Primeiras estórias: o alvorecer do estilo tardio
Por Guilherme Mazzafera
A publicação de Primeiras estórias em 1962, em parte prenunciada pela disseminação de alguns dos textos n’O Globo a partir de 1961, impinge um ponto de virada na obra de Guimarães Rosa que talvez possa ser pensado como a passagem da diástole à sístole.
Uma possível interpretação teleológica da obra rosiana como um todo poderia se ancorar no pressuposto estruturante das formas literárias (e seu esgotamento) enquanto uma espécie de odisseia da linguagem em busca de sua essencialidade, tendo como meta final o silêncio comunicante. A concisão progressiva da escrita após um período inicial de grande diástole (os contos longos de Sagarana, o ciclo de novelas de Corpo de baile e um romance de fôlego e fluxo como Grande sertão: veredas), culminando nos contos breves de Primeiras estórias e nos “romances em potencial comprimidos ao máximo” (RÓNAI, 2009, p. 21), que são os quarenta microcontos de Tutameia, parece evidenciar uma forte necessidade subjetiva de condensação, movimento sempre presente na reescritas rosianas, de Sezão, versão preliminar de Sagarana, até os textos que compõem os livros publicados postumamente. Se quisermos acentuar o pendor teleológico de tal hipótese, basta uma olhada no epílogo de um dos exemplares de Sezão guardados no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Intitulado “Porteira de fim de estrada” (JGR-M-01,01), nele o autor anunciava já em 1938 um próximo livro chamado Tutameia que, como se sabe, acabou por ser seu último livro publicado em vida. Sabendo que Sezão é uma versão bem mais substanciosa de Sagarana e que os livros seguintes foram ainda maiores, fica clara a impossibilidade de uma obra com tal nome naquele momento. Todavia, a ideia pode ter perdurado como uma espécie de meta que se cumpriu após um longo período de depuração estilística.
No entanto, embora tal hipótese vá ao encontro da construção da autoimagem do escritor e de um projeto claramente definido que se encerra de modo mitificante com sua morte espetacularizada (um sertanejo de gabinete de Cordis-burgo que morre de infarto três dias após sua posse adiada por quatro anos na Academia Brasileira de Letras), os livros póstumos colocam alguns problemas para essa hipótese. Estas estórias possui textos de extensão semelhante aos de Sagarana, contando, em parte, com composições antigas rearranjadas: “Bicho mau” fazia parte de Sezão (1938); “Entremeio – Com o vaqueiro Mariano” é uma versão com poucas modificações do livro de 1952, que, por sua vez, contém várias mudanças em relação ao texto publicado em três partes entre outubro de 1947 e março de 1948; e “Meu tio o Iauaretê” apresenta indícios de composição do final dos anos 1940 (COSTA, 2002), embora publicado em periódico em 1961. Dos seis textos restantes, três foram publicados na primeira metade dos anos 1960: “A simples e exata estória do burrinho do comandante” (1960), “A estória do Homem do Pinguelo” (1962) e “Os chapéus transeuntes” (1964), que saiu como um dos sete capítulos escritos por autores diferentes no livro Os sete pecados capitais (José Olympio, 1964), correspondendo ao pecado da soberba. Por fim, as três narrativas remanescentes – “Páramo”, “Retábulo de São Nunca” e “O dar das pedras brilhantes” – parecem ser de composição mais recente e/ou não plenamente acabada (RÓNAI, 2006, pp. 15-17), o que indica que Rosa continuava a produzir textos mais longos. Junte-se a isso a verdadeira “miscelânea” de textos que compõem Ave, palavra (1970) assim como a variedade de obras inéditas com tamanho razoável e a hipótese não se sustenta tão bem.
Creio ser mais pertinente pensar que tal dificuldade classificatória, que marca a recepção de toda a obra do escritor, não apenas parece prenunciar, em alguma medida, a indistinção das formas narrativas em Sagarana (contos ou novelas?) e sua verdadeira flutuação polivalente na produção 1947-1954, o período entrelivros em que Rosa publicou por volta de 20 textos em periódicos (conto-retrato, conto-crônica, entrevista-lírica...), mas constitui, em si mesma, um recurso literário de grande alcance que o autor passará a dominar com segurança a partir de Corpo de baile. (ROWLAND, 2011) De fato, a notação autoral presente no sumário desta obra indicia uma visada tríplice das formas. Encabeçado por pares de “poemas” (“Campo Geral” e “Uma estória de amor”; “Lão-Dalalão (Dão-lalalão)” e “Buriti”), o ciclo é atravessado por dois contos (“O recado do morro” e “Cara-de-Bronze”) e um único “romance” (“A estória de Lélio e Lina”), termos que, naturalmente, referem-se ao uso idiossincrático do autor e não a quaisquer definições de manual.
Mas é sem dúvida com Primeiras estórias que emerge um sentido mais orgânico de forma passível de serialização. Se a simples justaposição de textos permite vislumbrar certos eixos compositivos (como a relação entre infância, velhice e entremeio geracional figurada no tríptico de abertura), a arquitetura do volume, em seu espelhamento ostensivamente perfeito – mas que não inibe sutis refrações –, acrescenta novos matizes interpretativos, sugerindo a leitura pareada de narrativas a partir de seu centro “filosófico” (“O espelho”). Antes de arriscarmos algumas linhas em exercício análogo, cabe refletir um pouco sobre certa dimensão “tardia” que o livro representa na obra rosiana.
Em um estudo exemplar, Edward Said dedica-se a pensar no que constitui o sentido tardio em obras de escritores, músicos, pintores. Embora certos casos apontem para o aparo de arestas, os mais instigantes parecem ser os que desvelam o surgimento de novas anfractuosidades:
“Qualquer um de nós pode citar casos de obras tardias que coroam uma vida de trabalho estético. Rembrandt e Matisse, Bach e Wagner. Mas o que dizer de obras tardias que não são feitas de harmonia e resolução, mas de intransigência, dificuldade e contradição em aberto? [...] um momento em que um artista em pleno controle de seu meio estético abandona a comunicação com a ordem social estabelecida de que ele é parte para chegar a uma relação contraditória e alienada com ela.” (SAID, 2009)
À luz desta definição, o adjetivo “primeiras” passa a valer como uma recusa imediata de prolongar uma conversa que já caducara, procurando estabelecer novas bases diante de uma ordem social em vias de transformação. “São as primeiras estórias de um Brasil novo no começo do surgir”, dirá Luiz Costa Lima já em 1963. A dificuldade da obra resulta não tanto de veleidades autorais, mas do dificultoso exercício de prover uma sequência de sínteses – enlaçadas, espelhadas e, por vezes, contraditas – em face de um presente não de todo constituído, mas que já reclama exegese. Esta, no entanto, não pode dar-se por meio de uma linguagem desfibrada, sem rugas, ou ainda ordenada pela boa gramática e convenções narrativas obsoletas. Os múltiplos personagens que conhecemos aqui assomam-se como hermeneutas muitas vezes convictos, cujo arrazoado é antes da ordem do simbólico que do discursivo: “Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.” (RÓNAI, 2005)
Embora Primeiras estórias seja um livro amado (e mesmo preferido) por certo contingente de leitores de Rosa, não é de todo incomum encontrar pessoas que o tomam como sinal de decadência criativa de um autor que, com raríssimas exceções, não teria produzido a partir daqui nada digno de seus primeiros três livros. Em outras palavras, Rosa mal teria sobrevivido a Grande sertão: veredas. Ainda que concorde com tal afirmação da perspectiva exclusiva de uma forma literária específica (o romance), discordo convictamente destes leitores quanto ao alcance estético das obras tardias de Rosa. Se, como afirma a quarta capa da nova edição da Global, lançada há alguns meses, Primeiras estórias tem-se feito “inestimável porta de entrada para os leitores ingressarem no universo rosiano”, trata-se de uma porta um tanto estreita, composta por uma linguagem condensada e de alta ressonância simbólica, em que o adjetivo remete antes à reconfiguração de um método do que à primazia cronológica.
Para os leitores dos livros precedentes de Rosa, além da brevidade dos textos, há algo que salta de imediato aos olhos nesta coletânea: o alargamento dos espaços urbanos, atravessando o sertão de outrora, ressignificado pela urgência do presente histórico. Rosa certamente poderia ter “parado” após o romance, recompondo a mesma toada com sutis variações nos infinitos espaços de sua imaginação. Mas o próprio espaço que tomara como seu não estava imune aos avanços e projetos de integração nacional discutidos nos anos 1950 (que ganham uma primeira resposta ensaística em “Pé-duro, chapéu-de-couro”, de 1952) e que alcançam ressonância simbólica com a construção da “grande cidade” figurada em “As margens da alegria”, que a crítica há muito identificou como Brasília. Uma breve sondagem biográfica revela que Rosa viajou ao menos duas vezes para lá em 1958, tendo anotado, inclusive, o avistamento de um tucano, tal como vemos em “Os cimos” (CAMARGO, 2013). O dado mais relevante, no entanto, parece ser justamente o caráter desmedido de levantar a nova capital do país onde antes como que nada havia. Ao espaço do jagunço imiscui-se agora o palacete da lei e da ordem. No entanto, tratando-se do Brasil e sua interregno constitutivo, a tomada do sertão pela cidade não deixa de desvelar seu lado oculto e mesmo recalcado: “As narrativas deixam no ar essa latência: num momento de euforia modernizante no Brasil, as cidades são ainda e sempre sertão, e no mundo cidadão a inconclusividade da lei, sua (não-)fundação, permanece espetando como questão e problema.” (WISNIK, 2002)
Esta nova edição da Global, além da belíssima capa, feita mais uma vez a partir do trabalho fotográfico de Araquém Alcântara, traz um excelente estudo de Luiz Costa Lima, “O mundo em perspectiva: Guimarães Rosa”, publicado originalmente em 1963. Após o incontornável “Os vastos espaços”, de Paulo Rónai, o texto de Costa Lima é dos melhores já escritos sobre a obra como apresentação de conjunto, e oferece potentes vislumbres de seus entroncamentos, inclusive de seus perigos ao perseguir, em uma minoria de contos, uma “trilha fantasista” em que “o conteúdo mágico é uma forma de afastar o leitor de uma penetração na realidade”, algo consideravelmente grave diante das importantes mudanças que o país atravessava e que produz efeitos sobre a própria linguagem, tornada “deslastrada do real”, diminuindo a potência transfiguradora do estilo. Por outro lado – e representando a vasta maioria dos contos –, quando bem lograda, a “impregnação mágica do conteúdo das estórias se converte no meio de vislumbrar os limites da condição humana”, aqui representados mormente por personagens de exceção (loucos, aleijões, crianças, velhos), elementos constitutivos de “uma forma cósmica de realismo” estruturada por uma perplexidade perspectívica.
Em sua leitura exemplar, Paulo Rónai põe em evidência a importância estruturante do anticlímax em contos como “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”, “O cavalo que bebia cerveja”, “Luas-de-mel”, “Darandina”, “Tarantão, meu patrão”, em que “o conflito esperado deixa de se cumprir, o desfecho realiza-se no íntimo das personagens.” (RÓNAI, 2005) Chamando ao debate outra leitura fundamental do livro, a de Alfredo Bosi em “Céu, inferno”, percebe-se como este desfecho anticlimático muitas vezes é minuciosamente construído pelo autor de modo a “tornar mais aguda a inteligência e mais vivo o desejo dessa reversão [da necessidade e da fortuna], de tal modo que a mudança radical, quando acontece, se deva não tanto a um misterioso favor do acaso quanto à vontade profunda, gestada no coração das criaturas que esperam.” (BOSI, 2010)
Um dos ápices desta poética do antliclímax dá-se indubitavelmente em “Os irmãos Dagobé”, conto que atualiza, a seu modo, o julgamento de Zé Bebelo em Grande sertão: veredas ao ressignificar a lei subscrita da vingança sertaneja em prol de uma compreensão mais moderna de justiça. Se no romance a própria realização do tribunal constitui dado anacrônico a partir do qual, por uma reversão curiosa, a obra ganha uma feição mais épica e linear, arcaica e violenta, desvelando sua face “negra”, como propõe um crítico (RONCARI, 2018), em “Os irmãos Dagobé” esta compreensão dá-se no íntimo das personagens. Neste conto, três irmãos, “absolutamente facínoras”, organizam o enterro de outro, mais velho, “ferrabrás e mestre”. Primeiramente, a gente suspeitava de encenação, mero fazer ver – “Só queriam ir por partes, nada de açodados, tal sua não rapidez. Sangue por sangue; mas, por uma noite, umas horas, enquanto honravam o falecido, podiam suspender as armas, no falso fiar” –, e Liojorge, que matara Damastor Dagobé, já parecia a todos “alma para sufrágios”, a ser morto a “queima-bucha” logo após o enterro em que ousara aparecer e conduzir caixão. Mas, no desfraldar da “circunspectância”, eis que o mais velho dos três restantes, Doricão Dagobé, diz ao algoz do irmão: “Moço, o senhor vá, se recolha. Sucede que meu saudoso Irmão é que era um diabo de um danado”. E, entre duas chuvas, anunciam os irmãos mudança iminente para fora do lugar onde “não havia padre”, a fim de “morar em cidade grande”.
Adotando o já tradicional método de leitura especular – e deixando de lado diversas joias da contística rosiana que exigiriam múltiplos textos à parte –, tomemos a dupla “Famigerado” e “Tarantão, meu patrão”. Em um primeiro momento, os textos parecem desenhar trajetórias opostas entre seus protagonistas – a descida do então altaneiro jagunço Damázio à dependência lexical do homem de letras, capaz de lhe fiar o destino pela escolha entre o vocábulo morto do dicionário e a palavra viva do uso popular, e, por outro lado, a ressurgência de Iô-João-de-Barro-Diniz-Robertes, “descendente de sumas riquezas”, como Quixote sertanejo às avessas que, congraçado com seus “cavaleiros”, acaba por tomar a palavra para si e discursar “ideias já diluídas”. Esta diferença é reposta também pela voz narrativa de cada caso: o doutro letrado, narrador ardiloso, “desconfiável”, que evita “ser convertido em fármacos – vítima sacrificial – através do uso homeopático do fármacon –, o venenoremédio da mesma palavra que traz a ameaça” (WISNIK, 2002) e o leal Vaga-Lume, que permanece emocionado ao recontar os feitos do patrão a um terceiro.
A dupla também retoma, em chave diversa, o famoso topos de armas e letras, cuja representação exemplar talvez se encontre justamente em Cervantes, pela boca de seu estimado cavaleiro andante em famoso discurso presente na primeira parte do Quixote: “Chegar alguém a ser eminente em letras lhe custa temo, vigílias, fome, desnudez, vertigens, indigestões e outras coisas a estas aderentes, já em parte referidas; mas alguém chegar por si a ser bom soldado custa o mesmo que ao estudante, mas em tão mais alto grau que não há comparação, pois a cada passo está a pique de perder a vida.” (CERVANTES, 2015, p. 490) Nascido sob o signo de Marte, o cavaleiro parece favorecer as armas, mas no segundo volume do Quixote vemos uma reconfiguração mais equilibrada, sendo a junção dos ofícios da arte e da guerra uma espécie de ideal ético-estético muito presente na cultura espanhola do período: “Dois caminhos há, filhas, por onde podem os homens seguir e chegar a ser ricos e honrados: um é o das letras, outro o das armas.” (2015, p. 641).
Como mostra Curtius (2013), o topos tem vida longa, derivado de outro mais antigo, sapientia et fortitudo, e aparece em Boiardo, Ariosto, Spenser. Seu apogeu encontra-se na Espanha dos séculos XVI e XVII com sua plêiade de poetas-soldados (Lope de Veja, Garcilaso de la Veja, Cervantes, Calderon de la Barca). Em termos rosianos, Riobaldo é quem melhor encarna esta dualidade, sendo tanto o “Cerzidor” de pontaria perfeita como o “professor” de Zé Bebelo, e a cena emblemática desta tensão encontra-se no momento em que sob liderança de Zé Bebelo o grupo encontra-se sitiado pelos Hermógenes na Fazenda dos Tucanos, e Riobaldo precisa escrever cartas, a mando do chefe, às autoridades militares a fim de que atacassem pela retaguarda dos inimigos, criando possível brecha para a fuga dos Ramiros, ato que, para Riobaldo, cheira à traição. É no espaço entre cumprir o ofício de notário e dar cabo do chefe, assumindo para si, enfim, o mando (o que fará mais tarde de forma um pouco menos violenta), entre ser cumpridor ou dador de ordens, que reside uma das ambiguidades essenciais do percurso riobaldiano.
Homem-cavaleiro que vem “para morrer em guerra”, dispondo seus sequazes-prisioneiros em um “encantoável” que lhes dificulta a fuga, Damázio, dos Siqueiras, era jagunço “até na escuma do bofe”. Cruza mais de seis léguas a fim de indagar ao narrador sobre certo vocábulo ouvido lá na Serra, possivelmente usado pelo “moço do Governo”. Não sabia se era nome caçoável, e ninguém próximo possuía “o livro que aprende as palavras”. O narrador rapidamente observa que Damázio “estava em armas – e de armas alimpadas” e que, em eventual altercação, “Com um pingo no i, ele me dissolvia”, de modo que, desarmado, terá que se valer de estratégias outras. Ao habilmente ofertar uma única acepção para o vocábulo “famigerado”, compreendendo o anseio de seu interlocutor, o narrador ganha a simpatia de Damázio, que aceitando um copo d’água, exclama que nada há como “as grandezas machas de uma pessoa instruída”. Assim, em “Famigerado”, as armas de fogo parecem estar parcialmente à mercê das armas da escrita e da leitura, potencialmente mais ambíguas ao revelar escondendo seus sentidos-desvios:
“O ‘famoso assunto’, aqui, é a conversão, a um só tempo tautológica e paradoxal, do famigerado em famigerado, já que a palavra designa ao mesmo tempo, num duplo sentido antitético, o insigne e o mal afamado, o homem notável e o malfeitor, o sujeito digno de respeito e o criminoso. Operada pelo letrado, no limite entre a ameaça e a astúcia, a manobra expõe a potência ambivalente mercurial da língua ao mesmo tempo que a escamoteia – através dela o conto guarda e exibe, ainda, a ambiguidade da lei não fundada e o nó não desatado da violência cordial, cujas implicações são cheias de consequências para a discussão do Brasil contemporâneo. Se o Brasil se moderniza sem se modernizar, ou se é vocacionado para o moderno sem nunca chegar a sê-lo, ou, em outros termos, se muda sem mudar as bases sobre as quais se constituiu, é ele mesmo que está em jogo na famigerada palavra que se notabiliza por dizer o contrário do que diz.” (WISNIK, 2002)
Em “Tarantão”, por sua vez, os feitos de guerra são antes fervorosamente enunciados do que levados a cabo, e é como arauto do mal que Tarantão reúne seu périplo de desvalidos, movido por vingança contra seu sobrinho Magrinho e a lavagem intestinal de que fora vítima, conduzindo seu grupo rumo à cidade onde este habita. Lá chegando, o velho, “que jurava que matava”, conduz seu bando até a casa de Magrinho, adentrando nesta, a despeito da surpresa dos presentes, sem nenhum impedimento. Tendo chegado bem no dia do batizado da filha do sobrinho, os parentes em festa, com “certos sustos em remorsos”, olham assombrados para o velho “em formas de mal-ressucitado” que, após uma tensa “instanteação”, brama: “Eu pido a palavra...”. Tendo os olhos embaciados no momento em que narra a estória e no momento em que a viveu, Vaga-lume, já saudoso do que conta – “Ah, e o Velho, meu Patrão para sempre...” – relata a emoção de todos com as palavras ininteligíveis do velho, a quem, a despeito de ser fiel ajudante, conhecia e desconhecia. Tendo terminado seu discurso e comovido a todos, Tarantão reúne seus cavaleiros em torno de si, desfrutando da festa, “aprontando longes, Com alegria”. Por fim, parado “em suspensão” entre a vida e a morte, a história e o mito, Tarantão, “podendo daqui para sempre se ir”, deixa seu “trato excelentriste”, o nome hierárquico, assumindo, na memória e na estória, o nome de batismo dado por Vaga-lume.
As enunciações de Tarantão – “Mato pobres e coitados”/ “Mato sujos e safados”/ “Mato mortos e enterrados” –, que parecem constituir uma gradação que beira o irracional, mostram-se em seu perfeito avesso. Ao invés de imputar a morte sobre pobres e coitados, sujos e safados, Tarantão lhes dá a vida ao acolhê-los em seu bando ou simplesmente por meio de atos de bondade para com estes. Ao contrário de D. Quixote, que morre de desencanto com a constatação da elisão completa de seu mundo de valores ideal e sem um possível congraçamento com esse mesmo mundo, Tarantão encontra, no avesso de sua trajetória, um instante de irmanação, de enlace lírico que supre as carências efetivas, suas e dos companheiros, transmutando as intenções e tensões violentas em discurso lírico e celebração: “O Velho, fogoso, falava e falava [...] Supremo sendo, as barbas secas, os históricos dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia”.
Enquanto traveja para dominar uma linguagem, hieróglifo da história, que ousa seguir rumo diverso e difuso, Damázio vê progressivamente diminuído o alcance violento de seu braço jagunço, necessitando de testemunhas para garantir que não fora vítima de “nome de ofensa”, o que lhe dispensava de erigir vendeta. Tarantão, abandonado por quase todos, sai a campo pra recobrar o que lhe é devido, congregando antes vassalos que testemunhas, e é com uma linguagem de ofensas e impropérios, progressivamente diluída pela alogia, que ele leva a cabo sua vingança desenredada. Apesar dos limites evidentes, a leitura pareada, que, neste caso, poderia ser ampliada a partir de comparações com o Menino tanto em “As margens da alegria” quanto em “Os cimos”, por exemplo, permite sondar alguns dos veios profundos da escrita rosiana, no caso, o lugar da velhice e do mando pessoal vinculado à tensão imanente ao topos armas e letras em espaço específico que passa por recentíssimas modificações. Deixo ao leitor interessando o convite para orquestrar outros espelhamentos e suas imanentes refrações.
Talvez se possa dizer que a grande vitalidade de Primeiras estórias, primeira das obras tardias Rosa, reside justamente nesta ambiguidade tão bem localizada por Said (2009) em seu estudo: “O estilo tardio faz parte e, ao mesmo tempo, está à parte do presente.” Rosa, a seu modo elíptico, prenhe de fé e angústia, já havia nos dito (quase) o mesmo: “Deus existe mesmo quando não há”.
Referências
BOSI, Alfredo. Céu, inferno. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Editora 34, 2010, pp. 19-50.
BOSI, Alfredo. Céu, inferno. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Editora 34, 2010, pp. 19-50.
CAMARGO, Frederico Antonio Camillo. Da montanha de minério ao metal raro: os Estudos para Obra de João Guimarães Rosa. 2013. 307 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Volume Único. Tradução de Sergio Molina. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2015.
COSTA, Ana Luiza Martins. João Guimarães Rosa, Viator. 270 f. (Doutorado em Letras) - Centro de Educação e Humanidades da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2002.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. Tradução de Teodoro Cabral, com a colaboração de Paulo Rónai. São Paulo, Edusp, 2013.
FUNDO JOÃO GUIMRÃES ROSA, IEB-USP.LIMA, Luiz Costa. O mundo em perspectiva: Guimarães Rosa. In: ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. São Paulo: Global, 2019, pp. 161-176.
RÓNAI, Paulo. Nota introdutória. In: ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 15-17.
RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 19-47.
RÓNAI, Paulo. As estórias de Tutameia. In: ROSA, João Guimarães. Tutameia (terceiras estórias). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 21-27.
RONCARI, Luiz. Lutas e auroras: os avessos do Grande sertão: veredas. São Paulo: Unesp, 2018.
ROWLAND, Clara. A forma do meio: livro e narração na obra de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp/Unicamp, 2011.
SAID, Edward W. Estilo tardio. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.WISNIK, José Miguel. O famigerado. Scripta, v. 5, n. 10, 2002, p. 177-198.
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