A tradição da peste na literatura. Treze obras literárias


Desde o final de 2019, o mundo atravessa a explosão de uma nova mutação de Coronavirus que tem causado sequelas e mortes pela COVID19. Este é outro instante em que a longa aventura da existência humana na terra atravessa uma crise complexa que coloca em risco nossas existências.

O mais terrível de uma peste não é a morte, o fim de tudo, mas sua forma desconcertante e implacável com que atua contra a coletividade; seus efeitos são sobre toda a gente, uma vez que a morte, ainda que atinja mais a uns, não escolhe vidas, isto é, é um mal que não diferencia e por sua causa podem morrer os ricos, os pobres, os sãos, os jovens, os que nunca morrem. Por outro lado, a peste obriga a todos a repensarem sua inserção na comunidade e a revisão de atitudes de empatia e solidariedade.

A ilusão atualmente é que, depois de alguns meses, tudo voltará a ser como antes. É possível que retomemos (ou sequer deixemos) os mesmos hábitos de sempre, mas, se tudo voltar ao de antes, não tardará outra vez a repetição com algo parecido ao que atravessamos agora e com maior letalidade. Não é uma previsão apocalíptica; é a constatação de que o modelo de vida que levamos é radicalmente danoso para nós mesmos.

Um dos novos hábitos resgatados nessa pandemia, nos países que leem, tem sido um retorno à companhia dos livros; na Itália, por exemplo, dois livros têm se estabelecido entre os interesses dos leitores: A peste, de Albert Camus e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Como a literatura pode ser nossa melhor companheira nesses dias gris e seguindo esse dado internacional vale encontrar os livros seguintes (incluindo os citados) que testemunham histórica ou ficcionalmente a civilização em colapso pela peste.

Sem interesse de ser exaustiva, segue a lista; são obras que tratam total ou parcialmente, ficcional ou historicamente da peste.

Luigi Sabatelli, A peste em Florença. À esquerda da gravura, Giovanni Boccaccio.


Decameron, de Boccaccio. O livro estruturado em uma centena de contos narrados por um grupo de sete mulheres e três homens que se abrigam numa vila isolada de Florença para fugir da peste negra, que afligia a cidade, é um dos primeiros na nossa era a tematizar a peste. A obra pode ter sido começada a partir da epidemia de 1348 e foi concluída em 1353. Aqui, o escritor italiano oferece um registro documental sobre a praga que devastou o continente; o relato ilustra a doença, suas manifestações, evolução, sintomas e a reação das pessoas ante a perspectiva da morte, a ineficácia da Igreja e de uma medicina totalmente incapaz de conter os avanços da doença. Na obra, Boccaccio chega a estimar o número de vítimas, perto de cem mil. Ao mesmo tempo que registro, as narrativas funcionam como determinação de passagem do tempo e alternativa na solidão enfrentada pelas personagens isoladas.

Os animais iscados da peste, de La Fontaine. A tradução aqui apresentada para “Les Animaux malades de la peste” é de Machado de Assis; foi impressa então numa edição primorosa com as gravuras originais de Gustave Doré. É o segundo conto do livro VII das Fábulas e nele, o fabulista francês recria o reino animal para tratar sobre os impasses da instauração da peste entre eles e tratar de assuntos que vão das relações de empatia, solidariedade e os seus opostos nesse contexto.

Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe. Este foi um dos livros preferidos de Gabriel García Márquez, “entre outras razões porque Defoe é um jornalista que faz o que está dizendo parecer pura fantasia”. O escritor era criança quando a peste se instaurou no seu país, mas, os resultados da época ficaram nele presos até eclodir no rigor descritivo com o qual constrói uma inquietante e informada reportagem sobre o mal que dizimou perto de 70 mil vidas em Londres no ano de 1665.  

A máscara da Morte Escarlate, de Edgar Allan Poe. Trata-se de um conto de horror cuja narrativa fabular situa-se num país e num tempo distantes quando a população começa a ser dizimada pela Morte Escarlate, uma figura tenebrosa que leva à morte todo aquele que a tocar. Em desafio à peste, Próspero se isola em seu castelo; a partir daí, o narrador nos envolve com o tom característico do escritor estadunidense e aponta para a fatalidade total do homem ante o obscuro da peste.

Os noivos, de Alessandro Manzoni. Este é um dos romances mais importantes da literatura italiana. O escritor fabula a história amorosa de Lucia e Renzo; acompanhamos de perto suas desventuras que trazem como pano de fundo o panorama histórico (em dimensão diversa) da época. Dentre os infortúnios está a grande peste, tema que ganha vulto no andamento da narrativa de Manzoni; em “História da coluna infame”, espécie de apêndice que acompanha o romance, o escritor não apenas oferece um retrato cru sobre a infestação e o andamento do mal, como constrói um documento rigoroso sobre o que narra com especial atenção sobre as incapacidades do homem de conter os avanços devastadores da doença quando toda a gente se deixa carregar pelos subterfúgios do discurso não-científico e se atêm às crendices religiosas.

A peste escarlate, de Jack London. O romance publicado nos Estados Unidos em 1912 na revista London Magazine foi traduzido no Brasil dos anos sessenta pelo poeta Jorge de Lima. Nele, o escritor imagina uma humanidade destruída por uma misteriosa peste no ano de 2013. Um professor universitário e três netos foram os únicos que sobreviveram e se encontram, agora, na condição de selvagens. O passado recente é recontado pelo velho professor aos netos; é quando ficamos sabendo da força da peste e de como eles sobreviveram à hecatombe.

Morte em Veneza, de Thomas Mann. A novela mais famosa do escritor alemão conta sobre encantamento devastador entre Aschenbach, um homem de meia-idade, e o adolescente de beleza ascética Tadzio. Embora, a narrativa não traga o tema ou uma problemática sobre a peste, a Veneza aqui recuperada está continuamente infestada pela cólera, mal que é ocultado pelas autoridades italianas a fim de não prejudicar o turismo; a peste revelada por um agente de viagens britânico se deixa impregnar em toda parte, amplia os sentidos da atmosfera narrada e é motivo determinante para a condição de ruptura dos liames platônicos entre as duas personagens principais.

A peste, de Albert Camus. Este é considerado o romance mais importante na bibliografia ativa do escritor francês. Publicado em 1947, conta a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade em meio a peste que assola a cidade de Orã, na Argélia. Narrado pelo ponto de vista do médico Bernard Rieux, a narrativa se desenvolve entre sua rotina de visita aos doentes, o atendimento no hospital e as relações com sua mulher doente e a mãe idosa.

O caminho de Santiago, de Alejo Carpentier. Em O século das luzes, o romance mais conhecido do escritor cubano é possível conhecer o mal egípcio, curado por um remédio trazido da França, mas neste conto, ambientado na Europa do século XVI, ele volta ao temário da peste negra. Nele acompanhamos Juan, um jovem espanhol que resiste à tentação de correr o mundo como tambor de tropa. Nas suas andanças finda por contrair a peste e, com medo de morrer, faz a promessa de percorrer o caminho de Santiago, como peregrino, caso lhe fosse concedido o milagre da cura.

O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez. “Cinquenta anos, nove meses e quatro dias é o tempo que Florentino Ariza espera para conquistar sua amada.” Este romance parece ser produto da admiração do escritor colombiano pelo livro de Daniel Defoe e pela longa tradição do romance romântico. A obsessiva história de amor situada no intervalo de tempo antes descrito se confunde com o contexto histórico no qual a Colômbia passa por um surto de cólera, peste que não poupou ricos e pobres.

Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Neste que é um dos principais romances do escritor, a peste é branca e atinge a visão misteriosamente, ao acaso um e por contágio a todos. O mundo em colapso pela cegueira branca e a necessidade de reinvenção das formas de estar são duas das principais linhas constitutivas dessa narrativa. Entre a epidemia, apenas uma personagem é autoimune – a mulher do médico. Só num mundo de cegos é possível conhecer os extremos da capacidade humana para si e para o outro. A obra é uma parábola sobre a necessidade de repensar os desenfreados rumos adotados por estranha civilização que se esqueceu ser constituída de pessoas e não de objetos de produção.

O último povoado da terra, de Thomas Mullen. Este é o primeiro romance do escritor estadunidense e foi inspirado na quarentena imposta às cidades do interior dos Estados Unidos durante a epidemia de gripe em 1918. Nas profundezas cobertas pela névoa do Noroeste do Pacífico, há um povoado de madeireiros chamado Commonwealth, idealizado para ser um refúgio de trabalhadores cansados de serem explorados. Entretanto, os ideias que caracterizam esse ponto fronteiriço estão ameaçados: uma guerra mundial em andamento e a sombra de uma doença mortal que ceifa vidas em comunidades vizinhas. O povoado decide se isolar decretando quarentena como meio de evitar o contágio; a situação colocará em questão todos os valores que até então definiam esse lugar.* 

A praga, de Ann Benson. O título é a tradução livre de The Plague Tales e este é um romance que se situação entre a ficção histórica e a ficção especulativa. Ann Benson recupera em duas épocas os horrores da peste negra: em 1348, um médico espanhol atravessa uma paisagem de horrores até Avignon, na França, de onde é enviado para a Inglaterra a fim de salvar a família real; sete séculos depois, uma cientista redescobre o retorno da peste negra, agora, numa sociedade marcada pelo estado de controle policial e biológico. Das consequências mais simples, a intriga de vizinho contra vizinho, o embate entre civilizado e selvagem, a escritora propõe refletir sobre o intrincado universo de poder propiciado pela peste nesse novo tempo.

* Recomendação de Silvana Guimarães, via Twitter.


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