O judaísmo de Franz Kafka
Por
Gustavo D. Perednik
Quando
abordamos a obra de um escritor universal com o intuito de reconhecer as
relações que sua arte mantém com o judaísmo, restam, geralmente, duas
alternativas. Ou revisamos sobre qual papel desempenham em sua obra a tradição e o
pensamento judaicos, ou nos fixamos em responder qual o comportamento de suas
personagens judaicas, de que maneira essas assumem sua identidade. Assim, a
opção é desvelar o tipo de cultura judaica presente na obra, ou examinar a
identidade judaica, o judaísmo das personagens. O primeiro interesse é mais
comum em autores como James Joyce, Jorge Luis Borges; o segundo, em William
Shakespeare ou Charles Dickens.
Se o autor é
judeu, em geral a análise tende a ser dupla. Mas, no caso de Franz Kafka (1883-1924), essa
dupla análise (de judaísmo e de judaico) pareceria impossível porque nem mesmo
a palavra judeu não figura em sua rica narrativa. O escritor nos confronta com
um dilema: apesar da ausência de personagens judias possíveis de serem
exploradas, temos ciência sobre a importância que seu próprio judaísmo teve em
sua vida e sabemos que sua biografia se entrelaça com sua obra.
A questão é
em que medida podemos ver em Kafka um artista judeu, caso parecido ao de
Baruch Spinoza: se é que é legítimo considerá-lo um filósofo judeu. Para Spinoza, os
argumentos a favor são que muitas de suas ideias se constituem da matriz do
pensamento e da experiência judaica; e suas ideias podem ser vistas como
contribuições ao desenvolvimento posterior do pensamento judaico. Os argumentos
contrários incluem sua má disposição para com o judaísmo e os judeus e a
ausência de todo interesse de ampliar o pensamento judaico (trataríamos de um
pensador judeu involuntário, contra sua vontade).
Em Kafka, os argumentos desfavoráveis são mais
limitados. Ele se assumia parte do povo judeu e essa pertença o atraía e o
interessava. Três intelectuais destacaram a consciência coletiva acerca do
judaísmo enquanto expressão central do mundo kafkiano. Graças a eles, o leitor
contemporâneo pode abordar as obras do escritor tcheco como as de um judeu.
Dois dos pensadores são israelitas e se inclinaram pelo judaísmo simbolizado ou
expressado na obra de Kafka; o terceiro foi tcheco e deu ênfase no interesse do
autor de A metamorfose por sua pertença ao povo judeu.
Não há
dúvida que Max Brod, o amigo íntimo de Kafka, seu editor, guru, herdeiro, foi o
pioneiro graças à fascinante biografia de 1937 e aos muitos artigos publicados
depois. Se não fosse ele, atualmente, dificilmente se encontraria um crítico capaz de
subestimar a presença da simbologia e das referências judaicas na literatura
kafkiana.
O segundo
foi o pai do estudo científico da Cabala, Gershom Scholem, quem ratificou a
presença do judaísmo em Franz Kafka a partir da perspectiva de revelar
influências cabalísticas. Que um acadêmico da envergadura de Scholem tenha
visto no autor de O processo uma expressão do misticismo judaico, não
permitiu, entretanto, logo eludir essa questão. Escreve: “Mesmo inconsciente,
os escritos de Kafka são uma representação secular da concepção cabalística do
mundo”. E: “Para entender a Cabala hoje, alguém deveria entender as obras de
Franz Kafka, muito especialmente O processo”.
Dois
princípios básicos da Cabala são a crença na unidade de tudo o que é e que o
conhecimento do mundo e de Deus têm uma aplicação prática. Essa sabedoria lhe
permite aos humanos guiarem-se: a pequena conduta dos pequenos humanos deve ser
contemplada desde a eternidade. As ações dos homens teriam consequências nos
mundos do além e cedo ou tarde provocariam suas reações a partir deste reino.
Se
aceitarmos a suposição de Scholem segundo a qual Kafka foi influenciado pelas
ideias da Cabala, poderíamos entender Josef K. n’O processo e o
agrimensor K. de O castelo como homens que sabem sobre a interrelação entre
o que há no mundo oculto e no revelado. Procuram com afinco pela intervenção
divina. Assim: as atitudes dos heróis kafkianos de alcançar o numen resultam
em fracasso. Perdem-se em círculos viciosos de um nível mais baixo. Não
conseguem acessar sua meta mais elevada. Mas, a visão kafkiana seria cabalística
no sentido em que nos apresenta a vida humana como um pêndulo entre absolvição
e condenação, entre a prisão e seu adiamento.
Além de Brod
e Scholem, a ênfase sobre um Kafka judeu foi uma descoberta do historiador
literário Eduard Goldstücker, o primeiro embaixador da Tchecoslováquia em
Israel, morto em Praga. Em 1951, ele foi condenado pelo regime
stalinista à prisão perpétua. Oito anos depois foi posto em liberdade e
aproveitou exitosamente de uma deixa sartriana para produzir uma fissura cultural
nos pilares do totalitarismo.
Jean-Paul
Sartre, durante o Congresso pela Paz, realizado em Moscou em 1962, expressou a
inesperada revelação de que o mundo comunista havia colocado um ponto final na
sua perseguição contra a criação kafkiana. Goldstücker se lançou
imediatamente a organizar a conferência de Liblice que em maio de 1963 colocou
ponto final ao tabu sobre a obra de Kafka no seu país natal.
Seu passo
seguinte foi preparar uma exposição sobre o escritor, primeira do gênero no mundo
inteiro. A mostra chegou a Berlim, Paris, Amsterdã, Nova York e Jerusalém revelando ao grande público os aspectos desconhecidos sobre a identidade judaica
do escritor. O antikafkianismo estava totalmente destruído: não apenas se
desfazia a censura sobre a literatura do escritor como se resgatava seu
judaísmo. (Cabe lembrar que Goldstücker dedicou seus últimos anos a promover
em Praga o estabelecimento da Praça Franz Kafka junto ao bairro judeu. O que
conseguiu em abril de 2000).
A partir de
Brod, Scholem e Goldstücker, os estudos kafkianos remetem sempre ao judaísmo
que tentaremos apresentar.
Judaísmo
em Franz Kafka
Franz Kafka
frequentou as aulas de Talmude do professor Harry Torczyner (Tur-Sinai) no
Hochschule de Berlim para Estudos Judaicos. Estudou hebraico, se identificava com
a literatura sionista que lia no Selbswehr e planejou mudar-se para Israel.
Suas principais amizades foram judeus, incluindo suas namoradas. Por dois
motivos a menção feminina é importante.
Primeiramente,
durante o congresso de 1963, havia se entrevisto que os conhecimentos sobre
Kafka se ampliariam quando se publicasse sua correspondência com Felice Bauer,
o que aconteceu três anos depois (Bauer não permitiu que o material se tornasse
público antes de sua morte). Quando o epistolário veio à luz, a linha
biografista de interpretação sobre Kafka foi estimulada ao se comprovar que
ela foi o motivo para as heroínas das principais obras do escritor (a senhorita Bürstner de O
processo, Frida de O castelo e Frida Brandenfeld de O veredito).
O segundo
motivo é que Kafka se expressa em termos sionistas justamente em suas cartas às
namoradas. Instiga Felice Bauer a realizar juntos uma viagem à Jerusalém e
escreve para Milena, logo na primeira carta que lhe envia: “Pelo menos você tem
uma pátria, possessão da qual nem todos podem se orgulhar”. Com Dora Diamant
pensou em se mudar para Israel e abrir um restaurante.
A família
próxima do escritor também acentua seu judaísmo. No começo, a tragédia da sina judaica
sobreveio às três irmãs do escritor (Elli, Valli, Ottla), assim como à Grete
Bloch (mãe de seu único filho que nunca conheceu) e Milena. Todas morreram no
Holocausto.
No momento
de escrever em seu diário seu nome judeu, Kafka se mostra orgulhoso da família
de sua mãe: “Em hebraico meu nome é Amschel, como o do avô materno de mamãe,
que era um senhor muito erudito e fiel”. O contraste entre as famílias de seus
pais foi algo determinante em sua vida: o avô paterno de Kafka era um rude
açougueiro; o materno era um delicado descendente de rabinos.
Cabe aqui
uma reflexão sobre o muito estudado papel do pai de Kafka em sua vida. Aos 36
anos, no auge de sua carreira, ele escreveu Carta ao pai, na qual fez
uma das mais claras enumerações sobre os atributos do machismo de seu pai. O
medo dessa personalidade foi uma das motivações mais exploradas.
A enumeração
que Kafka faz não é taxativa, mas as cinquenta características machistas que
ele considerou visíveis em seu pai são examinadas rigorosamente. Ao fazer um
retrato do “homem de verdade” que via em Hermann descreveu o que ele
tentava ser, o que confessava não poder ser porque detestava seu pai. Trabalho
duro, rispidez, vontade de conquista, força, gana, perseverança, magnanimidade,
ira, oposição ao inovador, governo do mundo desde sua cadeira etc. São
parágrafos de dor, nos quais o escritor assegura que nunca poderia se tornar
um homem de acordo com os desejos de seu pai e que por isso foi portador dos
atributos menos viris, os que dizia ser parte da estirpe de sua mãe (se
descreveu como um homem frágil, medroso, vacilante, inquieto, tímido, que agia em segredo, que talvez nem agisse, e que viva necessitado de carinho e
amabilidade).
Para efeito
deste texto, é relevante que em Carta ao pai Kafka faça sua conhecida
confissão de que desejara receber maior educação judaica. Acusava que o
judaísmo do seu pai fora mínimo, que durante sua infância só o havia levado
pouquíssimas vezes à sinagoga e que havia tratado com leviandade a ocasião de
seu Bar Mitzvá (confirmação judaica dos meninos à idade de treze anos). Em
síntese, Kafka alega que seu pai o “inculcava o ódio ao judaísmo”.
O primeiro
entusiasmo judeu de Kafka foi o teatro ídiche – se viu avidamente interessado por tudo que diz respeito a essa manifestação.
Entre 1910 e 1912, assistia às apresentações de uma companhia de teatro do
Leste no Café Savoy e em seus diários saltam o valor que atribuía a essas
obras. Chegou a se tornar amigo íntimo de um dos atores, Isaak Loewy. Dele
escutava histórias sobre a infância judia na Polônia. A ocasião quando Loewy recitou trabalhos de I. L.
Peretz, Abraham Goldfaden e David Pinsky, foi presidida por Kafka. Numa das
poucas superações de sua timidez, organizou uma apresentação ídiche na Sala de
Banquetes da comunidade judaica. Ali, única vez na sua vida, leu um discurso em
que comentou um poema de Simon Frug, “Zamd un Schtern” (Areia e estrelas). O
tema do chamado “poeta que chorou toda sua vida” era o sionismo. Uma amarga
referência à promessa bíblica, recorda que já “somos pisoteados como as areias,
mas quando haverá de se concretizar o prometido sobre as estrelas?”
O
judaísmo como símbolo
Ao estudar a
crítica kafkiana, notamos que o judaísmo se diluiu numa infinidade de
simbologias. Franz Kafka é vítima de seu sucesso: sua prosa é frequentemente lida
em busca de arquétipos preconcebidos. Entramos nela sabedores que a Rússia
representa a existência distância e solitária, escrever uma carta é um modo de
catarse e que a inserção social ou olhar através da janela é um recurso comum
para denotar isolamento.
Quem conhece
os símbolos mais recorrentes, tende a aplicá-los em modo de decodificação do
texto e às vezes se vê compelido a buscar, desde a primeira linha, “a mensagem”
característica e privada do autor, mais que com outros criadores. No final desta
exposição veremos o porquê. Como agravante, ao buscar mensagens em Kafka o
biografismo quase se impõe por si só e não podemos evitar reconhecer nas
situações de suas personagens as aflições pelas quais o escritor atravessava,
que ficaram nitidamente registradas em seus diários e no epistolário.
Por exemplo,
em A metamorfose é inseparável o tema do casamento em relação com o
indivíduo, a família e a sociedade. Em O veredito é o tema do compromisso
matrimonial assumido como traição à vocação literária; em O processo,
trata-se já de um ajuste de contas relacionado com a incapacidade de
cumprir os compromissos adquiridos e que, tal como uma lei não escrita, deve
pagar. Nos três casos a história termina com a morte do protagonista.
No primeiro
de seus três romances póstumos, América (1912), a figura paternal do tio
Jacob impõe ao protagonista Karl Rossmann submissão total, como a que sofre
Georg Bendemann em O veredito. As personagens principais deste e de O
castelo (1922) morrem antes de consumar seu casamento. E é logo tentador
ver em cada um deles o homem Franz Kafka.
Mas, além do
biografismo, Kafka foi lido literalmente, alegoricamente, politicamente,
psicologicamente. A metamorfose, sua primeira grande obra e que com exceção
foi publicada ainda em vida do autor, foi considerada por Gustav Janouch como
uma parábola religiosa. Bertolt Brecht leu-a como a obra do “único escritor
verdadeiramente bolchevique”; György Lukács, como produto típico de um burguês
decadente; Jorge Luis Borges, como uma reedição das parábolas de Zenão; Marthe
Robert, como o exemplo do melhor do idioma alemão; Vladimir Nabokov, como uma
alegoria da angústia adolescente.
Isto é, esse
contexto simbolista para o que Kafka significa é um convite permanente; é vasta
a exegese que descobriu motivos judaicos em boa parte de sua obra. Dissemos
que o pioneiro foi o escritor Max Brod, quem o conheceu em 1902 e pode
ulteriormente concretizar os planos de imigração para Israel que no caso de
Kafka foram malogrados pela tuberculose.
Brod
descobriu o valor do estilo misterioso, publicou postumamente os grandes
romances de Kafka e estabeleceu uma hermenêutica que compreende a narrativa
kafkiana como uma busca judaica que aspira a salvação divina. Foi na revista Arkadia,
de Brod, que apareceu originalmente o conto seminal de O veredito e com
ele a abordagem de Kafka como se fosse um filósofo ou um profeta. Desde então, muito se escreveu para decifrar “a filosofia kafkiana”, um universo que só
se reserva para a literatura sagrada. O leque interpretativo vai desde vê-lo
brodianamente como redentor até o outro extremo, o de fazer de Kafka porta-voz
do niilismo mais esmagador.
Os
seguidores de Brod veem o objeto da busca kafkiana (por exemplo em O castelo)
o amor divino ou a vida eterna. Em todo caso esta interpretação está
justificada foi (e é) motivo de intenso debate. Mas fala às claras sobre o
estilo Kafka que suas obras podem ser lidas deste modo, ainda quando pareçam
órfãs de toda fé, sobretudo de uma fé no sentido religioso transcendente.
Tão grande é
a tentação de filosofar inspirada por Kafka que ainda a simples oposição
geracional que está tão justificada em sua obra desde o biográfico, é elevada a
implicações cósmicas, entendendo o conflito pai-filho como a luta entre Deus e
a humanidade. Desde uma perspectiva mais existencial, Thorlby vê na figura
paterna, a relação pessoal do escritor para com o feito terrível e imperscrutável
de estar vivo.
Existiu, é
claro, outras alegorias. A nacional assinala que o destino do filho representa
em Kafka a República de Weimar, e o pai, a do Reich. Por sua vez, o enfoque
marxista (que como vimos chegou tardiamente a aceitar o valor de Kafka)
enfatizou a interrelação casa-trabalho e fixou a causa da onipresente alienação
de Kafka no sistema econômico prevalecente. Contudo, insistimos que a faceta
que mais interpretações tem suscitado é a da identidade judaica do escritor.
A alienação,
que a quintessência de sua obra, é vista como o resultado de ser o autor um
judeu em meio de alemães e tchecos numa época de ardoroso nacionalismo. Às
vezes, esse protagonismo do judaico é apresentado negativamente, com a clara hostilidade
pelo judeu. Vejamos dois exemplos. O livro Kafka para principiantes, de
David Zane Mairowitz, ridiculariza o que não entende e se aproveita do
interesse sionista de Kafka apenas para somar-se à frequente demonização do
sionismo.
Um segundo
exemplo é o do regime comunista instaurado na Tchecoslováquia em 1948, que
proibiu as obras de Kafka por ser produto do “nacionalismo judaico”. Mas, na
maioria dos casos, se viu no autor um reflexo positivo do homem-judeu e em seu
judaísmo uma fonte de inspiração.
Entre os
primeiros, Thomas Mann, sublinhava em sua introdução a O castelo que a
obra de Kafka expressa “a solidão e o desamparo do artista e, em primeiro
termo, do judeu...” Luis León Herrera diz que no escritor tcheco o homem
simboliza o judeu e a condição de desenraizamento de suas personagens segue o
arquétipo do judeu errante.
Entre os
segundos, os que buscaram em Kafka não o judeu e sua identidade mas expressões
do judaísmo, Walter Benjamin traça um paralelo entre a parábola chassídica e a
literatura de Kafka. Martin Buber fala sobre “paulinismo do não redimido” no
autor; Heinz Politzer identifica nele uma das fontes que enumera a crítica
bíblica. Maurice Blanchot usa as metáforas da tradição judaica para analisá-lo
“a partir da perspectiva de Abraão”. Bert Nagel sugere que o comandante de Na colônia penal, assim como os pais de Bendemann e Samsa, representam o Deus
bíblico.
Não
surpreende então que um dos mais importantes filósofos judeus da modernidade,
Franz Rosenzweig, tenha escrito em 1927 que “os que escreveram a Bíblia
pensaram em Deus de uma forma análoga à de Kafka. Nunca li um livro que recorde
tanto a Bíblia como O castelo. Por isso, a leitura nele está distante de
ser um prazer”.
Lembremos
aquele extraordinário aforismo de Franz Kafka: “O que nos cabe é consumar o
negativo; o positivo já está dado”. Harold Bloom o retoma para explicar que o
negativo kafkiano é seu judaísmo, a forma espiritual da autoconsciência judaica
em Kafka. O positivo é a Torá, a lei judaica; o negativo é o judaísmo do futuro
buscado por Kafka.
Entre tanto
interesse sobre o assunto, é notável a pouca atenção que se tem dado à
comparação da obra do escritor tcheco com a literatura hebraica que lhe é contemporânea.
Kafka foi reiteradamente contrastado com Hugo von Hofmannsthal, com Robert Musil, com
Thomas Mann, com Franz Werfel, com Fiódor Dostoiévksi, com Charles Dickens e
muitos outros. Mas foi também coetâneo de Yosef Haim Brenner, de Jaim Najman
Biálik, de Uri Nissan Gnessin, de Shmuel Yosef Agnon. Alguns deles são citados
por ele e todos eles foram seus irmãos espirituais na busca da salvação por
meio do judaísmo e do sionismo.
O problema
foi que a literatura hebraica esteve virtualmente desconhecida para os críticos
europeus. Até hoje em dia, muitos dos que desejam rastrear a obra de
Kafka uma linhagem de fontes judaicas se veem restritos pelo fato de que não
conseguirem ler as fontes no original em hebraico ou em ídiche e portanto devem
recorrer sempre às informações de segunda mão.
Os judeus
em Franz Kafka
O sentimento
de alienação, de ser sempre visto como um estranho e de saber que nossa vida é
objeto de forças que escapam ao nosso controle estão associados à sensibilidade
judaica de Franz Kafka.
Com
frequência se compara a situação singular de desamparo do herói de O castelo
com a luta do próprio autor ante seu problema de relação com os judeus e com o
judaísmo. Essa comparação se viu estimulada pelo fato de que o período quando
ele escreveu esse romance coincide com o do seu grande interesse pelo movimento
sionista. Recordamos que, para poder permanecer na aldeia que o conduz ao
castelo, K. deve contar com uma autorização até mesmo de um cachorro, o que por sua
vez, resulta impossível chegar até ele para consegui-la. Os habitantes do
povoado não o permitem permanecer entre eles mesmo que à parte K. termina
suspenso no ar.
A situação
dos judeus da Bohemia em finais do século XIX foi de tensa tolerância. As
situações de perseguição aos judeus em Praga, em 1899, que acabaram com muitas
lojas conduzidas por eles foram uma exceção, não uma regra.
O pai de
Kafka era proprietário de uma loja e conseguiu escapar dessa destruição porque
havia inscrito sua família como nacionalistas tchecos e não como judeus.
Hermann Kafka havia escapado de uma infância na pobreza numa aldeia. Assimilado
ao meio, deu aos filhos nomes alemães e olhava com desagrado os interesses
judaicos e literários do filho.
Os judeus
eram a metade da maioria germano-falante de Praga (menos de 10% da cidade) e
nesse aspecto eram ressentidos. Tratava-se de uma elite linguística com poder,
prestígio e riqueza, embora os judeus pertencessem dentro dessa minoria à classe
média e não à aristocracia. Devido ao crescente nacionalismo alemão, a elite
germânica do império austro-húngaro também desconfiava dos judeus, ao ver neles
uma vanguarda liberal.
Os judeus se viam entre a cruz e a espada:
ambos grupos (os tchecos e os alemães) sofriam de preconceitos sobre o judeu
invasivo, acumulador, materialista e fraco. Um insidioso estereotipo que
inclusive muitos judeus tinham, eles próprios, incorporado. Os germano-falantes
consideravam um peso os Ostjuden da Polônia, Rússia, Ucrânia, que continuavam fiéis
às suas tradições. Decidiram abandonar os modos judaicos de se vestir e o uso do
ídiche para deixar de ser considerados diferentes. Sua emancipação foi
completada em 1860.
Em nenhuma
outra cidade europeia se encontra, como em Praga, um entrelaçamento tão natural
entre o gueto e o restante da cidade. Os judeus haviam vivido séculos no gueto
de Praga, o Josefstadt, um dos mais importantes da Europa. Nos diários de Kafka
existem notas sobre as sinagogas, incluindo a de Maharal, e memórias sobre as
sombrias paisagens do gueto, com suas pousadas judias, seus postos e suas lojas
kosher, em que seu pai tinha um negócio de artigos para homens. Kafka ajudava
o pai a vender pelas estreitas ruelas do gueto, antes que Hermann se
transformasse num próspero comerciante e instalasse seu negócio no Kinsky Palais.
(Quinze anos depois da morte do escritor, com a invasão alemã em março de 1939,
começou o fim da quase milenar presença judia em Praga, onde Hitler havia
planejado fazer um monumento europeu à cultura exterminada).
Outro
aspecto, é que muitos críticos viram em Kafka um visionário do Holocausto que
se aproximava. Guillermo de la Torre explica que as obras desse escritor são “a
prefiguração do homem perseguido, preso numa maquinaria invencível de
proibições, perseguições, barreiras burocráticas. Kafka previu com lucidez arrepiante
os extremos a que findaria reduzida a condição humana”. Herrera prefigura o
Holocausto em obras como O processo e Na colônia penal. Gilles
Deleuze faz uma interessante relação entre romances como O processo e a
teoria da burocracia de Weber.
Mas a
religião judaica não é um dos estímulos de Kafka. Chega a sentenciar a partir
da sinagoga que “nada o aborrecia tanto, exceto as aulas de dança”. E mais: as
vezes em que a religião é mencionada diretamente em sua narrativa, trata-se do
cristianismo. A família de Samsa de A metamorfose é cristã, a empregada de
O veredito, os santos e persignações salpicam algumas das histórias. O
diálogo essencial de O processo, o capítulo nove, não se dá numa
sinagoga e sim numa catedral. É o padre quem explica a K. a célebre
parábola Diante da Lei e as páginas de reflexão sobre a justiça.
Por outro
lado, Kafka menciona com frequência em seus diários livros sobre temas judaicos
que lê com interesse e inclusive se detém em analisar aspectos judaicos em
romances. Por exemplo, na entrada de 14 de janeiro de 2011 atribui ao romance Eheleute
(Casados, 1910), de Martin Beradt, “desagradável excesso de judaísmo”. Quando fala sobre o romance Jüdinnen (As
judias), em 26 de março de 1911, reflete: “Nos romances europeus ocidentais,
apenas se pretende incluir algum grupo de judeus, se encontra sob ou na superfície
da narrativa, a solução do problema judaico... Neste não aparece a solução; nem
sequer a procura... é uma falha da narrativa se considerarmos que, nascido o
sionismo, as possibilidades de solução se ordem com clareza.”
Quando a
exegese sobre Kafka vê judaísmo em sua obra, não é a partir de seus detalhes mas
da obra como um todo. Max Brod assim diz: “Kafka foi, de todos os crentes, o
menos iludido; e dentre todos aqueles que veem o mundo sem ilusões, o crente
mais cético”. Assim, um judeu que não foi religioso é lido como um buscador da
redenção em termos religiosos. A cena final de O processo, com a morte
do acusado que não sabe sobre o quê o acusam, tem sido interpretada como uma
paráfrase do bíblico sacrifício de Isaac. Está na pedra onde K. é sacrificado e
está na visão do homem com os braços estendidos na janela iluminada. Mas, a
diferente do anjo do Gênesis, o homem da janela não traz salvação. O motivo do
sacrifício não é casual nesse romance. Kafka se deteve frente a este motivo e o
interpretou sarcasticamente em Abraão, uma miniatura que forma parte de um
ciclo de motivos bíblicos tais como A torre de Babel, O monte Sinai e A
construção do templo.
Kafka
descreve o bíblico Abraão como um patriarca primitivo “pobre de espírito” para
quem levar seu filho ao sacrifício não constituía motivo algum de conflito. Sem
se propor a isso, o escritor tcheco alcança aqui um dilema colocado pelo Talmude e a exegese judaica medieval: a pergunta sobre a conduta de Abraão: foi Abraão
ao sacrifício sem que tivesse sido pedido? Não se excedeu, talvez, quando quase
sacrifica o próprio filho? Abraão não terá entendido mal o pedido divino?
O principal
exegeta judeu, Rashi, cita em seu comentário sobre Gênesis 22:12 ao Rabino Aba:
Disse Deus, “Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto
agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único filho.” O
patriarca Abraão havia entendido mal. Foi devido à sua pressa (no texto
talmúdico) ou devido à sua mediocridade (em Kafka). Mas há coincidência; Kafka
chega à tradição hebraica talvez sem ter se proposto a tanto.
A
atenuação do judeu
Há várias
formas de atenuar a interpretação judaica iniciada por Max Brod. No princípio,
a alienação de Kafka não se nutre exclusivamente do judaísmo. É um
germano-falante numa cidade tcheca, um homem cheio de dúvidas e de uma ardente
sede de fé entre os livres-pensadores, um escritor nato e obsessivo entre gente
de interesses comerciais, um jovem enfermo entre os sãos, um amante tímido e
neurastênico entre relações que exigem o erótico. Inclusive as queixas de Kafka
pela insuficiente educação judaica que recebeu ou pela hipocrisia de seu pai em
matéria religiosa poderiam entender-se como uma reivindicação que um escritor
filosófico de tamanha sensibilidade teria seguramente sobre qualquer educação e
tradição religiosas. Além disso, Kafka expressamente reitera que se veja a si
próprio como um artista e nunca como um ideólogo, nem sequer implicitamente.
É
sintomático que, Jorge Luis Borges, conhecedor da cultura judaica, não destaque
nenhum membro dessa qualidade entre os seis que considera os precursores de
Kafka (seus seis são: um antigo heleno, Zenão de Cítio; um chinês medieval, Han
Yü, e quatro europeus – dois desse século XIX: Søren Kierkegaard e Robert
Browing; e dois do século XX: Léon Bloy e Lord Edward Dunsany).
Mesmo quando
aceitamos a literatura kafkiana como gênero filosófico, não devemos por isso
descrevê-la necessariamente como um gênero filosófico judeu.
Não é difícil
caracterizar os protagonistas de Kafka: vivem presos por códigos não
verbalizados dos quais, exceto eles, toda a gente está também presa mas
desinteressada. Os protagonistas são um reflexo do escritor. Jovens vacilantes,
solitários, ansiosos, aparentemente inocentes de todo pecado. Tratam de ser
muito moralistas mas se veem enredados pela incerteza e a falta de esperança
por culta das regras sociais que não compreendem. Poderíamos nos contentar com
entendê-los como uma expressão de tédio, de inquietação, de angústia do
escritor.
Ou podemos
dar um passo a mais e entender esses protagonistas como o indivíduo que luta
contra poderes ubíquos, inapreensíveis, anônimos, que apesar de determinar seus
passos, ao mesmo tempo se opõem a essa marcha. Uma pessoa que vai sendo envolta
numa atmosfera misteriosa de temível insegurança, devido a uma ilógica
sequência de eventos, que no entanto são muito simples. Sem muita dificuldade falamos de mensagens
filosóficas, judaicas ou cabalísticas na literatura de Kafka. É notável que essa
busca seduza tanto os leitores. De fato, segundo Harold Bloom, há algo no
escritor tcheco que nos obriga a lê-lo como se existisse uma espécie de
autoridade espiritual sobre nós. Sua obra constitui um inesgotável manancial de
símbolos para as diversas correntes literárias e político-filosóficas de nosso
tempo. Ernst Pawel, no fim de sua biografia sobre Kafka, O pesadelo da razão
(1984) observou que a literatura que trata sobre a obra do escritor e sua vida
havia produzido mais de mil títulos nos principais idiomas. Foi reconhecido com
o precursor do surrealismo, do existencialismo e da “filosofia da angústia”, de
Kierkegaard.
Kafka
escreveu num estilo filosófico desde muito cedo. A seguinte inscrição foi
anotada num livro de poemas de um colega de estudo em Praga, aos quinze anos de
idade: “Não existe chegada nem partida / não existe adeus nem reencontro.”
Embora o
autor de O castelo tenha insistido que “Não sou mais que literatura e
não posso nem quero ser outra coisa”, pode se supor que previu o excesso de
interpretações que gerou. Porque o que poderíamos chamar a filosofia kafkiana
está implícita na forma peculiar de sua arte e nas ideias que formula. Também o
judaísmo pode se encontrar no estilo de Kafka e não em suas citações.
Meno Spann
bem disse que às vezes os críticos de Kafka “não leem o texto cuidadosamente em
sua ânsia de filosofar sobre ele”. Lendo cuidadosamente, salta à vista um
contraste entre Kafka e a literatura tradicional: nesta, as aparentes
incongruências de conduta e as contingências confusas se esclarecem
ulteriormente num final que traz entendimento e ordem (às vezes num sentido
moral, mas quase sempre num sentido ideológico). A singularidade de Kafka é que
a parábola fica aberta ainda depois do final e por isso angustia.
Nos
conteúdos, o centro de sua obra é o homem angustiado, membro de um mundo
paradoxal e impenetrável, acionado automaticamente, semelhante um túnel obscuro
sem saída.
Em sua
forma, é uma afluência de cenas e situações percebidas com uma intensidade sem
precedentes; o detalhismo descritivo cobra uma expressão visionária. A chave da
obsessão hermenêutica kafkiana reside não apenas no tipo de narrativa,
críptica, mas na linguagem utilizada, ambígua por antonomásia.
Penetremos
no diálogo de O castelo. Um agrimensor, convidado a realizar trabalhos
profissionais num povoado localizado ao redor de um castelo, abandona sua
pátria, sua família e seu posto de trabalho para acudir ao chamado, mas a sua
chegada o povoado revela que sua presença não preenche nenhuma ausência o que o
leva à margem da comunidade. Empreende, assim, uma luta às cegas para ser
entrevistado pela administração, autora do chamado e que reside no castelo. Mas
o agrimensor K. fracassa também neste empenho porque está proibido de ingressar na inextrincável alienação do mundo que o cerca e, por conseguinte, não pode
aproveitar as oportunidades que este poderia lhe oferecer.
Max Brod nos
explica que Kafka sabia construir a luta espiritual do homem moderno que busca
por tentativas algo que está acima dele.
N’O
castelo, o guarda explica a K. que não precisa de nenhum agrimensor e que a
convite a ele foi um erro. Quando o agrimensor protesta, bom, escutemos a
explicação do prefeito:
“Se existem
autoridades de controle? Existem apenas autoridades de controle. Evidentemente
elas não se destinam a descobrir erros no sentido grosseiro da palavra, pois
não ocorrem erros, e mesmo que aconteça um, como no seu caso, quem tem o
direito de dizer de forma definitiva que é um erro?”
Essa lógica
é característica da literatura de Kafka: um duplo movimento ou triplo de
interpretação que se anula: 1. Os erros não existem; 2. A convocatória de K. é
um erro; 3. Quem pode dizer finalmente que se trata de um erro?
Apresentemos
os dois problemas que se mostram a partir dessa situação, dois problemas que
são representativos da singularidade do estilo kafkiano e que encerram uma boa
parte de seu mistério. Um é a contradição difusa; o outro, o metadiscurso.
O primeiro
problema é a justaposição de argumentos que são válidos em si mesmos; mas que
em conjunto excluem-se uns ante os outros. Podemos exemplificá-lo com a
conhecida piada: Joãozinho pede emprestada uma navalha a Pedrinho. Devolve-a
cega e argumenta em sua defesa: “Primeiro você nunca me emprestou nenhuma
navalha; segundo, a que você me emprestou estava cega desde o começo; terceiro,
a devolvi em perfeitas condições”. As conexões entre as partes são retóricas,
mas não são lógicas. É potencialmente uma interferência mútua entre lógica e
retórica o que se mostra nos escritos kafkianos. Uma das tarefas da
interpretação de Kafka é ler as conexões.
Não se trata
apenas do caso de o texto se prestar a múltiplas interpretações, mas que os
interstícios que deixa não permitem em nenhum caso uma única interpretação.
Sempre se insinuam novas mensagens ocultas. Sempre elásticas, versáteis e
multifacetadas.
Herman
Uyttersprot mostra que, estatisticamente, dentre os autores em alemão, Kafka
usa mais que nenhum a conjunção adversativa mas. Usa duas ou três vezes
mais que o resto dos autores. Horst Steimetz destaca que há em Kafka uma alta
frequência de conjunções, advérbios e preposições. Os textos estão nutridos por
mas, certamente, apesar de, além disso, talvez.
A causa é a
notável complexidade de um espírito que não pode simplesmente ver e sentir em
linha reta, mas que duvida e vacila, não por covardia ou por cuidado, mas pela
claridade de sua visão. Cada pensamento, cada percepção, cada asserção, vem em
Kafka acompanhada de um desafio que ele próprio murmura: mas... o inspetor
confunde. Passa do fatual (“pois não ocorrem erros”) à hipótese (“e mesmo que aconteça um, como no seu caso”) e daí à pergunta. (“quem tem o direito de dizer de forma definitiva que é um erro?”).
Mas aqui não
termina tudo: eventualmente, a autoridade do prefeito (que é quem define a
convocação a K. como um erro ou não erro) é deslegitimada pela senhora do albergue que opina: “O prefeito é uma pessoa
completamente sem importância.”. Este é o segundo
problema, o do status da interpretação; há um metadiscurso final que questiona
todo o discurso do prefeito. O discurso do prefeito acerca dos erros, não está
isento dos erros que denuncia, por que “é uma pessoa completamente sem importância”. Tampouco
o metadiscurso está isento de erros, visto que volta a circular a pergunta do
inspetor – “que é um erro”.
Também em O
processo: “— Mas, não
sou culpado — replicou K. — Trata-se de um engano. Como poderia ser culpado um
ser humano? Todos somos aqui homens, tanto uns como os outros.” E o sacerdote responde: “— É certo [...] mas precisamente assim é como costumam falar
os culpados.” E para culminar, depois
de enunciar a parábola e interpretá-la longamente, o religioso conclui, “Não
atribua demasiada importância às interpretações”.
Não é por
acaso que Stanley Corngold chame um de seus textos de “O desespero dos
comentaristas”. Cada fato conhecido aparece sob o brilhante véu da dúvida; e
por outro lado cada hipótese contém algo do rigor da certeza. E este método
está tipicamente presente no Talmud. O metadiscurso sobre quem é o que
interpreta a lei é judaico por excelência.
Um exemplo
do metadiscurso está no tratado de Sanhedrín 21a: “O rei poderá tomar para si
muitas mulheres para que não se desvie seu coração”. Disse o Rabino Iehuda:
Pode tomar mais, sempre que seu coração não se desvie. Disse o Rabino Shimón:
Das que possam desviá-lo do coração, não pode tomar nenhuma. Isso significa que
o Rabino Iehuda indaga qual é o fundamento dos versículos e o Rabino Shimón não?
Assim, o que
pode ajudar a ver Franz Kafka como um escritor judeu é, além de sua biografia,
de suas preocupações e do conteúdo de sua narrativa, o seu estilo. O mesmo
estilo inimitável que o aproxima da condição de um filósofo.
* Este texto é uma tradução de “La judeidad de Kafka” publicado na edição 16 da revista El Catoblepas (junho de 2003). Os desenhos que ilustram o texto são de Franz Kafka do arquivo do escritor patente na Biblioteca de Israel e revelados recentemente.
Comentários