O contista Jean-Paul Sartre
Por Joaquim Serra
Jean-Paul Sartre, Veneza, 1967. |
Jean-Paul Sartre
acreditava que sua filosofia podia falar por meio de sua literatura. Nos contos
de O muro (1939) isso fica evidente. Ao contrário da primeira versão de A náusea
(1938) que mais parecia um tratado filosófico que um romance, uma boa dose de
ação – em poucos espaços, isso é certo – não deixa de existir em alguns dos
contos. Muito ainda no ritmo narrativo de A náusea (1938), Sartre prefere uma
voz vinda dos motivos interiores do sujeito que olha para fora de si para tomar
decisões e perceber – ou não – o acaso da vida, do que um narrador oitocentista,
aquele que buscaria o apolínio ligado a um todo mais ou menos coeso.
Em “O
quarto”, dividido em duas partes, o narrador segue primeiro o pai que irá
visitar a filha que mora com o marido que está louco. O narrador é contaminado
por ele e por seus preconceitos e visão de mundo para, depois da visita
frustrada do pai, permanecer com a filha Ève e penetrar no ambiente que ela
vive todos os dias. O conto certamente discute assuntos atemporais como loucura
e sanidade, solidão, vida e interesse social, e também quem detém a palavra
sobre o louco já que tudo se revela pelo olhar de alguém e, ao contrário de um
Benjy Compson de O som e a fúria ou de um Patrick Bateman de O psicopata
americano, a palavra jamais é emprestada a ele.
Já o
narrador de “Erostrato” é um homem frustrado sexualmente – “nunca tive relações
íntimas com uma mulher; me sentiria roubado” (p. 64) – que resolve comprar uma
arma para acertar as contas com os maus tratos e abusos da vida em sociedade.
Curiosamente, o objetivo do narrador é não somente obter o respeito dos outros,
mas se elevar sobre eles de alguma forma, por isso a prática recorrente de ver
as pessoas do alto de um prédio que, lá de baixo, são como formigas. O sexo,
para ele, seria também uma forma de submissão a um prazer maior que o seu, por
isso, adapta à sua maneira o modo de se satisfazer com prostitutas que deveriam
ser subjugadas e, para que Paul sentisse prazer, elas não poderiam sentir.
Paul pensa e
age somente na imaginação porque não tem oportunidade para revelar quem
realmente é. Por isso a facilidade de comprar uma arma e viver como todo mundo,
e fingir, no meio deles, que jamais poderia fazer o que acaba por fazer, pensa
ele: “Sabia que eles eram meus inimigos, mas eles não o sabiam. Amavam-se uns
aos outros, ajudavam-se; e me teriam ajudado, ocasionalmente, porque
acreditavam que eu era semelhante a eles. Mas se pudessem adivinhar a mais
ínfima parcela da verdade teriam me abatido” (p. 63).
A arma tona-se
sua companheira e Paul acaba por não sair mais sem ela. Isso incita sua cabeça
que começa a ir longe ao imaginar como cada corpo reagiria com um tiro. O ódio
por todos e os meios para eliminar seus problemas – “a gente se sente forte
quando carrega constantemente consigo uma dessas coisas que podem explodir e
fazer barulho” (p. 63) – levam Paul para a solução; matar e depois cometer
suicídio. E o símbolo acaba por tomar conta de sua vontade: “eu era um ser da
espécie dos revólveres, dos petardos e das bombas. Eu também, um dia, no fim de
minha vida obscura, explodiria e iluminaria o mundo com uma chama violenta e
fugaz” (p. 70).
Mas os
planos de assassínio e suicídio não ocorrem como ele queria – os dados estão
lançados, como lembra o título de uma das peças de Sartre – e o autor se
aproveita das técnicas do gênero que admirava por nunca deixar pontas soltas, o
gênero policial, para também falar das imprevisibilidades. Do seu modo, Sartre
entrelaça esse gênero à sua filosofia do contingente, do existencial através do
astuto e cerebral Paul para quem não seria impossível transferir a célebre
frase de “Entre quatro paredes”: O inferno são os outros.
Como diz o
provérbio: no fim do jogo, peões e reis voltam para a mesma. O altivo Paul
esbarra na imprevisibilidade da vida e algo com o que ele não contava acontece.
No recente filme do vilão Coringa (2019) contém uma cena parecida. Perto da
cena mais dramática da trama, quando o vilão está no camarim do programa de
auditório e parece ensaiar um suicídio que na realidade não acontece,
estaríamos ali diante de uma cena sartreana que não prepara o sujeito para a
realidade dos fatos, para a contingência. É assim que depois pôr em prática seu
plano, Paul tem que readaptá-lo porque agora ele existe.
Paul parece
ter a mesma atração para a morte do também trágico Berdamu de Viagem ao fim da
noite. Ferdinand Berdamu subestima a guerra antes de se perder na solidão das
estradas escuras em busca de comida e abrigo, antes de se ferir e voltar a uma
cidade devastada e se desiludir com os homens, com o amor e consigo. Mas a
intenção de Sartre não é construir um painel de ruptura em que o sujeito e o
espaço se eliminam mutuamente, mas descrever as micro-histórias do cotidiano,
do desajuste social, daquele que não se sente parte do todo e percebe isso de alguma
maneira através da sua voz ou de um narrador tão íntimo que as contradições das
verdades humanas saltam sem muita pesquisa.
Resolvi comentar
aqui apenas o conto “Erostrato”, mas há também presentes no livro não só o
conto que dá título à obra, como a brilhante novela “Intimidade”, que não deixa
de marcar já no modo de narrar, no foco narrativo, uma tensão complexa que se
instaura desde as primeiras linhas. Na novela, penetramos – ou tentamos
penetrar – nos pensamentos e fantasias da jovem Lulu através do estilo indireto
livre (aquele que confunde a voz do narrador com a do personagem). No entanto,
Lulu não se contenta apenas em contar sobre sua vida sexual e cotidiana, seus
amores e decepções, ela quer sua voz narrativa também, daí instaura-se uma
tensão nítida na narrativa sartreana que, certamente influenciado pelas ideias
de sua companheira Simone de Beauvoir, mostra uma voz feminina presa para
tratar de assuntos íntimos.
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