Diário de leitura (parte um): Os Miseráveis, de Victor Hugo a Ladj Ly


Por Rafa Ireno
           
Caros leitores, sinto dizer que comecei a escrever minha tese. Infelizmente, tudo o que não seja a tese míngua neste período, inclusive, as leituras. É um paradoxo no final das contas. Porém, ah porém, como sou teimoso e contraditório, resolvi ler Os Miseráveis de Victor Hugo. Na verdade, tal incumbência foi instigada pelo filme de mesmo nome de Lady Ly. Eu gostaria de ter escrito demoradamente sobre o romance, mas não teve jeito. Então, devagar, dia após dia, fui anotando coisas num diário, onde anoto coisas, e decidi compartilhar isso com vocês. São curiosidades e considerações críticas apelando à bondade, a qual sei que existe apesar dos tempos difíceis (refiro-me à escrita de minha tese e não ao horror do governo atual) dos frequentadores do Letras para com este pobre colunista. É a primeira parte, outras duas seguirão conforme avanço nas páginas do Hugo. Peço também a vocês paciência e que acreditem em mim, as coisas melhorarão… (agora, da situação política que falo). Boa leitura!

23 de dezembro (à tinta azul)

Ladj Ly, o diretor de Les Misérables diz, ao ser interpelado pelo repórter, no festival de Cannes, não saber se esse tipo de filme já foi feito na França: –  “Na verdade, não importa, nós, nós queremos contar outra história”. Ele é da periferia de Paris. Afirma, igualmente, que sempre tinha uma câmera nas mãos, desde criança, mas começou a fazer cinema, de fato, ao registrar um excesso policial no seu bairro, que postou na internet e cuja repercussão fez com que as pessoas envolvidos fossem afastados. A arte, na periferia de qualquer lugar, responde a uma urgência material da sobrevivência do corpo, individual e social. Isso, na criação artística, condiciona as relações entre ficção e realidade.

31 de dezembro (à tinta preta de uma caneta emprestada do vizinho)

A senha é H027, estou na prefeitura de Créteil para resolver coisas do visto. Enquanto espero, por causa do Ladj Ly, leio o romance de Victor Hugo. Estou na parte em que ele explica como Napoleão perdeu a batalha de Waterloo (2º parte, Livro 1): foi vontade divina! Ainda que o Imperador tivesse a maioria numérica no campo de batalha, a lama da chuva impediu a progressão da artilharia e a estratégia foi prejudicada. Vai demorar! Tem muita gente hoje. Um senhor, do meu lado esquerdo, puxa conversa assim para depois dizer que é Argelino. Percebeu um sotaque diferente no meu francês. Sabe que não sou daqui, não advinha donde sou, Portugal? Cordialmente, retomo minha leitura: era preciso que o gigante, continuam as linhas d’Os Miseváveis, morresse para que o século pudesse, finalmente, começar em 1815… Até engraçado as reviravoltas da narrativa para defender que a Inglaterra e a Prússia não saíram vitoriosas da guerra, nem a França derrotada. A cada bip do painel levanto a cabeça mesmo sabendo que não é meu número. Segundo a nota (de Guy Rosa) no e-book, Hugo viajou até a Bélgica, pousou ali dos dias 7 de maio ao 21 de julho de 1861, aliás, registrou em seus diários, no dia 30 de junho, a seguinte frase: “Eu terminei Os Miseráveis no campo da batalha de Waterloo e no mês de Waterloo”. Ele precisava pisar no chão antes de terminar a grande obra.

Na minha esquerda, gostando do nome do livro, o senhor insiste na conversa, pergunta-me se pedirei a nacionalidade. A réplica é quase tão rápida quanto minha resposta: – “Também nunca quis ser Francês! Mas, toda vez é a mesma ladainha, troco de endereço, tenho que pegar essa fila para declarar na prefeitura”. De súbito, uma amiga me conta, numa lembrança, anos atrás, como se o café de setenta centavos da máquina fosse o chá da madalena do Proust, que, quando passava pelo processo de nacionalização, a única pergunta literária na cartilha era – qual escritor mais representa o espírito da França? Aparentemente, a resposta correta é Victor Hugo.

05 de Janeiro (à tinta azul)

A primeira anotação que tenho, no leitor digital, é de 17 de novembro. Não lembro. Devo ter começado a ler Os Miseráveis nesta época. Foi antes de ver a versão do Ladj Ly, queria achar as relações entre o livro e o filme. A leitura não é penosa, apesar das mais de 1800 páginas, avança até que depressa... A obra foi publicado em 1862. Victor Hugo tinha 60. Ele mescla originalmente as técnicas dos romances populares de Eugène Sue e Alexandre Dumas com seu instinto dramático, épico e monstruoso. O próprio Dumas, numa carta a seu filho, disse detestar pela desproporcionalidade. Hugo começava com uma montanha e terminava o capítulo num camundongo. Infelizmente, a tese, os poemas e a louça suja na pia dificultam prever o término. Estou apenas a 26%

8 de janeiro (a lápis)

Só agora me dei conta: Os Miseráveis saiu trinta anos depois de Notre Dame de Paris, ou seja, ele era mais novo do que eu ao escrever a história de Quasímodo!

É um perigo quando um livro ganha o nome “clássico”, porque ele perde suas limites quase de súbito, os delineamentos históricos são apagados, dando a impressão que caíram do céu e foram parar direto no legado cultural da humanidade. Se pertencem dois ao mesmo autor, o processo é pior.

15 de janeiro (à tinta azul)

Resolução (atrasada) de ano novo: voltar a fazer listas de leitura. Em 2019, eu não marquei nada. Retomarei esse hábito em 2020. Gosto de fazer isso, mas, já tem um problema: como contar este romance? São cinco volumes: I. Fantine II. Cosette III. Marius, IV. Idílio da Rua Plumet e epopeia da Rua Saint-Denis, V. Jean Valjean, mas um só livro.

24 Janeiro (à tinta vermelha)

Charles Baudelaire, em 1862, escreveu um artigo elogioso sobre a primeira parte da narrativa hugoliana, porém, no mesmo ano, no mês de agosto, na intimidade, o autor de Flores do Mal (1857) enviou uma carta a sua mãe, Mme Aupick, dizendo que Os Miseráveis é “imundo e inepto” e, continuo traduzindo as palavras do poeta: “Eu mostrei, sobre este assunto, que possuía a arte de mentir. Ele [Victor Hugo] me escreveu, para agradecer, uma carta absolutamente ridícula. Isso prova que um grande homem pode ser um tolo…”. Vixi!

31 de janeiro (à tinta azul)

Sempre evitei filmes ou séries que adaptam obras literárias que eu quero ler, então, não sabia quase nada sobre Os Miseráveis, por exemplo, ainda não cheguei na personagem Gavroche, mas descobri que Hugo gostava de desenhar e, em 1850, enquanto trabalhava no romance, desenhou a criança com onze anos:



10 de fevereiro (à tinta azul com muitas rasuras)

Os Miseráveis não ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro ontem. É uma pena. Eu estava torcendo, porque é uma narrativa capaz de mudar o olhar convencional que se tem da França, aliás, que ela mesma tem de si. A escrita, direção e produção foram feitas na periferia de Paris. Ladj Ly, o diretor, é de Montfermeil, e a maioria do elenco também. No Brasil, algumas pessoas o compararam a Cidade de Deus (2002) de Meirelles ou Tropa de Elite (2007) de Padilha. Eu discordo! O roteiro dos Miseráveis não exibe uma narrativa explicativa como nos filmes brasileiros. Não há nenhuma necessidade de preencher o enredo, mostrando a origem das coisas, dando tudo para que o público, de fora, compreenda as coisas. Parte dos efeitos de contar outra história está na transformação da audiência. A construção da tensão, que é a chave nos Miseráveis, vale-se de traços implícitos para retratar as violências da realidade francesa. A produção de Meirelles, por exemplo, tem um quê de exotismo na representação do pobre, que não se sente nas linhas de Paulo Lins – o autor do romance que deu origem ao cinema. Ly, como Lins, não cai num exotismo de si mesmo. Em termos cinematográficos, no Brasil, ele se aproximaria mais do pessoal da Filme de Plástico – fazendo Arte periférica de qualidade.

À suivre...



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