A resposta que não vem
Por Tiago D. Oliveira
A convivência com os livros aproxima-nos
paulatinamente de nós mesmos. É impressionante como a cada leitura conseguimos direcionar,
mesmo que aleatoriamente, a narrativa ou versos, para a direção dos nossos
dias. É como se cada livro estivesse em escambo com o desconhecido para pintar
uma antiga sensação que consegue sempre força e renovação a cada página virada.
O desconhecido. Assim, o que se guarda dos dias é também medido pelos títulos
que nos observam na estante ou ainda em pensamentos. À vida.
Em Meu coração de pedra-pomes, de Juliana
Frank, encontramos este escambo com o desconhecido. Wanda, ou melhor, Lawanda,
como prefere ser chamada, é uma jovem de 19 anos que tem uma deficiência mental
e trabalha em um hospital, a partir de uma vaga conseguida por cotas, como
faxineira e mora em um quartinho alugado pela tia. Tem o hábito de cultivar
pensamentos excêntricos, guardar besouros em uma caixa no armário e costurar
borboletas em suas calcinhas quando ninguém está olhando. Realiza diversas
macumbas para que seu amante, José Júnior, peça o divórcio e diga em bom tom
que a ama pendido-a em casamento. Ela também realiza pequenos serviços
estranhos para os pacientes no hospital, um saco de batatas fritas, um
refrigerante, um passeio noturno, uma visita proibida. Esses serviços são o que
Lawanda chama de renda extra.
Pensar em um coração de pedra-pomes
direciona o leitor para a ambiguidade do texto literário. A narrativa de
Juliana traz uma personagem que anda margeando o estranho, a rejeição, e que
repele tanto quanto é repelida. Talvez um efeito natural de defesa e ataque sob
a batuta do contexto. Uma personagem capaz das atitudes mais estranhas,
escondida sob a proteção de um desvio metal, que não fica claro totalmente qual
seria, que a incapacita de ser padronizada na sociedade. Esse desvio não a
impede de, ao mesmo tempo em que não se importa com o outro, se importar também,
o quanto que quer ser amada, que quer ser boa funcionária, quer ser aceita por
uma mãe que aparentemente não a quer em casa, atendendo ao desejo de seu
marido.
Por trás das atitudes e pensamentos mais desconexos, há um efeito
impulsionador que gere toda a trama e desenha as linhas de força da narração:
uma relação familiar despedaçada, um sentimento de rejeição, uma não-adequação
na vida das pessoas que a amam, ou supostamente deveriam amá-la. É este o
efeito, um estado de consciência, o de não fazer parte deste mundo, mesmo
quando é obrigada. Por isso ela guarda besouros numa caixa e os observa com
grande prazer e afeto, por isso ela procura irritar as pessoas, por isso
desiste do amante quando ele finalmente diz que a ama, por isso que ela luta
com a realidade através de seus pensamentos e suas ideias / fugas que acabam por
sempre levá-la para um lugar de movimento contra o tédio, melancolia e a vida
comum. A sua mudança de nome é uma tentativa de figurar uma nova identidade.
Acolher os desejos dos outros é uma forma de ceder também ao mundo, mesmo não
concordando com ele. O coração de pedra-pomes absorve, mesmo que seja por
alguns trocados.
A prosa de Juliana Frank constrói também
uma alegoria sobre os valores da vida cotidiana de uma forma bem divertida e
estranha. A partir de uma personagem que carrega a loucura como permissão para
a vida, que limpa e esconde as sujidades nos locais mais improváveis, uma
faxineira hospitalar, aponta para temas como a ambição, o despreparo, o desprezo e o descarte dos doentes mentais, assim como também leva o leitor a se questionar
sobre o que vem a ser a loucura na sociedade em que vivemos. Pois, afinal, o que
Lawanda queria mesmo era viver no mundo que foi criando, mesmo que
ilusoriamente em seus vãos de fuga da realidade, para conseguir seguir com os
microdramas que qualquer um tem nos dias.
O absurdo e o pensamento andam lado a
lado. Todas as horas em que passou olhando a vida pela janela do hospital ou
imaginando fantasias sexuais pitorescas, como transar com um morto, ou até
mesmo todas as suas repetições e mudanças repentinas de ideias, são amostras de
que a narrativa delineia com verossimilhança a vida, sem grandes finais, em uma
contínua reformulação de buscas por uma lucidez que não se realiza.
Meu coração de pedra-pomes, editado pela
Companhia das Letras, é um livro que conduz a personagem para um vida sem
planos. Os acontecimentos ocorrem e Lawanda, dona de uma atitude nunca linear,
é afirmada numa incoerência que só cresce por não ter objetivos, tão pouco a
ideia de um futuro. Aos poucos o leitor constrói a certeza de um fim em
decadência que se aproxima. A figura da mulher numa espécie de queda contínua
em um mundo alheio e cruel é também uma alegoria sociopolítica que caricatura
para criticar, mas que aponta e traduz um desconforto que deseja mudanças que
não vêm, mesmo com o virar da última página. O que me faz voltar para um lugar
já cultivado – a convivência com os
livros aproxima-nos paulatinamente de nós mesmos, dessa busca orgânica e
infindável que é viver.
Comentários