São Petersburgo por alguns de seus escritores
Por Joaquim Serra
Com a
construção de São Petersburgo em 1703, a Rússia foi invadida culturalmente. O
projeto de Pedro, o Grande (1672 - 1725) visava a modernidade e isso tem a ver
com a formação do próprio tsar que viajou pela Europa e aprendeu a construir
barcos na Holanda. Quando voltou, foi a vez de suas investidas para modernizar
a Rússia. Agora os aristocratas e burocratas tinham um manual de como se portar
e vestir, e um plano de carreiras para os cargos militares e civis baseado no
mérito (assim como aconteceu com o apadrinhado de Pedro, Abram Petrovich
Gannibal, bisavô de Púchkin). Tolstói evidencia isso muito bem quando resolve
voltar à época da invasão napoleônica da Rússia e escreve Guerra e paz
(1865-69), já no início do romance híbrido de Tolstoi, é possível notar a
influência da língua e cultura francesas impregnadas na vida aristocrática
russa.
O projeto de
Pedro é tanto uma janela para a Europa como um espelho para si mesmo. Pedro, o
primeiro tsar com o nome traduzido para o ocidente e não transliterado, por mais
que tenha usado de muita tecnologia do ocidente, arquitetos europeus, e tenha
planejado a cidade que leva seu nome como uma nova Amsterdã, a cidade, foi
também, como diz Marshall Berman sobre sua construção, uma imposição de novos
costumes: “São Petersburgo é provavelmente o exemplo mais dramático, na
história mundial, de modernização draconiana concebida e imposta” (p. 217). A
cidade teve custos humanos absurdos e partiu de Pedro a imposição da nova
capital como o novo lar da aristocracia russa. Porém, a modernização imposta
por Pedro não necessariamente teve eco na política de outros tsares. Mesmo
Catarina II que, contemporânea do nosso Marquês de Pombal e, assim como o Conde
de Oeiras, também influenciada pelas ideias iluministas, mantendo assim correspondência
intensiva com vários dos iluministas franceses, rejeitou muito dos princípios
antes adotados depois da Revolução Francesa. Um poema de Púchkin sobre outros
tsar, “Nicolau I”, pode ilustrar a abertura e retrocesso que caracterizava a
Rússia (e caracterizaria até mesmo depois da Revolução de 1917). O poema,
“Nicolau I” (1826?), mostra que os hábitos repressivos dos tsares russos,
mesmo após a tentativa de modernização de Pedro, ainda prevaleciam. A quadra se
refere ao julgamento dos dezembristas: “Há pouco é tsar e opera/ Milagres com
afinco:/ Mandou já cento e vinte homens à Sibéria/ E, ao cadafalso, cinco.” (p.
238).
Outro
escritor, Isaac Bábel, lembra no conto de abertura de seu O exército de
Cavalaria sobre a preservação, agora já no século XIX, dos sacrifícios humanos
em nome do desenvolvimento da Rússia. Diz o narrador no conto “A travessia de
Zbrutch”: “[...] nosso comboio, uma barulhenta retaguarda, espalhou-se pela
estrada de pedra que vai de Brest a Varsóvia, construída sobre os ossos dos
camponeses por Nicolau I” (p. 21).
O
empreendimento de Pedro não deixa de ter seus traços fáusticos. De certa forma,
Petersburgo quer conjugar o “ideal cultural do autodesenvolvimento e o efetivo
movimento social na direção do desenvolvimento econômico” (p. 53). Mas, assim
como acontece com Fausto, esse empreendimento representa um alto custo humano
e, ao contrário do herói da tragédia de Goethe, o que existe é a imposição
dessa nova forma de vida moderna para os russos, e, dialeticamente, os costumes
antigos são mantidos como fonte econômica e manutenção do poder. Ironicamente,
no final da tragédia de Goethe, Fausto é enganado por Mefistófeles enquanto
pensa que este lhe cria a cidade do futuro.
O cavaleiro
de bronze (1833) tem como subtítulo “conto de Petersburgo” (Медный Всадник:
Петербургская повесть (Literalmente: O cavaleiro de cobre: conto de
Petersburgo), mas, aquilo que segue o título é estruturado em versos e esquema
de rimas separados por um prefácio, uma introdução e duas partes. Isso não é
novo na obra de Púchkin; Eugênio Onêguin (1825-32) já trazia como subtítulo “um romance em
versos” para retratar a vida do primeiro лишний человек. A mistura dos gêneros
literários na obra de Púchkin é uma marca do autor já que ele usava de gêneros
estrangeiros à literatura russa e os adaptava para o leitor russo, dessa forma,
modernizando a literatura russa.
A fúria da
natureza contra “a beleza uniforme” (p. 37) de São Petersburgo não é tema novo
para a épica clássica, mas, ao contrário de um poema épico, O cavaleiro de
bronze conta a vida de um pequeno funcionário – e não de um Odisseu – com
aspirações românticas que se vê tanto subjugado pela revolta da natureza quanto
pela fúria da estátua equina de Pedro, o Grande. Eugênio reflete sobre a cidade, cisma, e
através de seus pensamentos, a cidade é vista como uma janela para a Europa em
contraponto à velha Moscou. “E, ante a capital menina,/ Já a velha Moscovo se
apaga” (p. 37)
Com sonhos
humildes, Eugênio quer se casar com Paracha, mas vê a destruição de sua cidade:
“Uma fúria de Deus/ Não podem czares sujeitá-la” (p. 51). Não só a natureza,
mas também a cidade se volta contra ele através da estátua de Pedro que
funciona como uma metonímia das novas leis modernas da cidade. Não é à toa que
o herói sucumbe no final, e com ele as características do herói romântico, que,
naquele cronotopo não tinha mais seu lugar.
Como aponta
Volkov, “o tema da destruição da cidade não demorou a tornar-se dominante”,
enquanto “Púchkin atribuíra às ameaçadoras águas do Báltico uma força terrível”,
Dostoiévski “condenou São Petersburgo, ‘aquela cidade apodrecida, enlameada’ a
desaparecer junto com a névoa, tal qual fumaça” (p. 15). Não por acaso a pouca
ação de suas histórias, grosso modo, está nos becos e nos corredores. A certa
altura, diz o homem do subsolo: “Mas nem disso fui digno. Juro-vos, senhores,
que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica,
completa. Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente a consciência
humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos da porção que cabe a um homem
instruído do nosso infeliz século dezenove e que tenha, além disso, a
infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais abstrata e meditativa de
todo o globo terrestre” (p. 8).
A cidade
mais “abstrata e meditativa de todo globo terrestre” também é palco para outro
herói trágico em O adolescente (1875). Arkadi sente na pele a miséria de viver
na cidade construída por Pedro para pôr em prática seu plano de riqueza e
tornar-se um Rothschild. Através de Arkadi Dolgoruki (o sobrenome não é apenas
uma referência a Iuri Dolgoruki, que gera o deboche dos colegas de Arkadi na
obra, mas também significa “braços longos”) São Petersburgo parece ser a
oportunidade de acúmulo de capital e sucesso financeiro.
Outro que se
aproveita de um arquétipo do herói romântico como Eugênio para mostrar que ele
não faz mais sentido no novo mundo é Gógol em Avenida Niévski (1833). Gogól
personifica a Avenida Niévski e constrói um painel dos tipos que por lá passam
todos os dias. As personagens são transformadas em marionetes e, submetidas à
ironia gogoliana, desfilam pela Niévski com seus bigodes, roupas, sapatos e
modos exibicionistas. É na Avenida Niévski que um militar e um artista veem
duas moças, uma loira e uma morena, e resolvem segui-las. O primeiro tem traços
realistas, está adaptado ao novo mundo, já o segundo, assim como Eugênio,
idealiza sua Paracha.
Já em Sonhos
de Petersburgo em verso e prosa (1861), Dostoiévski faz um diálogo com Gógol e
Púchkin já no título. Verso e prosa se referem às grandes obras dos dois
autores, Puchkin escreveu seu romance em versos Eugênio Onêguin e Gógol seu
poema em prosa em Almas mortas. O deslocamento do gênero narrativo acompanha o
texto de Dostoiévski que muitas vezes parece confuso e ininteligível, como um
mosaico de formas narrativas que usa do diálogo com obras anteriores de outros
e até do próprio escritor, de modo profundamente carnavalizado.
Uma
importante contribuição para entender a que passo andava a modernidade na
Rússia – e as discussões que marcariam profundamente aquele período –, viria de
uma crítica contundente de Piotr Tchaadáiev. Amigo de Púchkin, Tchaadáiev opta
pelo gênero do iluminismo europeu da carta para estabelecer um diálogo crítico
com a cultura e os mandamentos da Rússia de então. “A primeira carta
filosófica” (1936) circulou primeiramente em manuscrito para depois ser
publicada e alcançar um público maior, dando início a uma longa discussão entre
ocidentalistas e eslavófilos. Na carta, o autor responde a uma “senhora” e
debate como a força do homem viria da sociedade e como sua liberdade autônoma
poderia ser prejudicial (ela seria permitida apenas ao homem que é líder, que
direciona as massas. Dostoiévski mostraria esse homem com ideais de
extraordinário quando cria Raskólnikov). Além disso, Tchadáaiev critica a
servidão e as raízes inexistentes do povo russo. O caminho, para ele, seria a
devoção do homem ao catolicismo.
Depois da
Revolução de 1917, a URSS seria movida pelo cientificismo e positivismo do
século XIX. Agora, não só a cidade, mas também o homem novo deveria vir à luz.
Quando São Petersburgo se tornou Leningrado, em 1924, a cidade “mais abstrata
do mundo” seria palco para os personagens em situações absurdas. Daniil Kharms,
poeta, dramaturgo e prosador, nasceu em Petersburgo em 1905 e é na cidade
projetada e opulenta que se contrapõem seus personagens pobres (como o
narrador-escritor em A velha (1939)), e os desaparecimentos e mortes
inexplicáveis no ciclo Incidências (случаи). O autor, classificado como absurdo
e mais tarde colocado no mesmo estilo de Kafka e Ionesco, muitas vezes opta por
suspender a realidade através do fantástico para falar dela. É dessa forma que
seus personagens, muitas vezes inominados, desaparecem na realidade fantástica
em que está inserido o sujeito russo do século XX. Enquanto a velha, na novela
homônima, morre e desaparece misteriosamente em uma mala, a moça com quem o
narrador tem simpatia, desaparece ao virar uma esquina, e Kolugin, no conto
“Sonho” (“Сон”), é dobrado e descartado como lixo depois de dormir por dias a
fio e ficar irreconhecível.
Em
contraponto ao fantástico de Kharms, Lídia Tchukhovskaia faz uso do realismo
soviético para retratar o absurdo do desaparecimento. É em Leningrado que a
protagonista sofre por não ter notícias do filho Kólia preso injustamente.
Curiosamente, Sófia Petróvna foi escrito no mesmo ano de A velha (período do
terror) mas é nítida a diferença estética, não só refletindo a falta de unidade
para retratar a realidade daquele período do terror, mas também aponta para a
ambiguidade que a cidade carrega desde a sua origem. Lá pelas tantas do
romance, Sófia sofre o estanhamento dos dois planos que conviviam naquele
período – e que sempre conviveram, vide a elite petersburguesa retratada em
Anna Kariênina e Os humilhados e ofendidos das obras de Dostoiévski –, quando
Sófia já está à procura do filho preso, enfrentando a burocracia e a espera das
filas, ela nota a sobreposição de “cidades” em Leningrado, diz o narrador sobre
Sófia: “[...] ela tinha a impressão de não estar em Leningrado, mas em uma
cidade desconhecida, estrangeira. Era estranho pensar que a trinta minutos de
caminhada ficava seu escritório” (p. 93).
De um lado
há a vida comum que Sófia tinha antes do acontecimento trágico, e de outro o
mundo subterrâneo das filas, números, guichês, esperas, que impossibilitavam os
familiares de tomar conhecimento sobre os presos. Lídia não deixa de conjugar
de forma realista as duas visões. E ainda traz o sentimento ambíguo que a
cidade ainda carregava desde a época de Púchkin. Porém, ao contrário de Púchkin
e Gógol, o peso do cotidiano parece se impor, e persegue seus habitantes nas
pequenas coisas do dia a dia, como na omissão de informação, falta de comida,
mas, ainda os persegue em sonhos. Sófia e os inominado de Kharms sofrem a
ambiguidade do pacto fáustico do novo mundo pós-revolucionário e,
simultaneamente, a manutenção do aparato burocrático, a herança do fogo-fátuo
nunca extinto e que se revela através dos campos de trabalho forçado, dos
desaparecimentos, do terror físico e psicológico a que o povo estava submetido.
O pacto agora é feito para alcançar o mítico homo sovieticus, um produto do
positivismo e cientificismo do século XIX que reaparecia com a roupagem do
comunismo.
Mas talvez o
maior exemplo de projeto literário em que uma cidade responderia às
expectativas de Pedro talvez seja a cidade retratada em Nós (1921). Zamiátin,
de certa maneira, continua o espírito da cidade mítica construída sobre a
racionalidade e tendo limites claros do outro – a natureza – através do Muro
Verde. Em Nós, toda essa utopia aparece nas anotações do narrador D-503 que,
aos poucos, descreve aquela sociedade com o intuito de mandar suas anotações
ufanistas para o espaço através da espaçonave Integral. Não há animais
quaisquer – o que é comum na ficção científica, de Abbot a Phillip Dick – e as
pessoas suprimem quaisquer sentimentos que venham a ter, sendo, dessa maneira,
tão mecanizadas e transparentes como a arquitetura que as rodeia.
As
residências são de vidro – feito a sociedade do futuro em O que fazer? (1862),
de Tchernichevski, mas, ao contrário deste, a realidade é o contraponto
anti-utópico da obra de Zamiátin que mostra um matemático ingênuo e alienado do
aparelho burocrático de um Estado perpétuo e totalitário.
Interessante
notar que o meme traz um cubo mágico que precisa de movimentos racionais e
soluções algorítmicas para a resolução. O projeto de Pedro também segue o mesmo
princípio. Seu método de modernização também se baseava em propostas de
comportamento, que deveriam ser cumpridas a ferro e fogo, para alcançar o passo
da modernidade. Porém, assim como aparece no meme, a Europa de Pedro, o Grande
não coube nos moldes russos e o que foi gerado passou longe de seus ideais,
mas perto dos artistas que pensavam sobre a sua época. Os recortes literários
que neste texto foram feitos, apesar de curtos, são apenas uma fração da
ambiguidade sentida pelos escritores em relação aos projetos de modernização
draconiana das cidades e dos homens russos. Os custos também foram artísticos
já que a censura nunca deixou de existir – Púchkin, Dostoiévski, Lídia
Tchukhovskaia, Kharms, todos os autores sofreram com ela. E, mesmo com a
modernização, pessoas continuavam sendo perseguidas, presas e mortas, o que
revela que o projeto de Pedro não incorporou a principal ideia do século das
luzes europeu para o projeto de uma nova capital russa, a liberdade.
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Maria. Sófia Petrovna e a memória proibida do cotidiano
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Vittorio. Urss-Russia. Milano: Rizzoli Editore, 1985.
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Solomon. São Petersburgo. Uma História Cultural. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Editora
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