A paga dos roteiristas. William Faulkner e o cinema
Por
Mauricio Hammer
“Continuaram.
O último grão de neve se desfez e agora contemplavam uma cena que parecia saída
de um Dante einsensteniano.”
William
Faulkner, As palmeiras selvagens
“Temos por
exemplo algumas folhas; e embora Juliette não tenha muito em comum com a heroína
de Faulkner, nossas folhas podem se tornar tão dramáticas como essas palmeiras
selvagens.”
Jean-Luc
Godard, Duas ou três coisas que sei dela
William Faulkner, 1940. |
O
descobridor de escritores
“Em finais
dos anos vinte, Howard Hawks leu um romance que o impressionou profundamente. O
livro se chamava Paga de soldado e relatava a história de um tenente da
Real Força Aérea que, em consequência de um ferimento sofrido durante a
Primeira Guerra Mundial, padecia de uma cegueira degenerativa e era incapaz de
recordar seu passado. A maneira objetiva e enérgica como expressava a
ambiguidade da glória comoveu o diretor, que havia sido subtenente da força área
estadunidense. Já então, Hawks gozava de boa reputação como descobridor de
escritores talentosos e era bem recebido no salão novaiorquino de Bem Hetchs e
Charles MacArthur, autores de A primeira página. Numa tarde, perguntou a
eles se sabiam algo sobre o autor de Paga de soldado, ‘um sulista de
nome William Faulkner’, mas ninguém pareceu reconhecê-lo. Afirmou que era ‘um
dos escritores mais talentosos desta geração e que deviam lê-lo’. Seu conselho
foi seguido, mas os que foram à procura de Paga de soldado encontraram
um trabalho mais recente do próprio Faulkner: O som e a fúria. É assim
que Hawks o descobre. E muito provavelmente, sem esta espécie de ‘faro
literário’, um autor tão experimental (e tão recente) teria poucas possibilidades
de ser conhecido.”
Com essa
anedota Bruce F. Kawin começa Faulkner and film (Faulkner e o cinema, em
tradução livre). O episódio de que na aurora literária de Faulkner apareça – de
modo tão determinante – a figura de um cineasta parece para Kawin o primeiro
indício de que o fenômeno Faulkner-o-cinema é muito mais complexo do que
parece à primeira vista: se Faulkner é “o mais cinematográfico dos romancistas”
não é uma questão apenas de revisar seus trabalhos produzidos para o cinema,
mas de forma mais ampla, revisar as relações entre sua obra e a arte fílmica.
Com o que Kawin se preocupa não é enumerar as contribuições faulknerianas para
o cinema estadunidense; o que busca é “explorar a interação literatura e
cinema, tomando Faulkner como exemplo”.
É interessante
ver como, empenhado em preservar a integridade e especificidade próprias dos
dois meios de expressão, Kawin concede ao cinematográfico (e não a todos seus
expoentes) uma capacidade propositiva e uma autonomia pouco frequentes em
trabalhos de seu tempo nos quais se confrontam as duas disciplinas.
Transformação
por montagem
Segundo
Kawin, o conceito de montagem é de vital importância quando se pretende estudar
as relações entre cinema e literatura. “Seria inútil insistir na montagem como
recurso exclusivamente cinematográfico; trata-se melhor de um princípio
estrutural utilizado por escritores e cineastas ao longo desse século e
aproximadamente com os mesmos fins”. Não é, pois, que o autor esqueça a origem
primariamente cinematográfica do termo. O que tenta ao expandir sua significação
é precisamente mostrar de que maneira as inquietudes formais de uma arte tão
jovem como o cinema se assemelham com aquelas próprias das chamadas “artes
maiores” como a literária.
Para dar uma
ideia de como a montagem é manejada indistintamente por diretores e escritores,
Kawin compara um fragmento de Outubro, de Serguei Eisenstein, com um
poema de Ezra Pound “Numa estação de metrô”. No primeiro, a tomada do cavalo
(A) e a tomada do estandarte (B) se justapõem na mente do espectador formando
um conceito (C); no segundo, o primeiro verso descreve “rostos na multidão” (A)
e no seguinte fala sobre “pétalas num galho molhado, preto” (B) criando um
conceito que não expressa no poema. “É interessante que tanto Pound como Eisenstein
explicaram suas técnicas nos mesmos termos; referindo-se à estrutura do ideograma¹.
À Faulkner o
autor atribui a montagem uma importância mais decisiva na formação de seu muito
peculiar estilo. “Antes de viajar à Europa (1925-26), William Faulkner havia
sido um romancista exclusivamente derivativo. Paga de soldado e Mosquitoes
estão construídos muito convencionalmente apesar de todo o talento que revelam;
sua poesia é, no entanto, francamente enfadonha. Biógrafos e críticos do
escritor sempre procuraram a origem do ímpeto misterioso, da influência
determinante que permitiu a Faulkner, apenas no retorno aos Estados Unidos, se
tornar o grande escritor que foi. Apenas um ano depois do regresso, tomaram
forma as personagens de seu ciclo de Yoknapatawpha² e durante os dois anos
seguintes escreveu O som e a fúria e Enquanto agonizo. É possível
pensar que o que descobriu foi a montagem”.
A tradução
de Hollywood
O som e a
fúria é um romance dos mais complexos. As quatro narrativas que integram o
romance são contadas por diferentes personagens e apresentam diferenças muito visíveis
quanto ao estilo e à estrutura. Uma das partes é relatada em primeira pessoa
por um deficiente mental e nela se misturam indiscriminadamente a realidade e
as sensações puramente objetivas do narrador. Outras duas, também contadas em
primeira pessoa, narram os acontecimentos a partir de pontos de vista antagônicos
e a última parte representa a posição do autor. Na estruturação desse romance, diz
Kawin, “se valeu de ‘dissoluções’ ou ‘efeitos especiais’ (essas convenções obsoletas
tão ao gosto de Hollywood para separar o real do imaginário, um tempo de outro);
os fragmentos de realidade foram simplesmente justapostos e o que produzem é um
efeito totalmente cinemático”.
Reside aqui o
maior paradoxo do Faulkner fílmico. Um de seus romances mais dinâmicos, cujo
forma nos traz à mente de imediato filmes como Cidadão Kane, cujo manejo
da montagem cinemática se presta como poucos ao jogo de imagens, é reduzida na transposição
para o cinema ao mais linear e convencional das narrativas. Com o fim de
fazer-se “compreensível”, “clara”, elimina-se da obra toda essa prática
combinatória que o romancista havia conseguido desenvolver e que faziam do
romance uma obra notável.
O mais magnífico
– pensa Kawin – é que este fenômeno se dê quase sem exceção sempre que
Hollywood se proponha adaptar um romance ou conto de Faulkner e que toda vez
que suas obras são simplificadas o sentido delas é seriamente alterado e distorcido.
Sobre o filme Almas maculadas³, baseado no romance Pylon, afirma
Kawin: “A ideia do romance permite compará-lo com O grande Gatsby, de F.
Scott Fitzgerald. Em ambos, um observador privilegiado tem a oportunidade de
chegar a compreender a ‘grandeza’ de alguém que todos consideravam um bobo. A ideia
do filme, no entanto, é a de que os homens deveriam aceitar o amor de seus seres
queridos em vez de sacrificá-lo nas aras da glória. É como se n’O grande
Gatsby, o herói tivesse renunciado ao gangsterismo e ido morar com a linda
menina que amava de verdade”. Acessibilidade, moralismo, amenidade, tudo foi
utilizado como justificativa para deformar a obra de Faulkner.
Édipo
sabe tudo
Sobre a
adaptação que de The Hamlet se filmou com o título de The long, hot
summer (traduzido no Brasil como O mercador de almas),
diz o ensaísta: “Faulkner horroriza-se e se diverte ao mesmo tempo com a maneira
em que a velha ordem das coisas – a boa vontade, a solidariedade e um certo
conceito de moralismo – são substituídas pelo culto burguês ao dinheiro e ao status
social”. Ao invés disso, os Ravetch adaptados, “evidentemente sentem que as
coisas não estão tão mal e por isso se apressam a recompensar o herói da história
por sua habilidade e sua bondade-apesar-de-tudo. O resultado não é muito
diferente do que se você tivesse conseguido se propor adaptar Édipo Rei para
um capítulo de Papai sabe tudo”, conclui.
Uma vez mais
Hollywood depreciava seus espectadores, afastando dos seus olhos tudo que se
podia insinuar com alguma renovação. Aproveitava apenas o valor anedótico das
grandes obras, desejando logo o que se pode compreender como o bom êxito e a
uniformidade de seus produtos industriais.
Faulkner roteirista
Algo muito
parecido aconteceu quando Faulkner escreveu expressamente para o cinema; em
colaboração com algum diretor trabalhou na adaptação de suas próprias obras:
curiosamente os elementos mais cinematográficos de sua prosa desapareceram,
mas, se preservaram assombrosamente o caráter de suas narrativas e sua muito
particular visão das coisas. Faulkner escreveu um total de 48 roteiros, a
maioria dos quais são inteiramente criação sua. Desses, foram filmados apenas 18.
Apesar de em
sua maior parte se tratar de histórias sensíveis com personagens que desconhecem
a complexidade de, por exemplo, um Quentin, possuem todas elas uma clareza e um
humor notáveis. Foi com Hawks e com Renoir, pelos quais guardava “um profundo
respeito”, com quem o escritor conseguiu uma melhor comunicação e daí que seus
trabalhos em grupo sejam também os melhores.
Mas, Kawin não
perde a oportunidade de se perguntar o que teria acontecido se Faulkner tivesse
a ocasião de trabalhar com diretores mais audaciosos: “Em 1932, D. W. Griffith –
que construiu Intolerância à maneira de As palmeiras selvagens e Nascimento
de uma nação causara profunda marca no menino Faulkner – estava sem emprego
em Hollywood; Eisenstein acabava de concluir uma rodagem no México, estava
ansioso por novos projetos e a MGM mantinha alguns contatos de trabalho com Abel
Gance. Não é possível prever que tipo de roteiros teria escrito Faulkner para esses
homens, mas o que é possível afirmar é que aprendeu seu ofício de roteirista
com alguém que desconfiava do ‘corte rebuscado’ e pensava que o trabalho de um
diretor consistia principalmente em ‘contar boas histórias’. Aprendeu bem seu
ofício e se aplicou a ele com gana. Apensar de quase não empregar técnicas ‘cinematográficas’
em seus roteiros, sempre se abriu para tratar personagens e temas que mais lhe
importavam como romancista. Desta maneira, suas duas carreiras se mantiveram
ligadas ao longo de sua vida criativa e o mito de que escrevia para o cinema de
forma mercenária e ressentida merece ser apagado para sempre”.
A última
parte de Faulkner and film é dedicada a considerar as possíveis contribuições
da prosa faulkneriana para o desenvolvimento narrativo do cinema. “Penso que Faulkner
manteve viva a tradição da subjetividade radical, montagem e ‘metafisica do
tempo’ durante um momento em que o advento do som os havia relegado para
segundo plano e quando o estado financeiro do cinema não se prestava para a experimentação
visionária.”
Notas
¹ O
ideograma é um sistema de escrita antiga utilizado com frequência entre os
orientais. Consiste em representar um conceito através da justaposição de
imagens. Kawin explica que Pound se surpreendia com a maneira como os japoneses
expressavam a cor lilás mostrando quatro objetos que podiam formar essa cor mas
sem utilizar a tinta lilás e que Eisenstein se maravilhava como os chineses representavam
chorar simplesmente mostrando os signos de olho e água
interpostos.
² Yoknapatawpha.
Condado mítico onde se desenvolve muitos dos romances de Faulkner.
³ Sobre The
Tarnished Angels, Fassbinder disse: “É o único filme de Sirk em preto-e-branco
que pude ver. É o filme no qual teve mais liberdade. Um filme incrivelmente
pessimista. Baseia-se num romance de Faulkner que infelizmente não conheço.
Aparentemente Sirk o profanou, o que lhe cai muito bem”.
Ligações a esta post:
* Este texto é a tradução
de “La paga de los guionistas. Faulkner y el cine”, publicado aqui na revista Nexos.
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