A Sibila, de Agustina Bessa-Luís
Por Pedro
Fernandes
É preciso
ler A Sibila para estabelecer contato com toda força do universo
ficcional construído por Agustina Bessa-Luís, a escritora que, sozinha,
construiu toda uma literatura à parte no interior da ficção portuguesa. A
aparição desse romance se deu numa ocasião bastante peculiar: enquanto a
literatura de Portugal debatia seus meandros, as implicações entre linguagem e
conteúdo ideológico e se prendia aos estatutos mais ou menos determinados da estética
neorrealista, responsáveis por obras que ressuscitaram a criação ficcional
posterior ao marasmo deixado pelo vazio de Eça de Queirós; é desse período,
entretanto, a criação de obras de baixo valor criativo devido ao mero apelo quase
panfletário decorrente do que poderíamos designar como o primeiro boom literário
neste país.
Nada se
produziu de igual na literatura portuguesa antes ao que Agustina produziu e os
herdeiros da escritora ainda estão por nascer. Esse isolamento, entretanto, não
é apenas pelo distanciamento da escritora a qualquer filiação estético-ideológica;
se parece que a escritora pertenceu a uma redoma fabricada por ela própria,
esse também é um crédito pesado demais para atribuir apenas ao seu gênio. Sabe-se
que ele esteve engajada em várias frentes da cultura em seu país e sabe-se
ainda que a escritora que elegeu o Porto sua cidade de morada está entre as
primeiras mulheres que romperam com uma fechada tradição exclusivamente feita por
homens. Qualquer consulta ao cânone literário português na sua formação contemporânea
ao aparecimento dela não trará mais que algumas sombras de mulheres. Quer
dizer, o isolamento não foi autoimposto ou determinado exclusivamente pela
singularidade de sua obra; existiram outros fatores socioculturais mais
impositivos. Some-se a tudo o caso de pertencer a uma estirpe talhada no
interior do país.
A Sibila se
constitui dos tons preferidos de Agustina Bessa-Luís: o contexto familiar burguês
do Norte, entre o Douro e o Minho; o papel das mulheres em tais modelos; o
miúdo da história, seja o comezinho, seja as situações de ordem íntima, seja
ainda a recriação de certo imaginário primitivo e popular. No romance, o que o
leitor acompanha é uma saga familiar, toda ela entrevista pela força e perspectiva
de três gerações de mulheres sintetizadas pelo ponto de vista de Germa. O traço
ficcional é memorialístico, mas a história não obedece a uma linearidade
temporal; há pelo menos dois tempos que se encontram e se intercalam, um
onipresente, da própria narradora já adulta quando da morte de Quina, e outro biográfico
que remonta ao tempo da narração. Este segundo, é o guia para o leitor, uma vez
que o que se conta é a história de Quina, da sua infância, da sua juventude, sua
constituição enquanto sibila, sua velhice e sua morte.
Embora este
seja um romance cujas protagonistas são mulheres, se resgate seu papel fundamental
na ordem das coisas, negam-se quaisquer feminismos. O que encontramos são as
implicações do machismo nas raízes desse universo em que elas próprias são, a
um só tempo, vítimas e mantenedoras do patriarcado. À primeira vista, o que o
leitor assiste é certa caricatura da mulher pela assunção de certo papel do macho
para a manutenção da ordem (papel, aliás, que eles não têm) ou a validação da
condição inata de subjugadas. Mas, as duas reduções são gratuitas e isso não é,
de nenhuma forma, algo que defina a literatura de Agustina Bessa-Luís. Assim, o
leitor notará que a perspicácia da narrativa é outra: repousa na tentativa de
compreender certo fatalismo que condena por igual homens e mulheres – a luta por
poder. Assume-se, assim, que os interesses repousam seja nas implicações do
tempo, seja nas ambições, seja ainda nas impossibilidades de negação dos
instintos.
Embora Germa
e Quina sejam as figuras centrais do romance, a narrativa, desenvolvida como se
uma franca conversa – com suas idas e vindas – admite várias entradas de eventos
de outras personagens. É o caso, por exemplo, da retomada sobre a triste sina
de Estina, a irmã mais velha de Quina que vive na casa de Morouços; casada com
Inácio Lucas que lhe mata os dois filhos e nem por isso ela se vê deixando sua
casa: “Inácio Lucas torturara-a sempre, tentara aniquilá-la, sem, no fundo, o
desejar; e a fama das suas sevícias, da sua crueldade mórbida, de carrasco,
correra a freguesia inteira, onde era conceituado como um espécime diabólico”;
“Os dois filhos varões de Estina morreram mercê da brutalidade do pai, um
porque o escadeirara num acesso de furor, provocando-lhe lesões fatais, outro
porque o intimara a levantar-se, mal curado de uma gripe, e a criança sucumbira
com uma pneumonia”. E, mesmo o pedido da mãe pelo abandono dessa condição, não
demove essa personagem da decisão de ficar ao lado do marido; para ela: “Em
toda a parte é igual. A gente tem que se defender sempre, e em toda a parte
corre perigo”; “Se os meus filhos morrem, sou eu quem sofre. Mas eu, se fujo,
desonro a família.” Essa passagem esclarece o que dissemos acima. À primeira
leitura o que se reafirma é a condição subjugada da mulher e sua aceitação passiva
das coisas como são. Mas, a constatação de que “em toda parte é igual”
justifica sua atitude. Isto é, a subversão desse estado não depende exclusivamente
de uma vontade ou decisão individual; é um problema maior: o sistema em que se
vê presa não lhe permite uma alternativa.
Este e
outros romances de Agustina Bessa-Luís reforçam a reiterada acusação da escritora
incapaz de romper com as estruturas as quais pertenceu; esse é um traço impossível
de negar. A Sibila é uma obra extremamente presa às ideologias dominantes.
Por mais que se queira ressaltar o heroísmo das mulheres, o que prevalece é
unicamente a enviesada compreensão masculina desse universo: a figura feminina como
misteriosa, perspicaz e presa às ambições individuais que a torna incapaz para
a coletividade. Mas, se reparamos a posição da escritora no seu contexto
(principalmente no interior de certa ideia de romper com uma escrita sempre
designada como masculina ou feminina) entenderemos as escolhas assumidas na
construção desse universo. E, avessa a quaisquer radicalismos ideológicos, a
prosa de Agustina não permite ao leitor se decidir por este ou aquele ponto de
vista. O maior desafio desse romance é o de nos obrigar a desenvolver certo
equilíbrio sob o limiar; quando formamos uma opinião em certa direção, logo
somos arrastados para outra posição. Isso é genuinamente a tarefa da literatura,
mas é um dos princípios mais difíceis de ser respeitado.
A autora de A
Sibila foi também uma pintora com palavras e nos oferece aqui, muito à
maneira do que fizeram as irmãs Brontë ou uma Jane Austen na sua literatura, um
riquíssimo afresco sobre a vida no meio rural português sob o ponto de vista e
situacional da mulher. Nesse sentido, a obra se estabelece como a peça que nos
escapa numa história feita por homens e sobre homens: expressa o que faziam as
mulheres enquanto os homens estavam presos nas suas próprias artimanhas, fossem
as aventuras amorosas e financeiras, as ambições sanguíneas ou as tratativas de
manutenção do próprio status quo de homens. Nesse sentido, sua
contribuição para a história das mulheres em nada é insuficiente e guarda,
assim, semelhança à tarefa exercida pelos romances de denúncia ou as chamadas
narrativas progressistas quanto ao tema do papel das mulheres.
A
autenticidade de A Sibila repousa ainda nessa impossibilidade de ser
reduzida ao estatuto de uma metáfora ou uma metonímia sobre outra coisa. Por
isso, mais que o drama do feminino, por exemplo, o tema dominante, ou ainda a representação
de um contexto social e histórico, o que salta aos olhos do leitor é uma
história que se desenvolve interessada apenas em relevar situações tais quais
as vividas pelas personagens ou supostas pela voz narrativa. É este romance uma
tapeçaria que expõe o frescor de uma época recriada nos detalhes mais
minuciosos: na escolha da linguagem, de uma riqueza rara na literatura de seu
tempo e de agora e que nos envolve de forma original com a atmosfera recriada
pela ficção; no tratamento sobre o imaginário popular, a geografia, as
genealogias, a educação, os costumes, a educação e as situações comezinhas. É
nesse sentido que quase todas as categorias da narrativa assumem o papel de
protagonista; além do enredo ardilosamente desenhado, da refiguração do tempo
memorialístico, da personagem em suas dimensões psicológicas e físicas, e do narrador
capaz de trançar situações das mais variadas, cabe sublinhar como a narrativa
engendra o espaço.
Se cada
família é designada pela morada – a casa do Freixo, de Água-Levada, Folgozinho,
Mouroços –, é a casa da Vessada a grande figura no romance; é por ela que
alcançamos o ponto principal de início da narração: inscreve-se na sua fachada
o ano de 1870, a data de reconstrução da casa depois de arruinada pelo descaso
da última figura patriarcal, Francisco Teixeira. É nela que se entreveem os episódios
recontados pela narradora e se inscreve toda a dimensão do tempo; as
transformações por ele impostas, o desinteresse dos homens pelo zelo do espaço,
o empenho de Quina no restauro dos tempos imemoriais de abastança até ser
transferida em testamento a Germa.
Além de ser
o espaço íntimo do grupo nela representado, ressaltando todas as implicâncias
entre a mulher e a casa, a Vessada é o gatilho para a fruição da memória
narrativa, por isso se manifesta como representação da antiga organização
social e lugar de afetos variados, extensão de seus habitantes. Quina, a herdeira
universal da casa por se mostrar a única capaz de levar adiante a tradição restabelecida
por Germa, é a própria Vessada, que lhe é oferecida não apenas como uma
herança, mas um legado. E este se pode definir como a memória e a história,
afinal, ao salvar a Vessada, o grande orgulho (e ilusão) dessa mulher de pulso
firme, acredita salvar a si própria, se prolongar nas existências futuras e
impedir o perecimento do passado.
Foi com A
Sibila que Agustina Bessa-Luís ficou reconhecida dentro e fora de seu país
natal e deve ser este o livro sempre o primeiro lembrado quando o nome da
escritora é citado. Algumas das razões para isso foram apresentadas nestas
notas; outras justificações ficam na conta do leitor que não pode deixar de
incluir este livro entre suas leituras mais próximas.
Comentários