O primeiro roteiro escrito por Gabo
Por David
Marcial Pérez
Cansado do
jornalismo e com a esperança de conseguir melhor proveito de sua paixão pelo
cinema, Gabriel García Márquez chegou ao México em 1961. Carlos Fuentes estava há
quatro anos casado com uma atriz, Rita Macedo, era íntimo de Luis Buñuel e já havia
dado seus primeiros passos nessa seara escrevendo algum curta. Enquanto isso,
Juan Rulfo, dez anos à frente e com suas duas grandes obras publicadas, era o
mais envolvido com o meio da época: havia filmado com María Félix e escrito
roteiros para Indio Fernández. Tomados por uma espécie de febre do ouro, a
flutuante indústria cinematográfica mexicana não apenas atraiu aos três gigantes
da literatura, como os colocou para trabalhar juntos.
Tudo se
forjou no “castelo do Drácula”, como chamava Gabriel García Márquez a sede da
produtora de Manuel Barbachano. Aí, nas tertúlias do escuro casarão da
capital e da mão de seu compatriota colombiano Álvaro Mutis, o recém-chegado
entrou em contato com exilados espanhóis como Carlos Velo, um dos diretores
estrela do cinema da era de ouro mexicano, ou o próprio Fuentes, que já
começava a despontar depois da publicação de A região mais transparente
(1961). Desse efervescente caldo nascerá a oportunidade: em 1963, Gabo começa a
trabalhar como roteirista adaptando um texto de Juan Rulfo, O galo de ouro,
uma novela – inédita até 1980 – sobre a fatalidade e a fortuna através do
mundo das feiras e das competições e que Rulfo já escreveu pensando em sua adaptação
para o cinema.
O filme estrearia
em 1964 e o roteiro que se conhecia é desse mesmo ano. Até agora. Perdido entre
os arquivos familiares, o filho do diretor, Roberto Gavaldón, encontrou um novo
texto concluído em dezembro de 1963. Sob a responsabilidade da Fundação Rulfo,
o texto é publicado pela primeira vez no livro Juan Rulfo y el cine
(Juan Rulfo e o cinema, em tradução livre). O roteiro consta de 68 páginas datilografadas,
encadernado em pastas verdes e com dois nomes como autores: Gabriel García
Márquez e Carlos Fuentes, os mesmos adaptadores que aparecem no roteiro definitivo
– junto com o diretor – mas com a ordem de aparição invertida.
“O fato de
que apareça primeiro seu nome, nos sugere que a autoria principal é de García
Márquez, enquanto o segundo [roteiro] seria talvez mais de Fuentes. Trata-se de dois
textos muito diferentes entre si. O primeiro é muito mais literário e o segundo
não é simplesmente uma revisão e sim uma reescritura”, diz Douglas J.
Weatherford, professor da Brighan Young University of Utah, especialista nas relações
entre o cinema e Rulfo e autor principal do livro porvir, coeditado pela
universidade e RM.
Sua tese se
baseia no acúmulo de características de cariz literário, muito ao estilo de
Gabo, inclusive com alguma ligação ao seu segundo romance que acabava de ser
publicado na Colômbia, Ninguém escreve ao coronel. Algumas das modificações
que não aparecem nem no texto de Rulfo nem no segundo roteiro: a acentuação dos
poderes sobrenaturais da protagonista e do galo – com ecos do animal do coronel
–, a existência de um povoado fantasmagórico que recorda Comala e a evocação de
um coronel chamado Pedro Páramo. “Assistimos a um jogo intertextual maravilhoso
fruto da sensibilidade de García Márquez e de sua leitura da obra de Rulfo”,
acrescenta o pesquisador.
A autoria quase
exclusiva do escritor Prêmio Nobel colombiano é reforçada também por um comentário
a uma das cenas, onde o roteirista se refere a si mesmo como “o adaptador”, no
singular. O texto datilografado contém além disso uma anotação feita à mão, uma
linha de diálogo acrescentada a um dono da cantina. Com tinta negra e traço
redondo, os pesquisadores logo atribuem a García Márquez, hipótese que foi também
corroborada pela Fundação Gabo. “Ele vinha de uma experiência radiante como correspondente
em Nova York e no México busca um trabalho com melhor estabilidade através do
cinema, que desde pequeno lhe havia fascinado. Foi crítico na imprensa
colombiana e chegou a fazer aulas de roteirização, direção e montagem no Centro
Experimental de Cinematografia de Roma”, diz Jaime Abello, diretor da Fundação.
Os diálogos
tão bem cuidados pelo jovem Gabo teriam sido, paradoxalmente, a causa da
entrada posterior de Fuentes no projeto. Na produção, Barbachano considerava
que estavam escritos “em colombiano” e pediu uma segunda mão para corrigi-los.
Fuentes já tinha algum tempo envolvido nas aventuras de Barbachano, que tentava
com a presença de nomes significativos da nova literatura, revitalizar uma indústria
que começava a dar sintomas de esgotamento. Desde há menos de um ano que o diretor
trabalhava com Carlos Velo na adaptação de Pedro Páramo, que acabaria
filmando em 1966.
O próprio
Rulfo esteve envolvido no começo do projeto. Estão documentadas suas viagens a
Jalisco, sua terra natal, em busca de locações para o filme. A intervenção de
Rulfo na adaptação de O galo de ouro é mais nebulosa. O único indício é
outro comentário a uma das cenas, a que traz uma longa descrição sobre o traje
do protagonista e diz “segundo descrição verbal do próprio Rulfo”. Quando García
Márquez chegou ao México, ainda não ouvira falar sobre escritor. Até que uma
noite, o amigo Mutis subiu os sete andares de sua casa mexicana Pedro Páramo.
“Desde a noite tremenda em que li A metamorfose de Kafka não sofria uma comoção
semelhante”, deixou escrito num artigo em homenagem a Rulfo em 1980, onde
também explicava a origem de sua relação com o cinema: “Alguém disse a Carlos Velo
que eu era capaz de recitar de memória parágrafos completos de Pedro Páramo”.
Realidade ou
exagero adulatório, um Gabo já amadurecido continuou explicando naquele texto
que seu fascínio pela obra de Rulfo ia ainda mais longe: “Podia recitar o livro
por completo, de frente e para trás, sem um falha perceptível, e podia dizer em que página da minha edição se
encontrava cada episódio e não havia uma só característica do caráter de uma
personagem que conhecesse profundamente”.
Mal-entendidos
sobre o segundo romance de Rulfo
Na obra de
Juan Rulfo é lugar-comum encontrar referendado Pedro Páramo e uma compilação
de contos na antologia Chão em chamas. E acrescentar numa escala
inferior O galo de ouro. Grande parte do equívoco nasce do modo em que
foi publicado. Tardiamente, em 1980, sob o título El gallo de oro y otros
textos para cine (O galo de ouro e outros textos para o cinema). O
restante, La formula secreta (A fórmula secreta) e El despojo (O
despojo) foram idealizados especificamente como para o cinema. Mas, como
explica Douglas J. Weatherford, o primeiro não é um roteiro, é um romance; e os
leitores ignoraram ao interpretá-lo com outra coisa.
Os
pesquisadores dizem que a confusão começou em 1956, um ano depois da publicação
de Pedro Páramo. “Depois do sucesso do romance, começa a receber ofertas
para adaptá-lo para o cinema. Então, decide escrever uma obra sem tantas
complexidades. Algo mais filmável, mas nasceu um texto literário, não cinematográfico”,
aponta Víctor Jiménez, diretor da Fundação Rulfo. O próprio Gabriel García
Márquez foi da mesma opinião: “A linguagem não era tão detalhista como a do
restante de sua obra e havia pouquíssimos recursos técnicos dos seus, mas sua
aura pessoal voava por todo o âmbito da narrativa.”
Assim
começa o inédito
“1.-
Créditos. Rua San Miguel del Milagro. Amanhecer
Amanhece.
Enquanto os créditos passam, se escutam os sinos de uma igreja.
(San Miguel
del Milagro é um vilarejo de construção colonial: portais com arcadas, casas
com paredes lisas e ruas largas e de paralelepípedos. Ao amanhecer, o clima é
frio e úmido e as pedras das ruas brilham com orvalho. Ao meio-dia é quente e
seco, com um sol no alto e poeirento que brilha através das paredes de cal e
produz uma sonolência dentro das casas).
Mulheres com
xales pretos se dirigem para a igreja. No fundo do som da campainha começa a
ser ouvido, remoto, o grito de um pregador. Suas palavras, ainda incompreensíveis,
parecem um lamento.
À medida que
os créditos avançam, se vislumbra no fundo da rua a figura do pregador. Ele
carrega na mão uma lamparina que oscila de um lado para o outro enquanto grita
sua proclamação.
A campainha
para de tocar quando o último crédito é exibido. O pregador se aproxima do
primeiro plano. É Dionisio Pinzón.”
Assim começa
o primeiro roteiro que García Márquez escreveu, uma adaptação à linguagem
cinematográfica do romance de Juan Rulfo, O galo de ouro, uma história
trágica sobre a ascensão e queda de Dionisio Pinzón, “um dos homens mais pobres
de San Miguel del Milagre.” Graças a sua esposa, a Caponera, um amuleto vivo
que ajuda os homens a ganhar riquezas, Pinzón entra no mundo das rinhas de galo,
mariachis e jogadores que perseguem seu destino de feira em feira pelas cidades
do Bajío mexicano.
* Este texto
é a tradução de “Ve la luz el primer guion escrito por Gabo”, publicado aqui,
no jornal El País.
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