Boletim Letras 360º #366



DO EDITOR

1. Durante a semana confirmamos outros dois nomes que integram agora o grupo de colaboradores do Letras in.verso e re.verso: Felipe de Moraes, selecionado da última chamada realizada em janeiro de 2020; e Antonio Alves, autor que se propôs a escrever esporadicamente para o blog textos de matriz crítico-reflexiva entre a filosofia e a literatura sobre temas variados.

2. O gesto de Antonio Alves pode ser o de todo leitor do Letras interessado em colaborar com este projeto. A participação no blog, volto a lembrar, é aberta aquele que guarde bons textos e queira compartilhar com novos leitores. Para saber como enviar seu trabalho basta visitar aqui; encontrará todas as informações e normas para adequação dos textos.

3. Este Boletim, notarão, está recheado de notícias sobre novos livros. Trata-se de um volume simplesmente maravilhoso de boas novidades numa semana atípica para as editoras. Afinal, algo de bom deve se notar entre tantas circunstâncias negativas e agravadas pela mediocridade dos nossos governantes.

4. O BO Letras 360º é uma publicação semanal que reúne informações disponibilizadas (ou não) na página do Letras no Facebook. Obrigado pela companhia e, boas leituras!

Nova antologia com poemas de Wislawa Szymborska amplia presença da poeta no Brasil. Foto: Judyta Papp




LANÇAMENTOS

Segundo volume com textos sobre a recepção de Machado de Assis.

Complementando o primeiro volume do livro, publicado pela Imprensa Oficial de São Paulo em 2019, que abrangeu o período de 1908 a 1939, o volume 2 de Machado de Assis segundo seus pares acompanha a recepção crítica de sua obra até o centenário da morte do escritor em 2008. Organizado por Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn, o livro reúne impressões de grandes vultos literários, tais como Ariano Suassuna, Oswald de Andrade, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Ferreira Gullar, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles, entre outros.  Algumas das polêmicas em torno de Machado são igualmente debatidas, como o seu silêncio em relação à infância, o suposto posicionamento abstencionista aos grandes movimentos sociais e políticos do seu tempo, até a clássica e perpétua dúvida de se Capitu teria realmente traído Bentinho. A seleção de escritos apresentada na edição compreende mais de 70 autores e é resultado da abrangente pesquisa realizada na Fundação Casa de Rui Barbosa, Biblioteca Nacional, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Instituto de Estudos Brasileiros e Biblioteca Florestan Fernandes, tendo como guia os cadernos de recortes de Plinio Doyle; além de textos extraídos de livros.

A casa na Rua Mango, de Sandra Cisneros, é o novo título no catálogo da editora Dublinense.

Esperanza tem um nome mexicano, origens mexicanas, aparência mexicana, mas nasceu nos Estados Unidos e mora num decadente bairro de Chicago. Nesse contraste cultural, ela observa a vida dos vizinhos e das amigas para aprender a construir sua própria identidade. Em fragmentos do cotidiano, a autora de A casa na Rua Mango nos apresenta um panorama do universo de Esperanza e costura uma linha que vai da infância envergonhada da menina à tomada de consciência e início do amadurecimento. Um romance ao mesmo tempo leve e intenso, no qual as vozes latinas reverberam com a força da prosa singular de Sandra Cisneros. A tradução do livro é de Natalia Borges Polesso.

Terceira coletânea de poemas da vencedora do prêmio Nobel e um dos nomes mais cultuados da literatura polonesa.

Depois dos festejados Poemas (2011) e Um amor feliz (2016), Para o meu coração num domingo reúne 85 poemas da voz que encantou o mundo com seus versos afiados, que misturam rigor formal, pitadas de ironia e tom levemente coloquial. No poema que dá título ao livro, Wislawa Szymborska anuncia: “Você tem setenta méritos por minuto./ Cada contração tua/ é como o lançar de uma canoa/ no mar aberto/ numa viagem ao redor do mundo”. Com organização e tradução de Regina Przybycien e Gabriel Borowski, este conjunto de poemas trata de experiências cotidianas, amor, sonhos, morte, filosofia, mitologia, história e antropologia, sempre com o olhar curioso, generoso e bem-humorado de uma das poetas mais extraordinárias do século XX.

Nova edição de Ressurreição, de Liev Tolstói.

Lançado em 1899, o último livro de Tolstói aborda a tensão social, os privilégios da Justiça e a situação carcerária da Rússia às vésperas da Revolução. No tribunal para compor o júri que vai definir o futuro de Máslova ― prostituta acusada de roubar e envenenar um cliente ―, o príncipe Nekhliúdov reconhece os olhos da serva por quem, no passado, se apaixonou. Depois de seduzi-la e abandoná-la, ele agora se vê às voltas com a difícil decisão de incriminá-la ou salvá-la da sentença. Para Natalia Ginzburg, que assina o prefácio desta edição, “nos romances de Tolstói, descoberta e compreensão se desenvolvem e crescem quase sob nossos olhos, num ritmo de festa solene; e cada romance, cada destino de cada personagem se encerra numa festiva e solene celebração da realidade”. A tradução de Rubens Figueiredo havia sido publicada pela extinta Cosac Naify e sai agora pela Companhia das Letras.

Dois projetos do organizador de Cartas extraordinárias

1. Um volume de trinta cartas excepcionais escritas por, para ou sobre mães que evocam as alegrias e tristezas que a maternidade traz para pais e filhos.

Aos quinze anos, Winston Churchill recebeu uma carta em que sua mãe demonstrava estar decepcionada com seu boletim escolar. “Fui preguiçoso”, ele responde. Neste livro, Shaun Usher reúne essas e outras correspondências inesquecíveis que têm as mães como protagonistas. Amáveis, espirituosos ou doloridos ― às vezes mais de uma coisa ao mesmo tempo ―, os escritos oferecem um retrato tão emocionante quanto complexo dessa relação intrínseca à nossa existência. O livro reúne cartas de Otto Lara Resende, Caitlin Moran, Sylvia Plath, Martin Luther King Jr., George Bernard Shaw, Laura Dern, Louisa May Alcott, Bette Davis, Richard Wagner e muitos outros.

2. E outro com cartas de amor

Neste volume estarrecedor, Shaun Usher se debruça sobre um dos temas que mais move a existência humana: o amor. Revelando os desejos mais profundos do coração através das palavras de famosos e anônimos, essas trinta cartas ― passionais, doloridas, ternas ou raivosas ― reconstituem esse sentimento universal em todas as suas formas e oferecem um retrato emocionante do que significa amar e ser amado. Com cartas de Machado de Assis, Paulo Mendes Campos, John Steinbeck, Simone de Beauvoir, Ludwig van Beethoven, Frida Kahlo, Johnny Cash, Nelson Mandela e muitos outros. A tradução das duas coletâneas é de Mariana Delfini e os livros são publicados pela Companhia das Letras.

Chão Editora revisita o Brasil agrário sob a perspectiva de suas personagens em duas edições com diários.

1. Brazilia Oliveira de Lacerda nasceu um ano antes da abolição da escravatura. Bisneta de visconde (do Rio Claro), neta de barão (de Arary) e nora de conde (do Pinhal), foi não apenas uma legítima representante da elite agrária paulista, mas também, revela-se agora, uma de suas raras cronistas. Quando morreu, em 1966, aos 79 anos, deixou na gaveta diversas recordações de vida, preservadas em pequenos cadernos pautados, preenchidos de próprio punho. Os manuscritos presentes nesta edição cobrem treze desses anos. O primeiro caderno tem como ponto de partida a chegada da família à fazenda Paraizo, em São Carlos do Pinhal, e retraça as experiências vividas por Brazilia dos seis aos dez anos. O segundo caderno vai até seu 16º aniversário. O terceiro tem início no dia em que Brazilia completa dezessete anos, em 24 de maio de 1904, e termina logo depois de seu casamento com o primo Carlos Amadeu de Arruda Botelho, ocorrido cerca de dois anos mais tarde. Os principais cenários de suas recordações são a fazenda Paraizo, onde vivia com seus pais e irmãos, e São Paulo, onde a família passava dois meses por ano na casa que mantinham na capital. Nos dois cenários, sobressaem costumes ditados pela tradição e pela temporalidade dos cafezais. Com seu olhar atento e minucioso, Brazilia recorda as brincadeiras com os irmãos e primos, as aulas em casa com preceptoras europeias, a relação com os empregados da fazenda, as festas no terreiro, as receitas de doces, a lida diária nos cafezais, o trabalho de costura e de contabilidade da fazenda, as touradas na praça da República e o convívio com a alta sociedade paulistana nas temporadas na capital. Com descrições pormenorizadas do cotidiano, os registros aqui publicados reforçam a dimensão histórica da economia cafeeira na transição do século XIX para o século XX e jogam luz sobre a atuação feminina em domínios historicamente tratados como exclusivos dos “barões do café”. Preparada para desempenhar o único papel que cabia às mulheres da época, Brazilia terminou legando para a posteridade um ponto precioso para entender a história do Brasil. Dias ensolarados no Paraizo é publicado com com posfácio de Jorge Caldeira.

2. Nascida em Rio Claro, no interior do estado de São Paulo, em 1874, Floriza Barboza Ferraz fazia parte de uma tradicional família da elite rural paulista. Até o início da adolescência, teve ao lado dos treze irmãos uma vida idílica em meio à natureza, na fazenda do “Pitanga”, propriedade dos pais ainda mantida pelo trabalho escravo. Com a Abolição, contudo, o pai de Floriza não se adaptou às novas relações de trabalho e vendeu a propriedade para viver com a família em Piracicaba. Num primeiro momento, a mudança não significou muito para a adolescente, que tinha planos de tornar-se freira. Aos dezenove anos, no entanto, por insistência da família, casou-se por arranjo com Antônio Silveira Corrêa, cunhado de um de seus irmãos. O matrimônio foi uma ruptura radical na vida a que estava acostumada. Três anos mais tarde, Floriza e o marido deixaram o conforto da cidade e embarcaram em um vapor da Companhia Fluvial de Navegação, numa viagem longa e difícil rumo ao então inóspito Oeste paulista. Levavam consigo os dois primeiros filhos (um tinha menos de dois meses e outro, pouco mais de um ano) e uma “menina como pajem”. A missão do casal era plantar café na terça parte que lhes cabia de uma propriedade comprada pelo sogro de Floriza. Floriza descreve o lento e árduo trabalho de constituição de sua fazenda do Engenho, no município de Lençóis Paulista — então praticamente uma terra de ninguém —, processo do qual participou ativamente. Com riqueza de detalhes e numa linguagem simples e direta, Floriza relata as dificuldades do desbravamento daquela região na virada do século XIX para o XX, com escassez de médicos e ameaças constantes de incêndios, bandoleiros, cobras venenosas e saúvas; a convivência com as famílias de colonos italianos e espanhóis; o nascimento dos filhos, em casa, em condições muito precárias; a luta, até mesmo física, para manter o lugar social de sua família de origem. Escritas em 1947, aos 73 anos, como simples remédio “para desabafar o coração”, sem nenhuma intenção de publicação, estas Páginas de recordações revelam-se um documento histórico ímpar ao registrar, entre outros aspectos, a importância do trabalho feminino na implantação das fazendas de café no sertão paulista. Uma prova de como, no fio do tempo, todo registro particular se torna parte da memória coletiva de um país. Páginas de recordações é publicado com posfácio de Marina de Mello e Souza.

O novo livro do poeta Fabiano Calixto é editado pela Corsário Satã.

FLIPERAMA é o oitavo livro do poeta brasileiro e conta com poemas compostos na última década, solidificando uma trajetória inquieta, iniciada nos anos 1990. Os poemas do conjunto perscrutam, através de uma multiplicidade de timbres e registros, a vida e suas tensões, as flores e os horrores das ruínas do nosso convulsivo tempo. Como bem observa, no prefácio do livro, o poeta e crítico Rodrigo Lobo Damasceno: “FLIPERAMA é um jogo, diverte ao mesmo tempo em que cavuca as melhores memórias de tempos inocentes e os mais intensos instantes de alegria dentro da amizade e do amor – mas é, também, uma espécie de bomba disposta a abdicar de apegos passadistas que facilmente pendem para o conservadorismo. daí, por exemplo, que a bomba atue contra a própria ideia da arte, contra a forma do poema, que às vezes surge esburacado, às vezes aparece ao revés – e, outras tantas, aposta numa conversa radical com a tradição radical do concretismo e suas apostas contra o verso (afinal, o poema ou o decassílabo mais perfeito, de cara com o fatal ano de 2012, tornam-se o mesmo que as unhas, os talheres da família, o pensamento ou tarkovsky: areia). não há inocência neste fliperama – o jogador conhece o jogo, e sabe que o jogo é sujo, tanto que, diante da escultura luxuosa e de traços perfeitos, não hesita em fechar a resenha lembrando que a fortuna é resultado de sangrentos saques coloniais. vital privilégio dos desprivilegiados: intrusos que são numa tradição aristocrática e que só quer, a qualquer custo, se conservar (e que só pode se conservar mantendo longe os intrusos), estão pouco se fodendo para esses alicerces – sempre que podem, explodem a fundação da casa onde só poderiam entrar para servir. e este fliperama não serve a ninguém: debaixo dos céus rústicos dos subúrbios, só quer estar com os da sua laia, os tantos severinos de mesmas águas de pias, os membros da akademia dos párias, aqueles formados nas esquinas de aula da universidade desconhecida.”

Dois novos títulos da Âyiné editora para ampliar o debate sobre assuntos do contemporâneo dão forma a nova coleção.

1. Das três ideologias dominantes do século XX – fascismo, comunismo e liberalismo –, apenas o liberalismo resiste. Isso criou uma situação peculiar: os proponentes do liberalismo tendem a esquecer que este é uma ideologia, e não o estado final natural da evolução política. Como defende Patrick J. Deneen neste livro provocador, o liberalismo fundamenta-se em uma série de contradições: advoga igualdade de direitos enquanto promove uma desigualdade material sem precedentes; a sua legitimidade baseia-se no consenso e, no entanto, desencoraja os compromissos cívicos em prol do privatismo; defende a autonomia individual, mas deu origem ao sistema estatal mais abrangente da história humana. Neste livro o autor adverte: as forças centrípetas que se fazem sentir na nossa cultura política não são falhas superficiais, mas características inerentes de um sistema cujo sucesso está gerando seu próprio fracasso. “O liberalismo fracassou – não por não ter sido capaz de atingir suas metas, mas por ter sido fiel a si mesmo. Fracassou por ter sido bem-sucedido. À medida que o liberalismo “se tornou mais plenamente o que é”, à medida que sua lógica interna se tornou mais evidente e que suas contradições internas ficaram mais manifestas, geraram-se patologias que são a um só tempo deformações de seu discurso e realizações da ideologia liberal.” Por que o liberalismo fracassou? foi traduzido por Rogerio W. Galindo.

2. Racismo, fanatismo, sentimento antidemocrático. Em um espaço público cada vez mais polarizado, impõe-se um pensamento que só permite duvidar das opiniões dos outros, nunca das próprias. Carolin Emcke – uma das intelectuais europeias mais interessantes de sua geração – opõe a essa homologação a riqueza de uma sociedade aberta a diferentes vozes: uma democracia se realiza plenamente apenas com a vontade de defender o pluralismo e a coragem de se opor ao ódio. Com esses anticorpos, podemos derrotar os fanáticos religiosos e nacionalistas, que fabricam consenso, mas têm medo da diversidade e do conhecimento, as armas mais poderosas que temos. A tradução de Contra o ódio é de Mauricio Liesen.

Coletânea de todos os escritos de Epicuro, um dos filósofos antigos mais influentes na modernidade, Cartas e máximas é uma introdução para a filosofia do bem viver.

Os ensinamentos do filósofo grego Epicuro atraíram legiões de adeptos em todo o mundo antigo e influenciaram profundamente o pensamento europeu moderno. Embora tenha enfrentado oposição hostil por séculos após sua morte, Epicuro tem Thomas Hobbes, Thomas Jefferson, Karl Marx e Isaac Newton entre seus muitos admiradores. Dentre os pensadores antigos, ele seria o verdadeiro pai de ideias e tendências filosófico-científicas, como a base materialista do marxismo, o princípio de incerteza da física quântica, a ideia de seleção natural, o problema da vontade livre, a doutrina da vida em comunidade afastada da política e, por fim e não menos importante, o repúdio à crença em castigos após a morte. Talvez ele seja o autor mais antigo no gênero do “manual de autoajuda”. Neste volume, que inclui todos os escritos existentes de Epicuro, o leitor encontrará as três cartas dedicadas aos discípulos do filósofo, bem como o conjunto de sentenças e aforismos que sobreviveu até nossa época. Sistema filosófico de importantes desdobramentos tanto no período helenístico como no romano, o epicurismo continua atual. A tradução do grego, apresentação e notas é de Maria Cecília Gomes dos Reis; o livro sai pela Penguin / Companhia.

Ao retratar o Brasil através da degradação de sua elite econômica, Marcelo Vicintin constrói um livro singular, com altíssimo poder de capturar o leitor. Uma estreia surpreendente.

“Dizem que o dinheiro não muda ninguém, apenas desmascara; e é num mundo sem máscaras que as predileções humanas ficam mais claras.” Esta é a síntese de um romance em que dois narradores privilegiados se alternam para contar cada um a sua história. Um deles é Egydio, herdeiro de uma empresa de navegação, que cumpre pena em prisão domiciliar após ser flagrado por uma força-tarefa da Polícia Federal; a outra é Marilu, espécie de arrivista em busca da imagem perfeita, mergulhada num presente frenético e incerto. São personagens que não buscam a simpatia do leitor, pelo contrário. Mas seu encanto está justamente no que neles há de corrompido. É necessário considerar as nuances da escrita ― a meio caminho entre a paródia e a crítica, procurando abarcar um contexto muito mais amplo, o do Brasil desse início de anos 2020 ― para que se possa adentrar no coração desta que, sem dúvida, é uma das estreias literárias mais corrosivas e corajosas dos últimos anos. As sombras de ontem sai pela Companhia das Letras.

O novo livro na coleção da Numa Editora.

Ingênuo. Super é um livro perturbador e comovente. De modo simples e direto, narra a história de um homem que, ao fazer vinte e cinco anos, se vê desiludido e confuso, então abandona a faculdade, vende quase todos os seus pertences e se muda para o apartamento do irmão, que está viajando. Através da contemplação e da brincadeira, ele faz listas, classificando os significados da vida, tenta obter uma perspectiva do mundo e fica obcecado com o conceito de tempo. O modo como o narrador percebe o mundo e elabora suas percepções é ingênuo, ao mesmo tempo que muito interessante e particular. É fácil incorporar suas questões, rir e se emocionar com ele. O livro foi lançado na Noruega em 1996 e logo se tornou muito popular, sendo comparado a O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. Traduzido em mais de vinte idiomas, o livro recebe agora, pela primeira vez, uma tradução feita direta do norueguês, por Guilherme da Silva Mendes. Erlend Loe é escritor e roteirista, vive em Oslo.

Peça reconta o colapso financeiro de 2008 do Lehman Brothers como metáfora sobre o modelo econômico que nos rege.

Em 15 de setembro de 2008, o banco de investimento estadunidense Lehman Brothers foi à falência, marcando o início da maior e mais recente crise financeira mundial. A fim de entendê-la, o National Theatre de Londres encomendou ao dramaturgo britânico David Hare uma peça sobre o assunto, e assim surgiu O poder do sim. Fazendo-se personagem de sua própria obra, o autor imiscui-se entre figuras-chave do mercado financeiro – banqueiros, economistas, acadêmicos, jornalistas etc. – a fim de examinar, em detalhes, as causas que levaram o sistema capitalista a colapsar naquela data. Se o tema a princípio parece complexo e distante do universo de grande parte dos leitores, a dinamicidade dos diálogos e a desfaçatez dos personagens nos envolvem, num crescendo, ao longo dos nove quadros que constituem este drama. Estreia de David Hare para o público brasileiro, O poder do sim: um dramaturgo procura entender a crise financeira, reitera sua fama de grande dramaturgo social da atualidade, além de questionar quão catastróficas podem ser as consequências da permissividade ao capital financeiro. Esta edição traz prefácio assinado pela pesquisadora e professora Anna Stegh Camati e posfácio de autoria da pesquisadora, economista, e também professora, Leda Maria Paulani, além da seção “Anexos”, que inclui a Ficha técnica da estreia, Notas biográficas sobre os personagens e um Glossário de termos, personalidades e instituições financeiras, a fim de contextualizar o leitor brasileiro e aprofundar seus conhecimentos tanto sobre os vocábulos citados na obra como em relação ao universo financeiro em si. A tradução é de Clara Carvalho, que também é diretora e atriz integrante do núcleo artístico do Grupo Tapa. O livro é publicado pela editora Temporal.

Peça dentre as mais importantes de Thomas Bernhard ganha edição no Brasil.

No apartamento do falecido prof. Schuster, a governanta sra. Zittel e a empregada Herta preparam o jantar funerário para a família, rememorando a vida do patrão e lamentando a morte trágica que acabara de acontecer. Enquanto isso, as filhas de Schuster, Anna e Olga, tentam convencer seu tio a assinar uma petição em defesa de um território onde a família possui uma propriedade e a tratar de outros pormenores cotidianos. Entre lembranças e tentativas de compreensão das condições que levaram o professor a cometer suicídio, os personagens apresentam um panorama político da Áustria no fim da década de 1980, traçando um paralelo direto com o episódio de invasão de Hitler na Praça dos Heróis, que marcara não só o âmago da família protagonista, como toda a história ocidental. Escrita em 1988 por encomenda de Claus Peymann, então diretor do Burgtheater de Viena, por ocasião do centenário de abertura do teatro e, coincidentemente, pelos cinquenta anos do Anchluss (anexação da Áustria pela Alemanha nazista), Praça dos heróis é uma reflexão crítica sobre o nacionalismo e o antissemitismo da Áustria moderna, além de uma denúncia da negação de seu passado por parte do povo austríaco. Polêmica por sua assertividade, como diversas outras obras de Bernhard, esta peça de linguagem límpida sensibiliza os leitores não só pela delicadeza da situação que representa, como por sua atualidade. Em prefácio à edição brasileira, Alexandre Villibor Flory, doutor em literatura alemã pela USP e especialista na obra de Bernhard, aborda o contexto e a relevância da publicação de Praça dos heróis, até então inédita no Brasil, bem como disserta sobre a estética da peça e os ganhos desta tradução para o português, de autoria de Christine Röhrig. A edição da Temporal ainda conta com fotografias e ficha técnica da polêmica montagem de estreia de 1988 no Burgtheater e da montagem brasileira, dirigida por Luciano Alabarse em 2006.

Leitores brasileiros têm dois títulos de Edward Albee.

1. Quem tem medo de Virginia Woolf? Martha, 52, filha do reitor de uma universidade, na Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, é casada com um professor do departamento de história, George, seis anos mais novo do que ela. Na volta de uma festa da casa do pai de Martha, já madrugada, eles recebem o jovem professor de biologia Nick e sua esposa Honey. A noite avança e bebe-se muito. Neste livro, Edward Albee propõe, sob a forma de um ritual selvagem de expurgo, iluminar os caminhos sinuosos das paixões e desilusões que constroem um relacionamento. Neste texto dilacerante, George e Martha expõem a seus convidados tensões psicológicas que forjaram sua união e vida concretas, num percurso demoníaco de desagravos, covardias e perversidades no qual a realidade e verdade revelam-se, por fim, feitas de um material diverso do consagrado pela moral e pela tradição. Encenada pela primeira vez em 1962, a peça causou polêmica e tornou-se um clássico instantâneo da dramaturgia norte-americana. Vencedora do Pulitzer de Melhor Drama em 1963 na votação do júri, teve seu prêmio cassado antes da outorga pela própria organização do prêmio, que temeu concedê-lo a uma obra tão controversa. Levado ao cinema em 1966, colocou lado a lado Richard Burton e Elizabeth Taylor, um dos casais mais icônicos e trágicos da história de Hollywood, em uma produção que dominou os prêmios de melhor atuação do Oscar do ano seguinte. A tradução de Bruno Gambarotto sai pela Grua Livros.

2. Três mulheres altas. No luxuoso quarto de A, descrita como “Uma mulher muito velha; magra, autocrática, orgulhosa, tão calma quanto as calamidades do tempo o permitirão”, estão B, 52 anos, e C, 26 anos. As três são mulheres altas, que se parecem. Neste drama em dois atos, a frágil e senil A se recorda de seu marido com quem tinha uma relação fria, do filho que foi embora faz muitos anos e que ela não vê, de cenas por vezes nítidas, por vezes nebulosas, que lhe marcaram a história. B e C ouvem o relato e intervém com as certezas e dúvidas de suas idades. O segundo ato traz surpresas ao leitor, uma descontinuidade aparente. As transformações do ser humano, nas diferentes etapas da vida, nos comportamentos, no corpo, na maneira de enxergar a vida vivida – momentos de um colorido próprio que se encadeiam e, assim, confirmam a linearidade do percurso, ainda que sinuoso –, a vida em seu auge na maturidade, a vida ainda por acontecer na juventude, três mulheres em sua busca por uma só mulher e uma só experiência capaz de manter coeso o fio de atos e pensamentos que se eleva à condição de uma identidade. Baseada na relação difícil de Albee com sua mãe adotiva e elaborada sob a atmosfera do Teatro do Absurdo e de autores como Samuel Beckett e Luigi Pirandello, Três mulheres altas representou um dos pontos altos da produção de Edward Albee. Levada a público em 1991, a peça rendeu ao dramaturgo norte-americano o Pulitzer de Melhor Drama em 1994, o terceiro de sua obra, uma das obras mais consistentes e aclamadas da dramaturgia norte-americana. A tradução de Bruno Gambarotto sai pela Grua Livros.

A Ilíada traduzida por Trajano Vieira.

Composta no século VIII a.C., a Ilíada é considerada o marco inaugural da literatura ocidental. Tradicionalmente atribuída a Homero, a obra aborda o período de algumas semanas no último ano da Guerra de Troia, durante o cerco final dos contingentes gregos à cidadela do rei Príamo, na Ásia Menor. Com seus mais de 15 mil versos, o poema ganha agora uma nova tradução ― das mãos de Trajano Vieira, professor livre-docente da Unicamp e premiado tradutor da Odisseia ―, rigorosamente metrificada, que busca recriar em nossa língua a excelência do original, com seus símiles e invenções vocabulares. A presente edição, bilíngue, traz ainda uma série de aparatos, como um índice onomástico completo, um posfácio do tradutor, excertos da crítica, e o célebre ensaio de Simone Weil, “A Ilíada ou o poema da força”. O livro sai pela Editora 34.

Uma eclética, provocativa e instigante compilação de quatro trabalhos que refletem a diversidade da imaginação de Tolkien.

Apesar de ser universalmente conhecido pelo seu magnum opus, O Senhor dos Anéis, J.R.R. Tolkien deixou um legado literário que vai muito além da Terra-média. Árvore e folha é uma eclética, provocativa e instigante compilação de quatro trabalhos que refletem a diversidade da imaginação de Tolkien, seu profundo conhecimento da história inglesa e a amplitude de seu talento como criador de ficções modernas. A obra une de maneira mágica uma palestra, um conto, um poema mítico e outro de cunho histórico e reflexivo. O livro inicia-se com o ensaio “Sobre Estórias de Fadas”, fruto da pauta de uma palestra ministrada pelo Professor em 1938, ainda com o cheiro da tinta de O Hobbit nas mãos. O texto discorre brilhantemente sobre o Reino Perigoso das Fadas (Elfos), suas características e o mais importante: sua importância para os adultos. Em o conto “Folha de Cisco” vemos Tolkien pintando um autorretrato de sua vida como escritor e artista na busca inatingível pela perfeição em seus trabalhos. O tom, inicialmente suave, vai ganhando cores mais fortes com o aprofundamento psicológico e biográfico da narrativa. Na onírica poesia “Mitopeia”, sua paixão pelos mitos mistura realidade e fantasia ao ecoar uma famosa conversa com C.S. Lewis, que acabou por levar o amigo de volta ao Cristianismo. “O Retorno de Beorhtnoth” traz a faceta mais acadêmica e erudita do Tolkien. O poema faz uma brilhante conexão histórica com o antigo evento inglês de a Batalha de Maldon. Uma reflexão sobre soberba e heroísmo contada a partir de um diálogo dramático entre dois homens em um cenário de guerra. Árvore e folha deixará os leitores ávidos por absorver tudo aquilo que as palavras desenham a cada nova paisagem, passagem, imagem e viagem. A tradução de Reinaldo José Lopes sai pela HarperCollins Brasil.

Novo romance de Marcelo Mirisola.

Em Quanto custa um elefante?, novo romance de Marcelo Mirisola, o alter-ego do escritor dá novamente as caras, dando sequência a seus romances anteriores, dedicados à mulher que fez gato-e-sapato de suas ilusões amorosas, carinhosamente apelidada de “Ruína”. Aqui, Marcelo faz um verdadeiro pacto com o diabo, que inclui os préstimos de uma mãe de santo, para reconquistar sua desencanada paixão, em meio a outras mulheres que aparecem e desaparecem para complicar sua vida. Autoficção de primeira, o livro entrega tudo o que promete, e mais um pouco: mais ou menos como um passeio de Harley-Davidson pela orla do Rio de Janeiro. A edição é da Editora 34.

A história de Tristão e Isolda, de origem celta, incendiou a imaginação de poetas, músicos, ficcionistas e dramaturgos por vários séculos, tendo inspirado a célebre ópera de Wagner.

O romance de Tristão, do misterioso Béroul, uma narrativa em versos rimados e metrificados composta entre 1150 e 1190, integra o ciclo de histórias do rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, e marca o surgimento do romance moderno no Ocidente. A presente edição bilíngue, apresentada e traduzida por Jacyntho Lins Brandão, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, foi vertida diretamente do francês arcaico e recupera, em nossa língua, todo o brilho, o frescor, a inventividade e o colorido dos 4.485 versos dessa indiscutível obra-prima da literatura medieval. A edição é da Editora 34.

É difícil ser Deus, de Arkádi & Boris Strugátski.

Disfarçado de aristocrata arrogante e arruaceiro, Don Rumata é um dos duzentos e cinquenta observadores do planeta Terra enviados sob falsa identidade para Arkanar, um reino extraterrestre preso numa época histórica muito parecida com o período medieval, com o objetivo de observar e influenciar os eventos e a população locais, mas com instruções expressas de nunca interferir de forma direta em suas vidas. Arkanar é mergulhado em um clima de ignorância e em um pântano sanguinolento, dominado por conspirações, avidez e opressão: basta demonstrar inteligência, questionar qualquer coisa ou ter um espírito anticonformista para se tornar alvo das milícias imperiais e ser tratado como traidor. Enquanto isso, no planeta Terra a vida continua feliz e idílica, em um clima de paz e harmonia, conhecimento e criatividade. Alguns dos observadores, inclusive Don Rumata, são tentados a intervir e salvar o povo de Arkenar da tirania e da ignorância; outros não acreditam em sua salvação e são convencidos de que qualquer tipo de intervenção seria inútil e eticamente discutível. No entanto, para Rumata, dominado por dúvidas e dotado de compaixão humana, aceitar esse papel de “historiador fora da história” é algo cada vez mais complicado, inclusive por causa de seus sentimentos por Kira, uma garota local. Arkady e Boris Strugatsky são conhecidos como os maiores escritores de ficção cientifica russos da época soviética. É difícil ser Deus, escrito em 1964, é considerado um dos mais importantes de seus romances. O livro inspirou um RPG eletrônico e dois filmes, entre eles, em 2013, a última obra do grande diretor russo Aleksei German. A tradução de Tatiana Larkina sai pela Rádio Londres.

Artigo 353 do Código Penal, o primeiro livro de Tanguy Viel no Brasil.

Em uma cidadezinha da Bretanha, no litoral do norte da França, mergulhada numa séria crise econômica e em pleno declínio industrial, um homem chamado Martial Kermeur é preso pelo homicídio do incorporador imobiliário Antoine Lazenec, depois de atirá-lo ao mar enquanto faziam um passeio de barco. Durante um longo encontro com o magistrado responsável pela investigação de seu caso, Kermeur conta sua história, ou seja, a sequência de eventos dramáticos que o levaram até esse gesto irreparável: o divórcio, o surto do filho adolescente, que vai parar na prisão, a perda do emprego, mas, sobretudo, o que houve com Lazenec, que, mediante a promessa de um lindo apartamento com vista para o mar, consegue convencer uma parte significativa dos trabalhadores da cidade a investir a própria indenização trabalhista em seu projeto imobiliário, projeto que logo se revela uma miragem… Um romance sutil que, com uma linguagem precisa e elegante, mistura os elementos clássicos do noir à análise social e mergulha o leitor numa atmosfera sufocante, digna de Simenon. Uma obra que foi um dos eventos literários dos últimos anos na França, escrita por um autor celebrado como o Camus de nossa era. A tradução de Maria de Fátima Oliva do Coutto sai pela editora Rádio Londres.

Cineasta Anna Muylaert lança livro de contos que explora o universo feminino.

A diretora de cinema e roteirista Anna Muylaert apresenta seu primeiro livro de contos, Quando o sangue sobe à cabeça. O livro é publicado pela Lote 42. Quando o sangue sobe à cabeça traz seis narrativas curtas, sempre protagonizadas por personagens mulheres. De uma depiladora falastrona a uma grávida desconfiada com seu médico, a escritora constrói relatos envolventes sob a perspectiva de personagens diversas e cativantes. A artista escreveu as histórias nos anos 1990 como uma forma de construir sua voz autoral, com desenvolvimento de tramas e personagens. Em 2002 ela lançaria seu primeiro longa-metragem, Durval Discos. Dirigiu outros quatro filmes, entre eles o multipremiado Que horas ela volta?. Do livro, uma das narrativas deu origem ao curta-metragem A origem dos bebês segundo Kiki Cavalcanti. O livro tem capa impressa em serigrafia branca. Uma sobrecapa com dobras irregulares forma um pôster com detalhes do corpo humano. A dedicatória, “Para Celina e Celina”, foi carimbada manualmente em tinta vermelha. O projeto gráfico é de Gustavo Piqueira e Samia Jacintho, sócios do multipremiado estúdio Casa Rex. Muylaert lançou seu primeiro livro em 1988. Vai!, publicado pela Massao Ohno Editora, trazia poemas com marcante expressividade visual.

REEDIÇÕES

Livro de estreia de um dos principais nomes da poesia contemporânea, agora reeditado pela Companhia das Letras.

Publicado pela primeira vez em 2009, A vida submarina combina rara sensibilidade e excepcional talento para a observação de tudo o que nos rodeia ― xícaras, cortinas, camas, fotografias. O poema, Ana Martins Marques conclui, é lugar para pensar. O fazer poético, a mobília doméstica, o desejo amoroso, a noite silenciosa, os hotéis em baixa temporada, o tempo que corre: tudo pode ser formulado no espaço do verso. Lançados ao mundo “com a coragem suicida/ dos barcos de papel”, Ana revela que os poemas aprendem com o mar “a colocar os corpos em perigo”.

Há muito fora de catálogo, volta às livrarias Os moedeiros falsos, de André Gide.

Tarefa difícil dar conta da magnitude desse romance. Romance sobre a construção do romance, é ao mesmo tempo romance de formação, flerta com o estilo folhetinesco, com o romance policial, o romance de ideias... Bernard, Olivier e Édouard são os rapazes que formam a tríade central de personagens. Bernard, o filho que deixa o lar em busca de identidade, um bastardo na pele do filho pródigo; Olivier, seu grande amigo, intelectual como ele, mas sempre no limiar entre a vaidade e a insegurança. Tio de Olivier, algo mais velho que os dois, Édouard fecha o núcleo que norteará o leitor em meio ao sistema caleidoscópico e polifônico de Os moedeiros falsos. Em especial este último: é por meio do diário de Édouard (escritor, ele planeja escrever um romance chamado Os moedeiros falsos) que o leitor é tragado pela estrutura abismal – mise en abyme, segundo Gide – da obra dentro da obra, onde os limites entre o ficcional e o real se atenuam e vêm à tona a metalinguagem e a reflexão sobre as possibilidades e os limites de um romance. Anterior ao esquema de falsificação armado por Victor Strouvilhou, quiçá esteja outro tipo de “moeda falsa”. Se nos Porões do Vaticano o elemento diabólico encontra seu totem na figura de Lafcadio, aqui ele se dissemina. Há como que uma brisa funesta a perpassar todo o enredo, o qual, no entanto, encontra seu equilíbrio na juventude e na pureza de alguns de seus cativantes personagens: um erotismo sutil, combinado com a causalidade e a inconsequência. A tradução de Mário Laranjeira ganha segunda edição pela Editora Estação Liberdade.

A Companhia das Letras reedita A língua absolvida, coletânea de ensaios - traduzida diretamente do húngaro por Paulo Schiller – do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, Imre Kertész e que discute o impacto da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, do qual ele foi um sobrevivente, em toda a cultura do século XX.

"Uma escrita que sustenta a vivência frágil do indivíduo contra a arbitrariedade bárbara da história." Foi com essas palavras que a Academia Sueca apresentou a obra de Imre Kertész, ao anunciá-lo vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2002. Entre as narrativas marcantes da segunda metade do século XX figuram os relatos e as reflexões dos sobreviventes dos campos de extermínio nazistas. Como Primo Levi e Paul Célan, Imre Kertész transforma a experiência da deportação em reflexão sobre os valores éticos e morais da nossa sociedade - assim, o testemunho da degradação humana pode enriquecer o conhecimento e criar as bases de uma nova cultura. "A língua exilada" é uma coleção de ensaios permeados pela ideia de que o Holocausto não é um acontecimento restrito aos nazistas e aos judeus: é uma experiência de cunho universal. Se o filósofo alemão Adorno dizia ser impossível escrever versos após Auschwitz, Kertész afirma que o campo de concentração é um marco zero e que, portanto, nada mais poderia ser escrito sem fazer menção a ele. Segundo o autor, em todas as produções artísticas pós-Segunda Guerra Mundial estão evidentes as marcas da aniquilação dos valores que sustentavam a civilização antes do Holocausto. Passada a euforia inicial da queda do Muro de Berlim, em 1989, renasceram os velhos nacionalismos e, com eles, a sombra do anti-semitismo. O acerto de contas de Kertész jamais poupa o totalitarismo stalinista. Em um estilo marcado pelo humor amargo da Europa Central, Kertész relembra também os intelectuais que escolheram o exílio à vida sob a opressão soviética.

Dois livros iniciam a reedição da obra de João Antônio pela Editora 34.

1. Malagueta, Perus e Bacanaço foi lançado em 1963 e tornou-se de imediato um clássico, na mesma linhagem de autores como Antonio de Alcântara Machado e Lima Barreto. Seus nove contos concisos e diretos, de tintas autobiográficas mas isentos de sentimentalismo, recriavam saborosamente o ritmo e o léxico da língua popular de uma São Paulo praticamente desconhecida pelos leitores ― a língua do pé-de-chinelo que chuta tampinhas pela rua e joga sinuca nos botecos. Ambientado na capital paulista no final dos anos 1950 e início dos 60, por este livro desfilam pequenos funcionários, soldados rasos, camelôs, malandros e desocupados que, pelas mãos de João Antônio, entraram finalmente pela porta da frente de nossa literatura.

2. “Um soco”, já disse o crítico Leo Gilson Ribeiro sobre o vigor estilístico de Leão de chácara, comparando seu autor a Céline e Jean Genet, escritores que viveram no universo dos marginalizados e o transformaram em literatura. Publicado em 1975, é o segundo livro de João Antônio (1937-1996). Entre Malagueta, Perus e Bacanaço e este, o golpe de 1964 e a mudança do escritor para o Rio de Janeiro. Talvez por isso, nos três primeiros contos, ambientados na capital carioca, o estilo é mais incisivo, as gírias multiplicam-se e o enredo carrega mais violência. Com o mesmo espírito, e de forma ainda mais intensa, no famoso conto “Paulinho Perna Torta”, que fecha o volume, o próprio personagem narra sua trajetória, de engraxate a rei da Boca do Lixo paulistana.

Nova edição de Pilatos, de Carlos Heitor Cony.

Nono romance de Carlos Heitor Cony, publicado pela primeira vez em 1974 e considerado pelo próprio autor o seu favorito, Pilatos narra a história de um homem que sofre uma série de infortúnios. É atropelado, descobre que seus órgãos sexuais foram mutilados, foge do hospital em que fora internado e passa a perambular pelo submundo carioca, carregando Herodes, seu membro amputado, num vidro de compota. Aparentemente sem propósito, o périplo desse anti-herói risível de destino trágico nos apresenta um contundente retrato da sociedade brasileira da década de 1970, fazendo uma crítica ácida aos violentos e castradores anos da ditadura. O livro é publicado pela Editora Nova Fronteira.

OS LIVROS POR VIR

Romance inédito de Mario Vargas Llosa é publicado no Brasil pela Alfaguara no segundo semestre de 2020. O escritor peruano publicou Tiempos recios no final do ano anterior. Situado na Guatemala de 1954, o romance reconta o golpe militar perpetrado por Carlos Castillo Armas e financiado pelos Estados Unidos através da CIA que derruba o governo de Jacobo Árbenz. Por trás desse episódio se encontra uma mentira que se passou por verdade e mudou o futuro da América Latina: a acusação por parte do governo de Eisenhower de que Árbenz alentava a entrada do comunismo soviético no continente. O livro cujo título traduzido no Brasil se chamará Tempos ásperos é uma história de conspirações internacionais e interesses comuns, nos anos da Guerra Fria, cujas marcas ressoam até os dias de hoje. A tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht será publicada pela Alfaguara Brasil.

DICAS DE LEITURA

No momento em que redigimos as recomendações de leitura apresentadas nesta seção, trabalhamos, motivados pelo COVID-19, na construção de uma lista a ser publicada por aqui na semana seguinte com livros que tratam sobre a peste. A ideia nasceu aqui e tomou, como vírus, proporções maiores que nos levou a pensar em outras dicas. E são os títulos que se seguem:

1. Marcas de nascença, de Arnon Grunberg. Este é um livro sobre o qual guardamos uma imensa curiosidade para lê-lo; todo leitor que tiver passado por algum título do escritor alemão entenderá o motivo. Publicado pela Rádio Londres, o romance traz como protagonista Otto Kadoke, um psiquiatra especializado em prevenção de suicídios. Seu papel é manter vivas as pessoas que têm o desejo de morrer. Ele é um homem de meia-idade, sem filhos, não muito atraente, mas que tem um histórico de sedutor com várias médicas residentes. Embora muito ocupado, Otto não deixa de visitar com regularidade sua mãe idosa e carente, que mora numa casa aos cuidados de duas garotas nepalesas, Rose e June. Um dia, entretanto, o delicado equilíbrio familiar se rompe quando Otto, enquanto está visitando a mãe, abre a porta do banheiro e encontra Rose enrolada em uma toalha. Otto, interpretando mal o episódio, deixa-se levar pelas emoções e pelos sentimentos de amor por ela. Rose, então, resolve pedir demissão, e June faz o mesmo, açulando toda a comunidade nepalesa contra o médico. Enquanto está em busca de uma nova cuidadora, Otto é obrigado a lidar sozinho com a mãe e passa por uma profunda crise pessoal, quando, então, acaba por questionar a própria existência, caindo em uma sequência tragicômica e hilariante de equívocos grotescos. Como sempre, com seu estilo afiadíssimo e único, Grunberg faz o leitor rir e chorar ao mesmo tempo. E, como sempre, no final, mesmo quando tudo parece perdido, há um lampejo de esperança na trágica e grotesca vida de Kadoke. A tradução publicada no Brasil é da Mariângela Guimarães.

2. Vamos comprar um poeta, de Afonso Cruz. A editora que publica o livro do escritor português no Brasil cuida de uma coleção que alguns dos títulos nela incluídos já foram outras vezes recomendados por aqui. Trata-se da coleção Gira. No livro agora recomendado Afonso Cruz imagina que numa sociedade dominada pelo materialismo, as famílias têm artistas em vez de animais de estimação. E nesse cenário, onde cada espaço tem um patrocinador, cada passo é medido com exatidão, e até a troca dos afetos é contabilizada, que uma menina pede ao pai um poeta. Com humor e leveza, o autor constrói uma obra que nos faz pensar sobre o utilitarismo e o papel da arte em um mundo onde tudo precisa ser mensurado.

3. O sino e o relógio. Uma antologia do conto romântico brasileiro, organizada por Hélio de Seixas Guimarães e Vagner Camilo. O livro publicado pela Carambaia é fruto de um trabalho de pesquisa e coleta minuciosa que durou mais de dez anos. Com ênfase em material raro, publicado apenas na imprensa da época, a coletânea abrange autores hoje esquecidos, porém relevantes no século XIX, e traz obras assinadas por nomes geralmente associados a outros gêneros e atividades, como os poetas Fagundes Varela e Casimiro de Abreu, o editor Francisco de Paula Brito e o dramaturgo Martins Pena. Entre as raridades da coletânea estão histórias escritas por mulheres, algumas pouco conhecidas hoje, como Corina Coaracy e Escolástica P. de L, ao lado de Nísia Floresta e Maria Firmina dos Reis. Outro aspecto interessante e incomum de O sino e o relógio é a inclusão de dois contos anônimos de boa qualidade. Ao todo são 25 narrativas publicadas entre 1836 e 1879 divididas em quatro grandes conjuntos temáticos – fantástico, histórico, cotidiano e intriga. São classificações que levam em conta a trama central dos contos, embora muitas vezes suas características se misturem. Essa disposição permite revelar que o Romantismo, tal como praticado no Brasil, abrangeu mais temas do que os tradicionalmente reconhecidos, como o indianismo ou a exaltação da natureza.

VÍDEOS, VERSOS E OUTRAS PROSAS

1. Chegou na galeria de vídeos do Letras no Facebook três vídeos que constituem um conjunto de excertos de um mesmo filme; trata-se de uma entrevista realizada por Michel Polac e Michel Vianey a Witold Gombrowicz. No primeiro excerto, com detalhes sobre a biografia do escritor polonês, ele descreve seus não-gostos literários; no segundo, explica sua predileção pela leitura de Montaigne, da literatura russa (citada por Dostoiévski), a literatura alemã (Thomas Mann) e alguns nomes da cultura e da literatura polonesa; e no terceiro, retoma a partir de suas reservas à cozinha francesa porque sua literatura está implicada a outro modelo que repudia o modelo intelectual sempre recorrente, preso à forma e expressão racional.

BAÚ DE LETRAS

1. Depois de recomendarmos o novo romance de Arnon Grunberg no Brasil, recordamos dois textos publicados no Letras que são leituras de outros dois títulos desse escritor publicados por aqui também pela Rádio Londres: o primeiro, com leitura sobre O homem sem doença; e o segundo sobre Tirza.
  

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* Todas as informações sobre lançamentos de livros aqui divulgadas são as oferecidas pelas editoras na abertura das pré-vendas e o conteúdo, portanto, de responsabilidades das referidas casas. 

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