O lobo, de Joseph Smith
Por Pedro
Fernandes
Joseph Smith
ainda não foi, ao menos até o início de 2020, assimilado pela web. Uma
pesquisa sobre sua biografia e outros trabalhos só é possível quando
percorremos uma variedade de designativos em língua inglesa. No extenso
labirinto virtual, seu nome é apagado pelo mesmo substantivo próprio que
designa o famoso líder religioso estadunidense fundador do mormonismo. A
confusão parece que não é gratuita, porque a obra do escritor que nasceu na
Inglaterra e vive atualmente na França tem construído desde o seu primeiro
romance, The Wolf, uma legião de leitores fascinados com sua perspicácia
para a fábula.
O livro
escrito a partir da leitura do compêndio de Barry Lopez sobre a vida dos lobos
e a relação desses animais com o meio e o homem, incluindo sua presença no
imaginário mítico e coletivo dos povos – Of Wolves and Men –, ganhou
projeção no mundo inteiro, sempre ressaltado como uma poderosa metáfora ou
mesmo alegoria sobre nós mesmos e nossa existência enquanto indivíduo. Embora
concebido quando Smith ainda vivia na Inglaterra, quando se viu qual sua personagem,
preso num inverno rigoroso no norte do país, o tom fabular de sua narrativa é
fortemente marcado pelo conteúdo das narrativas orais, algumas delas
incorporadas no fabulário europeu desde a Grécia Antiga, incluindo os contos
graciosos oferecidos pela pena dos fabulistas franceses, como La Fontaine; essa
última observação é possível pela coincidência característica com que pinta os
traços de alguns animais, como a raposa, designadamente um animal argucioso,
sagaz e por isso mesmo pouco confiável.
O lobo,
como traduzido para o Brasil por Adalgisa Campos da Silva, foi publicado em
2008 – aqui, no ano seguinte. Dois anos depois do primeiro livro, o escritor
retorna a esse mesmo universo e escreve The Bull. Ao contrário do romance
anterior, o touro personagem da história é um animal domesticado e consciente
de sua natureza envolto entre o dilema pela possibilidade de fugir e o medo da
liberdade. Em 2013, Joseph Smith apresenta uma coletânea de treze textos que
podem ser lidos como contos enquanto constituem uma tessitura particular entre
eles, seja no tema e no estilo: Finally my Ambulance reúne histórias que
voltam a temas como o da jornada – pelo espaço urbano, por um rio na África,
pela zona de conflito da guerra, com o passado próximo e distante –, a morte e
suas implicações filosóficas sobre a continuidade e os valores da existência.
O que se
conta em O lobo é a trajetória de um animal que isolado de sua matilha,
mais ainda em plena forma, se vê deixando escapar uma presa apetitosa capaz de oferecer
uma boa reserva de energia para o longo inverno que tem pela frente. Entre a
preocupação de não se deixar abater pelo rigor do tempo, pela escassez da caça e
pelas limitações que a idade começa a lhe cobrar, acompanhamos suas tentativas pela
existência: a necessidade de se contentar com o que está ao seu alcance e não o
sacia, de encontrar o modo mais fácil de obter comida e o enovelamento com uma
raposa que o arrasta para a viagem do fim. Quer dizer, possivelmente, porque para
o fim da narrativa, mergulhamos num universo de forte apelo onírico capaz de transformar
todos os eventos em situações fabricadas por um complexo de elucubrações entre
o apego material à existência e a sedução irrepreensível da morte.
Incapaz de
se desfazer da condição de predador destemido – “Ataco de olhos abertos e vejo
a morte luminosa e feroz pular no olhar da minha presa” –, o grande dilema desse
lobo passa pela impossibilidade de se desfazer de sua natureza mesmo quando o
que prevalece são as forças contrárias a ela. A morte, ainda que designada com
inevitável, se apresenta como a fatal fraqueza dos seres. Essa conclusão semelhante
ao estatuto alcançado pela morte entre os ocidentais se apresenta nesse romance
como um conceito selvagem, o que leva essa narrativa a se colocar em posição,
se não radical, de confronto em relação ao ideário de razão forjado desde o
aparecimento de uma unidade civilizacional que nos coloca à parte da natureza.
A fuga da
corsa lança o lobo em definitivo num embate que é do animal com ele próprio e
com o seu futuro mais imediato. Assim, é que sua tentativa é se manter definido
pela condição imposta por sua natureza e o contínuo adiamento do fim, o que,
visto de perto, parece ser um só princípio que une todas as criaturas viventes:
a necessidade por existir. A percepção filosófica desse périplo, entretanto, é
da consciência leitora. E aqui reside a força sagaz do texto de Joseph Smith:
traduzir um universo estranho ao nosso sem perder o princípio narrativo da verossimilhança.
Ignorar nossos próprios instintos para nos oferecer um mundo em dilema
percebido pela consciência do animal, diriam uns; assimilar os instintos nossos
aos do animal, pela imprecisão que reside entre eles, fazendo com que estes se
confundam em expressão existencial, diríamos nós.
O universo
fabulado é completamente envolvido pela força do intermitente; não é apenas o estar
perto do fim do lobo, esse é um drama que contorna todos os animais da
narrativa e amplia o potencial sentido pela reiterada paisagem assolada pelos
rigores do inverno, período de latência da morte naqueles países em que esta
estação constitui a mais terrível das estações. O périplo para a morte começa depois
que o lobo intervém no fim trágico de uma raposa tomada pelos corvos; interessado
em garantir uma refeição, o animal se deixa compadecer temporariamente
(e quer mesmo arrastá-lo para o momento exato de melhor satisfação dos
apetites) pelo seu semelhante. É a inversão do interesse suposto do lobo o que
assistimos desde então: a raposa é a que o conduzirá, sorrateiramente, para a
morte. O leitor atento a estas descrições terá percebido no quanto o escritor manipula
as ricas fronteiras do simbólico: o augúrio do fim pelos corvos e o complexo
jogo de sedução assumido, por vezes, pela morte, jogo que se converte entre a
latência do desejo e a pulsão erótica.
O lobo lida
com o fronteiriço. No caso específico do balé descompassado entre vida e morte,
por exemplo, é notável como a raposa se apresenta como uma figuração do limiar;
sua argúcia e esperteza denotada pelo olhar piedoso, como sempre descreve o
lobo, ou pela condução desinteressada do predador que para ela é presa, estabelece
um envolvimento insinuante entre os dois animais que arrasta o lobo para as
fronteiras do fim. Isso fica mais bem percebido, quando, preso num mundo
de escuridão no alto das montanhas, a raposa é transmutada em cisne. O
dicionário de símbolos descreve este animal como o que contempla a união de
opostos, fogo e água, e representação sobre o primeiro desejo, o sexual, e
este flerta com as fronteiras do sublime, que, por sua vez, como dissemos, as da morte.
Tais
sentidos estão conjugados com a figura do lobo, sempre associado à luxúria e à
ambição. Este talvez seja o mais complexo dos símbolos; sua recorrência, no
universo fabular, mítico e imaginário transita entre a encarnação do mal e do
bem. A nobreza desse romance de Joseph Smith, capaz de tantas e variadas
leituras, está em conseguir o pleno equilíbrio dessas múltiplas significações
oferecendo ao leitor uma infinidade de camadas de sentido, incluindo mesmo
aquela que denota uma projeção imprescindível para o conhecimento empírico do
homem se repararmos no embate dos pares de animais, o lobo e a raposa, o lobo e o cisne, um embate
entre os limites da consciência humana; o jogo de forças entre animais é o
choque entre escuridão e luz, denotado por esses animais, respectivamente.
Nem mesmo
escapa ao faro criativo de Joseph Smith os tons de uma discussão ambiental,
quando menciona o desfazimento das cadeias alimentares (novamente evocamos o episódio de voragem dos corvos sobre uma raposa com vida) ou quando coloca, por dois momentos, a conturbada relação entre o lobo e o homem
ou ainda quando sugere que a vida escassa daquele se deve às intervenções deste;
este é mesmo o responsável pela vida intermitente daquele, visto que, o lobo
não consegue escapar da condena para a qual é arrastado pela raposa, mas a ação
que desencadeia, em definitivo, a possibilidade do fim é dada pelo homem.
Por fim, o
desfecho do itinerário do lobo se oferece como uma descoberta de uma dimensão envolta por baixo dos valores incutidos nessa figura: ante a morte, este animal encontra-se com o medo e a dor, um traço que alinhava todos os seres como um todo. Mas, o que parece ser fundamental nessa trajetória é um retorno ao princípio de indeterminação
da vida. Se não conseguimos discriminar ipsis literis uma compreensão
sobre a morte, também aquele conceito melhor se compreende pelo tratamento do fronteiriço.
O lobo nos leva àquela citação de Buffon segundo a qual “se não existissem animais, a natureza do homem seria ainda mais incompreensível”. O lobo é um produto visível dessa expressão. Por através de sua narrativa reencontramos o princípio filosófico que, afinal, é outra chave (talvez a principal) deste romance: “O homem é o lobo do homem”. A sentença do dramaturgo Plautus tornada célebre com a reescritura de Thomas Hobbes é a um só tempo eco e dorsal do romance e este uma tese constituída pela imaginação literária. O autor de Leviatã conceituou-nos como naturalmente egoístas e maus o que nos revela enquanto ameaça para nós mesmos; assim, o lobo de Smith se filia muito apropriadamente a esses nossos conturbados tempos de intermitência, marcados pelo conflito e a violência de nós contra nós e essa incapacidade fatalista de, sabedores do fim, não alcançarmos a utópica saída que nos coloque fora dele.
Todo trabalho de Joseph Smith é construir uma metáfora pela qual se evidencia aquilo que é nossa conduta, distinguida aqui na compreensão acerca de nossa indisposição para o outro nosso semelhante (lobo-raposa) e para o coletivo. Resulta disso uma clara denúncia sobre o desumano que nos habita, seja na essência de aproveitadores dos mais fracos, seja no impulso para a sobreposição sobre os demais decorrente do instinto de autopreservação. Hobbes compreendia que a tendência geral de todos os homens é um perpétuo e irrequieto desejo de poder que cessa apenas com a morte e é isso o que o leitor encontra na fábula do escritor inglês. É o que melhor a literatura pode fazer: dizer sobre nossa indiscreta condição. No Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, poderosa leitura acerca desse tempo recuperado por Smith na sua parábola, lemos em epígrafe, “Uivemos, disse o cão”; O lobo é isto: um uivo para evidenciar o que de pior nos habita.
O lobo nos leva àquela citação de Buffon segundo a qual “se não existissem animais, a natureza do homem seria ainda mais incompreensível”. O lobo é um produto visível dessa expressão. Por através de sua narrativa reencontramos o princípio filosófico que, afinal, é outra chave (talvez a principal) deste romance: “O homem é o lobo do homem”. A sentença do dramaturgo Plautus tornada célebre com a reescritura de Thomas Hobbes é a um só tempo eco e dorsal do romance e este uma tese constituída pela imaginação literária. O autor de Leviatã conceituou-nos como naturalmente egoístas e maus o que nos revela enquanto ameaça para nós mesmos; assim, o lobo de Smith se filia muito apropriadamente a esses nossos conturbados tempos de intermitência, marcados pelo conflito e a violência de nós contra nós e essa incapacidade fatalista de, sabedores do fim, não alcançarmos a utópica saída que nos coloque fora dele.
Todo trabalho de Joseph Smith é construir uma metáfora pela qual se evidencia aquilo que é nossa conduta, distinguida aqui na compreensão acerca de nossa indisposição para o outro nosso semelhante (lobo-raposa) e para o coletivo. Resulta disso uma clara denúncia sobre o desumano que nos habita, seja na essência de aproveitadores dos mais fracos, seja no impulso para a sobreposição sobre os demais decorrente do instinto de autopreservação. Hobbes compreendia que a tendência geral de todos os homens é um perpétuo e irrequieto desejo de poder que cessa apenas com a morte e é isso o que o leitor encontra na fábula do escritor inglês. É o que melhor a literatura pode fazer: dizer sobre nossa indiscreta condição. No Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, poderosa leitura acerca desse tempo recuperado por Smith na sua parábola, lemos em epígrafe, “Uivemos, disse o cão”; O lobo é isto: um uivo para evidenciar o que de pior nos habita.
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