O farol, de Robert Eggers
Por Pedro
Fernandes
O farol
é um filme que nasceu sagrado. Não é apenas a retomada meio nostálgica das
primeiras produções cinematográficas o que justifica a sentença. É o
desenvolvimento de uma narrativa construída por um processo quase
palimpséstico. Mais que uma celebração à sétima arte, o trabalho de Robert
Eggers é uma construção feita por dupla sedimentação: do próprio enredo e da
narrativa feita do remonte de uma variedade ampla, quase inalcançável de
referências caras ao imaginário cultural ocidental. E o melhor: se conceituamos
a nova era das narrações como pós-moderna pelo trabalho procedimental dessa
natureza, não deixaremos de estar diante de uma produção simultaneamente clássica
e contemporânea.
Rodado
integralmente em película 35mm, com câmeras que eram usadas na primeira metade
do século XX, em preto-e-branco, a dorsal do enredo é o mito de Prometeu. Essa
referência captada por qualquer espectador logo quando se descobre o profundo
interesse de Ephraim Winslow ou Thomas Howard por ter acesso ao centro irradiador
de luz no farol onde vai trabalhar como ajudante nas tarefas de manutenção do
lugar se mantém em várias passagens da narrativa; em nome desse desejo, essa
constatação se vislumbra no terrível embate que se estabelece entre esse jovem
e Thomas Wake, o faroleiro que guarda o acesso à luz do farol – isso se mostra,
por vezes, em sequências de imagem fixas que recuperam xilogravuras do que seria
a relação entre Zeus e o titã, além do terrível fim que se mostra uma simbiose dos
dois modelos de imagem: a fixidez da fotografia e o movimento do cinema.
Mas, nem o
mito é respeitado em sua integridade, visto que, quaisquer das menções interartes
recuperadas por este filme não são puramente recomposições do referenciado, nem
os sentidos produzidos por esta retomada condizem com a narrativa original. Embora
isto seja uma obviedade, a riqueza das interseções interartes reside nas
ampliações que a releitura deve, sempre, permitir aos leitores. Assim é que o
imbróglio Prometeu / Zeus amplia-se n’O farol como um embate psicológico
que nos leva a duvidar do que é verdade ou imaginação do jovem pretendente a
faroleiro; quer dizer, se a princípio guardamos certeza sobre o que se conta –
a chegada de um novo ajudante com as tarefas de manutenção de um farol num
recôndito inóspito do oceano e todas as implicações de convívio possíveis entre
duas naturezas individuais – logo deixamos de saber se mesmo esse episódio
fundador da ação no filme é verdadeiro.
Essas duas
personagens são contaminadas pelos motivos individuais, os segredos e medos que
carregam; e a complexidade de forças que exercem entre si conduz tudo para a
loucura, a danação, a usura e a morte. O caso prometeico é, por vezes, relido
como um drama psicológico agravado pelo tema da posse e da ambição. Como
dissemos, é Wake quem protege criteriosamente o acesso do jovem Winslow /
Howard ao farol e é isso que leva o jovem a aguçar, cada dia um pouco mais, o desejo
de aceder esse posto. Nessa mesma linha de leitura, pela maneira como o embate
psicológico se irradia pelo corpo, seja na total submissão do jovem ao álcool recusado
até às vésperas de seu possível retorno para casa, nos enfretamentos físicos
que os levam à ruína total, nos ímpetos das secreções do sexo de um de outro,
tudo igualmente coaduna para o tema da sexualidade interdita.
Mas, nem
isso, nem a sugestão do embate parricida formam o sentido motriz da narrativa
de O farol. O impasse pode muito bem ser tomado como entre o consciente
e o inconsciente de uma ou outra personagem também permite a leitura das
relações de poder exercidas entre o senhor e o servo. Dois instantes corroboram,
além do contínuo medir de forças exercido por ambas as personagens: os
reiterados episódios de submissão do novo funcionário e o desfazimento disso no
tratamento masoquista em que o servo trata o seu senhor como um cachorro a ele
submisso.
Voltemos ao tom
psicológico sugerido pela narrativa. Esse movimento é muito bem forjado porque
envolve as duas personagens, suas relações com o lugar e a natureza, e, por sua
vez, o espectador, tomado pela igual sensação de isolamento propiciada pela
atmosfera fílmica – a expressão aqui envolve o tempo retratado e o modelo de organização
da peça cinematográfica, isto é, tema e forma. As possibilidades criativas com
o preto-e-branco são outras e nas mãos de Robert Eggers se oferecem
principalmente pelo diálogo e pela construção das imagens; nesse filme, as
pedras, o mar, o vento e as gaivotas, para citar os elementos mais recorrentes,
são trabalhados de maneira a constituir todo impacto visual possível, os
sentidos para o assustador, o suspense, a fúria, o medo, a loucura.
É quando se
nota as várias referências empregadas pelo diretor derivadas produções de
terror dos anos 1920. Daí, são visíveis, à primeira vista, as retomadas,
sobretudo da filmografia alemã, como Nosferatu, de Friedrich Murnau, patente
desde a atuação magistral de Willem Dafoe, sempre em crescendo ao longo
da narrativa fílmica, ao jogo de luz e sombra que, por vezes, assume o impasse
entre o exterior e o interior da personagem, ou O gabinete do Doutor
Caligari, de Robert Wiene, nas construções do espaço interior e nas
deformações expressivas das personagens. E, não tão longe assim, uma vez que
podemos descrever o filme de Eggers como do tipo terror psicológico, é
notável alguma coisa de Persona, de Ingmar Bergman, se sublinharmos o
isolamento, a contínua revelação de si por Winslow / Howard enquanto Wake é quase
todo-silêncio – mesmo seu nome só é possivelmente revelado num ponto limite da
narrativa – ou ainda como o jovem vivido por Robert Pattison percebe que seu
ser começa a submergir no do faroleiro ao ponto de se-nos confundir como uma só
pessoa.
As referências
não findam entre as artes plásticas e o cinema. Nem o mito. Base da verdade
original do mundo, desse repositório, é flagrante, por extensão, o diálogo que
a narrativa de O farol mantém com a literatura. Os mais evidentes,
captadas à primeira vista, são: pelo imbróglio narrativo, uma leitura cinematografada
de A outra volta do parafuso, de Henry James; pela metáfora do mar, do
monstruoso e do drama psicológico, Moby Dick; pelo supersticioso e o
terror psicológico, O corvo; pelas figurações da sereia, do desafio do
homem aos deuses e seus embates daí decorrentes e mesmo o trânsito da viagem, a
Odisseia; ou, se tomarmos o plano visual, a atmosfera de H. P. Lovecraft.
Ou mesmo, se atentarmos para o impasse entre o mundo físico e o onírico, o
imperativo entre o humano e inumano, bem como as forças misteriosas que desafiam
a existência das personagens de O farol – sobretudo a Winslow / Howard –
A metamorfose, de Franz Kafka. Nesse mesmo sentido, mas observando os
poderes de Wake como se um feitiço – maldição lançado sobre o seu servo, está
aí uma releitura de A tempestade, de William Shakespeare.
Desde a
posição prometeica, é flagrante que Winslow / Howard desempenha a condição do
herói desafiador, qual o Ulisses de Homero; o homem que sabedor do retorno de
Tróia a Ítaca decide por sua própria conta perfazer outro itinerário e é, por
isso, continuamente envolvido no adiamento do retorno pela necessidade de subverter
um mando divino. O jovem aprendiz de faroleiro (e seus espectadores) são
continuamente afetados pela sensação de remar contra a maré, visto que o faroleiro
se utiliza de todas as estratégias possíveis no retardamento da realização do
grande desejo do seu aprendiz. A viagem de muitos anos em alto-mar também é
refeita na viagem parada desenvolvida por estas duas personagens de O farol
tendo em vista que navegantes ou não, toda travessia implica numa transformação
moral e psíquica dos envolvidos.
Sobre a
presença de Lovecraft não deixaremos de reparar, ainda absortos pelo universo
de criaturas fantásticas da Odisseia – pelo recorrente episódio do canto
das sereias, esses seres capazes de arrastar para o fundo do mar o mais
experiente dos navegantes – não apenas a atmosfera, como pontuamos acima, mas a
emblemática cena situada no interstício do real e do imaginado, de luta entre
Winslow / Howard e o animalesco como mistura de gigante e polvo que é a
explícita revisitação do monstro de O chamado de Cthulhu. Se para o escritor
estadunidense a visão dessa criatura, a mais terrível das visões, vislumbra o
contato do homem com o insano, sua colocação no universo forjado por Eggers à
medida que melhor justifica o embate psíquico do homem e seus próprios
fantasmas se amplia pela significação com um mal coletivo, genesíaco e
princípio fundador de todos os impulsos para além da ordem do mundo. Isto é, O
farol permite-se, assim, à leitura de objeto metafórico ou simbólico sobre
o homem contemporâneo e o embate com suas forças mais ressabidas.
Há no velho
faroleiro Thomas Wake essa expressão do ressabido, que afeta profundamente os
instintos de Winslow / Howard; mas há também muito do capitão Ahab, pela aparência
física, pelo exímio contador de histórias e pela relação que desenvolve com o
seu subordinado, entrevisto aqui como o antagonista da personagem de Herman
Melville, o audaz e experiente marinheiro Starbuck; aquele, por sua vez guarda como
obsessão o farol e este não se destaca por sua religiosidade, ambos, no
entanto, estão em permanente confronto na viagem que realizam em terra firme. Edgar
Allan Poe é recuperado pela narrativa no tratamento figurativo da gaivota. A
ave, que no imaginário supersticioso de Wake encarna a alma de marinheiros
mortos em alto-mar, é recorrente ao longo da narrativa: transformada em
elemento da atmosfera sobrenatural formadora da narrativa fílmica, a gaivota
desempenha o mesmo papel que o corvo no célebre poema do escritor
estadunidense, é um marcador temporal e rítmico da narração; ora se constitui a
gênese do ponto obsessivo de Winslow /
Howard, ora o prenúncio do destino trágico dessa personagem, ora ainda é elemento
que desafia sua condição racional.
O farol
é uma peça inesgotável. Se formos lê-lo com atenção das várias releituras, reparando
aspectos dos mais sutis, não deixaremos de ampliar ao infinito a lista dos
objetos culturais que participação na formação dessa obra. Produto exclusivo da
imaginação criativa, é um desses artefatos da atual civilização que nos coloca,
homem e comunidade, em interrogação sobre nós mesmos. Tudo isso forma o teor de
uma obra clássica. Por isso mesmo, um filme que nasceu clássico.
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