A leitura e a docência nunca foram tão excitantes
Por Rafael Kafka
Tony Illustration |
Nesse
percurso de dez anos em que ocupo espaços de sala de aula, percebo que a
afetividade sempre foi uma presença importante em minha rotina, mesmo sem
conhecer o básico de como esse conceito interage com o processo de
ensino-aprendizagem. Tudo era muito intuitivo e eu tentava de alguma forma
manter uma relação de proximidade com meus alunos. Não queria ser o estereótipo
do professor de cursinho pré-vestibular que dá aula show e é engraçado o tempo
todo para fazer sucesso com os alunos, apesar de em diversos momentos eu usar
estratégias similares para quebrar a monotonia das aulas e assim tornar tudo
mais leve.
Dar aula me
ensinou que afetividade é um conceito amplo demais, manifestando-se de diversas
maneiras em todos os contextos de nossa existência. Nesse sentido, a
afetividade vivida na escola não deve ser a mesma vivida em casa e devemos
refletir sobre os motivos que levam à projeção dos alunos desse outro tipo de
afeto mais familiar dentro das salas de aula, um fator a mais para entendermos
a necessidade da presença de uma equipe multidisciplinar dentro do ambiente
escolar. O afeto dado pelos pais não é o mesmo afeto dado por um professor, por
um amigo etc.
Nesse
sentido, em dez anos de carreira eu percebo ter mudado diversas formas o
projeto original de afetividade que eu tinha. A base continua sendo a mesma:
promover na sala de aula um debate constante sobre os temas cotidianos usando a
língua portuguesa como meio de reflexão. Nunca fui um professor gramatiqueiro e
defendo a visão de que um indivíduo melhora sua comunicação exercendo a leitura
e a produção de textos orais e escritos com frequência. Por esses dias, ouvi de
pessoa com quem trabalho que as regras gramaticais fazem as pessoas escreverem
melhor, ao que respondi que quando escrevemos não pensamos na regra que estamos
usando. A consciência não tética da língua, intuitiva, domina-nos. Essa
consciência é gerada por meio de nosso processo de socialização e interação com
os outros. Essa visão gerativista da língua muito me toca não apenas pela
simpatia ao pensamento político de Noam Chomsky, mas também pelo processo
pessoal de leitura que vivo desde criança.
Vivendo em
uma realidade de pobreza material e déficit de atenção, a leitura foi uma ação
que me levou a ter uma espécie de fuga da realidade, tema que por si só merece outro texto. O que importa aqui é que vejo
no meu processo de formação intelectual a influência clara da leitura no modo
como me comunico. Lendo quadrinhos, livros infanto-juvenis e depois mangás,
vendo animes, filmes, séries passei a imitar as estruturas de comportamento e
de linguagem que via naqueles textos, o que ampliou tanto o meu rol de
vivências e de recursos de comunicação e sensibilidade.
Lembro-me de
não prestar muita atenção nas aulas de língua portuguesa, pois por mais
adorável que a professora fosse ela via conteúdos que nada me diziam respeito.
Fui entender apenas o que é uma oração subordinada ao estudar para dar aula
muito tempo depois, mas já nos meus tempos de estagiário na escola pública eu
sentia que os alunos se sentiam mais envolvidos por mim quando eu falava dos
textos de modo a mostrar como a vida deles aparecia ali. Nesse sentido, a
confluência entre leitura de mundo e leitura do texto sempre esteve em minha
visão de docência e mesmo trabalhando com materiais didáticos sofríveis por
muitos anos eu conseguia pegar aqueles textos recortados e muitas vezes sem
sentido para provocar debates e reflexões.
Assim,
questionei a minha interlocutora supracitada que defende a visão da gramática
da norma padrão em uma perspectiva de gramática gerativa sobre os hábitos de
leitura de seu filho e se de repente ela não estava focando em um detalhe não
tão importante. Afinal, é sem dúvida mais produtivo saber ler, interpretar e
criticar do que decorar uma regra gramatical. A língua não se prende a regras.
A afetividade, portanto, é justamente a reafirmação dessa zona proximal
envolvendo alunos e professor. É a horizontalidade do processo de ensino com
cada peça sendo tratada como ator vivo e ao mesmo tempo ferramenta de
aprendizagem, usando o contexto no qual a aula se dá para promover a
aplicabilidade dos temas discutidos em sala para a criação de uma visão crítica
da realidade.
Muitos podem
pensar existir aqui uma visão de proselitismo político partidário, mas é
importante ressaltar que são dois fatos diferentes. O que se deve buscar é a
construção de uma atitude cognitiva em que se consiga ouvir o outro, entender
sua visão, analisá-la e respondê-la de modo respeitoso. Algo defendido por
conservadores como Roger Scrutton é que o legado das sociedades judaico-cristãs
garantiu o progresso de nosso meio social por meio de elementos como a
democracia representativa. Por mais que possamos e devamos colocar entre
parênteses o conceito de “progresso”, por demais eurocêntrico dentro dessa
visão política, é interessante discutirmos como em nosso meio social a
democracia representativa é algo que precisa ainda ser conquistado, pois a
população em geral não enxerga representatividade alguma na classe política, o
que ocasiona o fenômeno de um voto inconsequente seguido de um não
acompanhamento dos debates nas casas legislativas.
Em outro
extremo desse tecido social, há a polaridade política cada vez mais tensa em um
clima que muitas vezes lembra por demais uma guerra civil em construção. Os
dois fatos evidenciam a necessidade de uma educação libertária focada na
autonomia do pensamento. Muitos confundem isso com a defesa desse ou daquele
partido político em sala, algo que em todos esses anos tentei fazer apesar.
Hoje, até por entender que a política está em nossos menores gestos, faço
leituras com meus alunos de clássicos e novos escritores no sentido de debater
elementos existenciais e daí partirmos para nosso cotidiano, mas sempre
tentando acolher e entender todas as visões dentro de um olhar pluralista. Por
conta disso, dois dos alunos que mais me causam afeto e mais me admiram são
dois conservadores declarados.
Com o passar
do tempo, amadureci a possibilidade de usar os conteúdos para discutir esse ou
aquele fato social, pedindo comentários escritos e orais. Comecei a levar
textos que imprimo do meu bolso mesmo sabendo não ser minha obrigação. Levo
filmes e episódios de séries, peço resenhas críticas, diários de aprendizagem,
peço aos estudantes para se avaliar e me avaliar e juntos buscamos formas de
melhorar. Antes, quando ainda focava mais em gracejos e pequenos sermões sobre
a importância de ler, não entendia por que meus alunos eram hostis a mim apesar
de me esforçar em lhes dar afeto. Hoje entendo que meu afeto virou em algo
concreto, pois estou sempre os acolhendo, ouvindo-os e provocando-os a pensar
sobre si mesmos e sobre a realidade circundante. Dez anos depois, dar aula me
parece uma atividade mais excitante do que nunca e quando entro em sala vejo os
alunos me ouvindo com atenção, instigados.
Mas ainda os
sentia tímidos para falar e isso me incomodava. Decidi então dividir as turmas
em grupos, quebrar as tarefas em partes para cada grupo, fazer brainstorms para
os diários de aprendizagem, mapas mentais para inspiração para os textos
críticos e auto avaliativos, leituras compartilhadas e cineclubes divididos em
debates puxados pelos grupos a partir de elementos dos filmes e textos visto e
nos últimos dias vejo meus alunos mais participativos do que nunca, mesmo que
muitas vezes eu precise instigá-los a responder ao menos um “sim” ou “não”.
Precisei de
muita evolução intelectual para chegar a esse ponto, mas também de muito
investimento em saúde física e mental. Não romantizo a profissão de professor e
sei que além de amor ela precisa de valorização social e econômica em nosso
país. Em dez anos, vi a minha ansiedade piorar demais devido aos problemas
familiares, existenciais e mesmo cognitivos que encaro desde criança. Eu fiz
terapia, voltei a fazer e voltei mais uma vez. Eu fui ao psiquiatra para
entender meu déficit de atenção e hoje consigo lidar muito bem com ele usando
todo meu pensamento acelerado para pensar em metodologias ativas e críticas em
sala de aula para incentivar meus alunos a falarem mais e mais sempre, a
criarem uma rede de afetos viva com os saberes e consigo mesmos e com seus
pares. A sala de aula virou para mim uma grande rede terapêutica não apenas
porque eu consegui me entender por meio dela, mas sim porque hoje eu vejo meus
alunos procurando se entender por meio do entendimento da realidade que eles
vivenciam.
Não os quero
seguindo essa ou aquela visão específica. Eu os quero defendendo seus pontos de
vista sem agressividade, reforçando realmente a importância da democracia
representativa, ocupando espaços importantes para defender seus direitos e
cumprindo seus deveres. Quero-os vendo o outro como sujeito e não como objeto
de seu amargor por pensar diferente, entendendo os programas sociais, as visões
ideológicas variadas, lendo sobre tudo, sobre o defendido e o questionado e
criando uma rede de diálogos infinita e profundamente rica.
Apesar de
todo o caos, algumas flores nascem no asfalto e eu vejo muita coisa bela mesmo
com as dificuldades da escola pública em nosso país. Quando criança, a leitura
me salvou da pobreza material, me fazia caminhar para a escola feliz, preso em
meus pensamentos, refletindo que apesar dos conflitos, do terror e de todo
sofrimento eu tinha aquele prazer de descobrir, de sentir o mundo, de ver a
realidade. Hoje eu vejo um efeito similar na sala de aula: no meio do caos, eu
tenho aquele prazer, aquele amor pelo conhecimento compartilhado com meus
alunos, gestores e colegas. Eu me pego parando leituras para sorrir sozinho e
penso em ideias o tempo todo para trabalhar com meus estudantes. A vida é um
ciclo de ciclos e a gente se percebe vivendo de formas diferentes as mesmas
coisas em muitos momentos.
Hoje, dez
anos depois, a leitura e a docência nunca me pareceram tão excitantes, porque
eu me sinto revivendo os tempos felizes da infância, em que apesar de toda a
tristeza a leitura me fazia pensar que valia a pena viver para rir e sentir os
fenômenos da existência.
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