Benito Pérez Galdós, o sublime observador
Por
Rafael Narbona
Benito Pérez
Galdós fez o possível para ser um homem destituído de biografia. Leopoldo Alas
chegou a duvidar que o escritor canário não tivera mais história que a de suas
criações. “Sim, as terá. Mas as tem sob sete chaves”. Eugenio d’Ors elogiou
essa discrição: “Nada sabemos sobre tu, Galdós misterioso. E na verdade nesse desconhecimento
nosso esconde-se tua mais perfeita obra de arte”. Tímido, discreto, afetuoso,
apaixonado pelas mulheres mas com medo de compromissos, amante das crianças e
dos animais, cortês, calmo e sem pretensiosismos, mas nem todos os que viveram
com ele o recordam como uma pessoa fácil: “embora bondosamente afável – comenta
Antonio Maura – era seco, frio, reservadíssimo”. Desde sua morte em Madri a 4
de janeiro de 1920 se escreveu uma infinidade de biografias. Até a presente
data, a mais completa e exaustiva é a de Pedro Ortíz-Armengol (Vida de
Galdós, 1955), cuja densidade narrativa evoca a atmosfera dos melhores “romances
espanhóis contemporâneos”. Seria injusto não mencionar o trabalho pioneiro de Joaquín
Casalduero (Vida e obra de Galdós, 1945) e a recente biografia de
Francisco Cánovas Sánchez (Benito Pérez Galdós. Vida, obra e compromisso,
2019)¹.
A prudência
de Galdós não o impediu ser beligerante em questões sociais e políticas. Em Ángel
Guerra (1891) denuncia a violência revolucionária, mas sempre apoiaria o reformismo
liberal, advogando por uma modernização da Espanha. A antipatia pela Igreja
Católica não se traduziu em hostilidade pela mensagem cristã. E, o ciclo dos “romances
espirituais” inclui personagens que beiram à santidade, como Benina, Nazarín e
Halma. Receoso ao casamento, Galdós exibiu uma diferente sensibilidade para
retratar a alma feminina. Marianela é um prodígio de delicadeza; Fortunata encarna
as grandes virtudes das classes populares, como a espontaneidade, a
sensibilidade e a dignidade; Benina absolve os pecados, um dom reservado aos
ungidos pela graça de Deus; Guillermina Pacheco é “uma rata de sacristia”, mas não
poupa esforços para ajudar aos menos favorecidos. María Zambrano destacou que
Galdós foi o primeiro escritor espanhol a introduzir as mulheres na
literatura “ontologicamente iguais ao homem”.
Benito Pérez
Galdós nasceu a 10 de maio de 1843 em Las Palmas de Gran Canaria. Era o mais
novo de dez filhos do casal Sebastián Pérez, tenente coronel da fortaleza de
San Francisco, e María de los Dolores Galdós. Benitín, como era chamado quando
criança, desfrutou dos cuidados de seus seis irmãos mais velhos, estabelecendo
um estreito vínculo com María del Carmen, à qual seria apelidada por ele como “a
sabedoria”. A casa da família, situada no bairro Triana, ficava muito próxima à
costa. Benitín cresceu numa família tradicional que tinha uma sólida posição econômica.
A condição de metrópole atlântica da cidade favorecia um espírito aberto às
ideias iluministas que circulavam pela Europa e América. Galdós foi um menino
dedicado e calmo. Armando Palacio Valdés o descreve como um menino “delicado e frágil”
que nunca se envolveu em intriga com ninguém. Asmático, passou muito tempo em
casa, contemplando a rua a partir da janela. Alguns viram um autorretrato seu
em Luisito Cadalso de Miau (1888). A relação com sua mãe é que nunca foi
cordial e tranquila. Se disse que a Sra. Perfecta, “mestra em mandar” e de “aspecto
bilioso”, poderia reunir algumas características de Dolores, uma mulher fria e
devota.
Durante o
bacharelato, Benito se destacou em leitura, desenho e humanidades. Apaixonou-se
logo dos clássicos lendo Cervantes, Alexandre Dumas e Charles Dickens. Com poucas
aulas, aprendeu a tocar piano e deu seus primeiros passos como desenhista com rascunhos
em carbono e pequenos quadros a óleo. Sério e tranquilo, manteve uma relação
muito cordial com seus colegas e professores, que o distinguiram com seu afeto.
Em 1861, publicou suas primeiras colaborações em jornal, textos em prosa e em
verso de estilo amaneirado. Nessas peças já estão as características essenciais
de sua literatura: agudo sentido da observação, inesgotável imaginação, engenho
e humor, aprofundamento psicológico, um estilo ágil, elegante e fluido, sem
ecos crepusculares do Romantismo tardio.
Em 9 de
setembro de 1862 mudou-se para Madri, onde se embebeu do espírito liberal,
humanista e fraterno que inspirou o Sexênio Revolucionário. Então, Madri era
uma cidade pequena com 300 mil habitantes. Existia várias Madris: a cortesã (Paseo
de la Castellana, bairro de Salamanca), a das classes médias (Bairro de los Austrias
e Argüelles) e a dos trabalhadores e imigrantes (Embajadores, Puerta de Toledo,
Arganzuela). Galdós se familiarizou com todos, deixando-nos retratos irreparáveis
de suas gentes. “A pátria desse artista de Madri – escreve Leopoldo Alas – existe
por adoção, por tendência de seu caráter estético, e até me parece... por
agradecimento”.
Galdós visita
frequentemente a biblioteca do Ateneo; é aí que lê e relê seu mestre Cervantes.
Vai a restaurantes, tabernas e cantinas populares, captando anedotas. Escuta o
homem da rua, o burguês autocomplacente, ou o funcionário com medo de ser
dispensado; presta atenção às giras e vícios de linguagem alemães, se compraz
ouvindo seus amigos de tertúlia do Café Universal, à Puerta del Sol. Matricula-se
na Universidad Central, onde cursa Direito. Entre seus professores está “o
divino Castelar”. Compatibiliza as aulas com visitas a teatros e museus. Assiste
às apresentações de ópera no Teatro Real. Sua mente em ebulição está forjando seu
universo literário. Embora alcance a glória como romancista, seu sonho é se
converter em dramaturgo.
Em 1865 se
incorpora à equipe de redação do jornal progressista La Nación. Nunca cobrará
um salário, mas o jornalismo lhe dará a conhecer e adestrará sua pena. Seus artigos
manifestam seu amor por Madri, seu sincero patriotismo e seu compromisso com a regeneração
espiritual e política da Espanha. Não esconde que simpatiza com o krausismo e a
Constituição de 1812. Pode-se dizer que é um digno herdeiro de Larra, pois
deplora a ignorância, o atraso e a incultura do povo espanhol. Descreve as
corridas de touros como um espetáculo “bárbaro e grotesco”. Conhece Clarín no
Ateneo que logo aprecia seu talento: “Não fala muito, prefere escutar. Poderia ser
o escritor que restaurasse o romance popular”.
A monarquia
de Isabel II titubeia. Sucedem-se os pronunciamentos militares. Galdós viaja
com seu sobrinho José a Paris, “uma cidade luminosa e hospitaleira”. O estopim da
Gloriosa o surpreende em Barcelona. Escreve a favor do projeto democrático do
general Prim, que defende uma sociedade laica e liberal. Combate com o mesmo
fervor os carlistas e os republicanos radicais que pretendem dividir a nação e dissolver
o exército. Quando seu irmão mais velho Domingo morre, sua viúva Magdalena se
muda para Madri com seus filhos. Acompanham-na Carmen e Concha, irmãs de
Galdós. Todos se instalam com Benito no número 8 da rua Serrano. Será o núcleo
estável do escritor, que o permitirá conduzir sua vocação literária com maior
confiança e tranquilidade.
Em 1871,
Magdalena financia a publicação de La fontana de oro, o primeiro romance
de Galdós. Centrao nos problemas das classes médias, a obra representa a superação
das teses românticas que exaltavam o heroico e o individual. Um ano mais tarde
o agora escritor conhece José María Pereda, carlista e clerical. A diferença de
opiniões não será obstáculo para uma amizade que só será interrompida com a morte.
Começa a gestar o projeto de Episodios Nacionales, quando
inesperadamente conhecerá o último sobrevivente da batalha de Trafalgar, “um velhinho
muito simpático” que havia sido grumete na Santísma Trinidad.
O fracasso
do Sexênio Revolucionário o leva a um profundo desalento. Durante a
Restauração, se identifica com o espírito da Institución Libre de Enseñanza. Também
se deixa influenciar pelo positivismo e o naturalismo. O êxito de Episodios
Nacionales o converte num autor famoso. Escreve um livro após outro. Às
vezes, escreve vinte páginas por dia. Não se descuida do romance. Depois de La
Fontana de Oro, aparecem Doña Perfecta, Glória, Marianela,
La familia de León Roch. São os chamados “romances de tese”, que segundo
Pereda “levam-no a se meter no charco do romance voltairiano”. Galdós desejaria
ter fé, mas seu ceticismo o proíbe. Mesmo assim, aprecia o “Sermão da montanha”
com sua exaltação da misericórdia e da fraternidade.
Apesar do
sucesso, sofre problemas econômicos. Na Espanha de então, nenhum livro passa
dos 3 mil exemplares, e, mesmo assim, Galdós não perde a oportunidade de ajudar
aos amigos em apuros. Mantém vários idílios. O mais lembrado, com Emilia Pardo
Bazán. Com Lorenza Cobián tem uma filha, María. Compra uma enorme casa em
Santander e aceita o título de deputado. Como parlamentar não se afasta do seu
hábito de ouvir ao invés de discursar. Em 1866, aparece a primeira parte de Fortunata
y Jacinta, obtendo grande êxito. A segunda parte será recebida pelos
leitores com o mesmo entusiasmo. Viaja pela Europa em companhia de seu amigo
José Alcalá Galiano.
Em 1897
ingressa na Real Academia com o discurso sobre “A sociedade presente como
matéria romanesca”, contestado por Marcelino Menéndez Pelayo. Galdós captou a
intra-história de seu país em Episodios Nacionales e demonstrou um fino
ouvido para reproduzir as distintas vozes da sociedade de seu tempo. María
Zambrano afirma que Misericordia é o melhor romance espanhol depois do Dom
Quixote. Azorín assegura que a obra de Galdós “revelou a Espanha para os espanhóis”.
Os últimos
anos do escritor, entretanto, são tristes. Recrudesce seu anticlericalismo e se
aproxima dos socialistas. A estreia de Electra em 1901 provoca uma
autêntica comoção. A obra é um ataque à influência das ordens religiosas na
vida política e social. Seu liberalismo lhe custa o Prêmio Nobel. Cego e maltrapilho,
sua morte mobiliza todo o povo de Madri, mas a presença institucional é
escassa.
Como trabalhava
Galdós? No inverno escrevia com uma manta sobre os ombros, boina azul e coberta
sobre as pernas. Sempre tinha ao alcance da mão um café forte e uma jarra de
leite muito quente. Enquanto trabalhava, não aceitava visitas inoportunas: “Não
estou para ninguém, nem Cristo Pai nem Deus Bendito”. Comia pouco e fumava
muito. Muitas vezes, acompanhavam-lhe os vários cães e gatos resgatados da rua.
Apenas lia seus contemporâneos.
Provavelmente,
o escritor teria gostado de ser recordado com as palavras do jovem Ortega
Munilla: “Estranha amálgama de neve e pólvora! Deus quis colocar juntas a
atividade e a calma. Seu olhar é uma lente fotográfica. Pérez Galdós é um
sublime filósofo observador”.
Nota do tradutor:
¹ A tradução é livre para os títulos das obras apresentadas ao longo desse texto.
* Este texto
é uma tradução de “Galdós, el sublime observador”, publicado aqui, no El
Cultural.
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