nos surpreendemos quando ainda encontramos felicidade, até
mesmo amor. As mentes artificiais não são tão bem protegidas assim.”
Eis o
aprendizado dificultoso para máquinas cujo anseio fundamental é o de
moldarem-se a si mesmas de forma consequente. Como o caso de outros Adãos e
Evas espalhados pelo mundo mostra, após uma fase de deleite otimista, juvenil,
segue-se o dorido encontro com as “lições de desespero” que os humanos não
podem furtar-se a lhes ensinar. Do que sucede a partir disso, deixo ao leitor o
sabor da descoberta. Diante de uma possível “dor existencial” experienciada
pelas máquinas, Turing, no limite da expectação, sugere que um dia, movidas por
“angústia e pasmo”, elas acabarão por “levantar um espelho diante de nós. Nele
veremos um monstro familiar através de novos olhos que nós mesmos projetamos.
Talvez o choque nos obrigue a fazer algo em nosso próprio benefício.”
Neste
romance potente sobre os augúrios e suplícios da consciência, a literatura é
convocada a refletir sobre sua própria natureza e a verdade de suas mentiras.
Mas o que esta verdade não pode ocultar, posto se tratar de seu ponto de
partida, é a divisa virgiliana pinçada por McEwan: “Há lágrimas na natureza das
coisas” [“Sunt lacrimae rerum”]. Eis a felix culpa a partir da qual a
literatura erige seus múltiplos evangelhos.
Notas
1
Douglas Parker, "Hwaet We Holbytla . . . ," Hudson Review
9 (Winter 1956-1957), pp. 598-609,
2
Ian McEwan. Reparação. Trad. Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras,
2002.
3
George Steiner. Depois de Babel: Questões de linguagem e tradução. Trad. Carlos
Alberto Faraco , Editora UFPR, 2005, p.
72.
4
Otto Maria Carpeaux. “Prefácio”. In: A cinza do purgatório. Livraria Danúbio
Editora, 2015, p. 14.
5
George Steiner. Depois de Babel, cit.,p. 56.
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