Johnny vai à guerra, de Dalton Trumbo


Por Pedro Fernandes


Dalton Trumbo. Foto: John Swope



A obra de Dalton Trumbo como roteirista, considerando os trabalhos que sabemos seus, é uma das mais vastas entre os criadores para o cinema. Perseguido e amplamente censurado pelos Estados Unidos no âmbito dos cinzentos anos de Joseph McCarthy, soube-se que muitos outros textos assinados por terceiros vieram da sua invejável imaginação criativa. Em literatura, se considerarmos os impedimentos estatais e a grandiosa produção como roteirista, Trumbo foi autor de uma obra também significativa; entre as criações nesse campo estão romances, peças e ensaios. Na primeira forma, se mostrou sempre interessado em pelo menos duas frentes: captar seu remoto e pacato passado em Montrose, onde nasceu, ou Grand Junction, onde viveu dos três anos até sua entrada para a Universidade do Colorado, na adolescência. 

Deixou uma peça, The Biggest Thief in Town (1949), um livro de ensaios, The Time Out of the Toad (1972) e de textos de safra variada, Night of the Aurochs (1979). Sua estreia em literatura, no entanto, se deu com livro Eclispe (1935); depois vieram, dessa lavra dos romances, obras como Washington Jitters (1936) e The Remarkable Andrew (1940). No primeiro, o escritor recupera a cidade fictícia Shale City, molde, segundo uns, de Grand Juction; a edição mais recente deste romance, publicada em 2005, chegou a reunir um levantamento à guisa documental  sobre nomes e situações decorrentes do lugar e recuperados pela ficção. Verdadeiros ou não, toda a obra ficcional é um tanto dilapidada com tentativas do tipo. Essa é uma discussão ampla e não cabe agora. A menção sobre Shale City se deve ao fato de o protagonista de Johnny Got His Gun, livro que é o terceiro na tábua das criações literárias de Trumbo, é também descendente desse lugar e certamente algumas das situações descritas nesse romance guardam semelhanças com outras vindas de Eclipse ou não.

O livro de 1939 está entre os trabalhos que se destacam na complexa e instigante carreira artística de Trumbo. Com ele, recebeu o National Book Award no mesmo ano de publicação e quase quatro décadas depois uma versão para o cinema pelas próprias mãos do autor. Johnny Got His Gun ocupa desde sua origem o lugar principal entre os mais contundentes libelos contra a guerra; e foi essa condição de pacifista que marcou sua redescoberta entre a geração da Guerra no Vietnã. Num país continuamente assombrado pela iminência de um conflito, base actancial do poderio imperialista, dos interesses escusos do sistema que o mantém e da contínua reinvenção dos discursos em nome da liberdade e da democracia dos povos, esse livro nunca deixou de ser atual e necessário. 

Fora da zona imperialista, trata-se de uma obra de variado valor: pode ser um mero registro acerca dos efeitos da guerra sobre aqueles que nada fizeram para merecê-la; pode ser tomada como um alerta sobre o mal da guerra tratado a partir de um lugar de fala original e, portanto, autêntico; pode ser uma reflexão potente sobre o papel dos excessos ideológicos sobre as vidas que se deixam levar cegamente por valores tratados enquanto verdades absolutas pelos que estão no poder; e pode ainda ser uma fábula vigorosa sobre o poder de viver frente à destruição e a morte, esta última sempre designada pelo discurso dominante como um valor inalienável pela ordem e os valores humanos. Seja qual for a leitura capaz de suscitar, a verdade é que ninguém sai o mesmo depois de percorrer essa longa e indeterminada travessia pelos meandros de uma consciência presa numa condição sobre a qual não existiu liberdade de escolha. 

A primeira tradução do romance no Brasil, publicada nos anos 1960 pela Civilização Brasileira, é de Elza Viany e traz um título mais próximo do original — Uma arma para Johnny. Em 2017, saiu pela Biblioteca Azul, pelas mãos de José Geraldo Couto, como Johnny vai à guerra. Cada tradutor pode justificar as razões sobre suas escolhas que consideram não apenas os aspectos linguísticos como a maneira como leram a obra traduzida. Desconhecidas quais foram as razões dos dois, pela ordem das preferências, cuja raiz está na maneira de ler, parece que o título escolhido por Viany encontra melhor aceitação e respaldo. O que se conta no romance de Dalton Trumbo não é a estadia da personagem no front e mesmo a memória sobre esse tempo está é completamente soterrada entre o drama de se compreender e fazer-se compreender ou nas reminiscências de memórias sempre trazidas com certa saudade e nostalgia.. Quer dizer, sabemos por essa consciência que sua condição é decorrente da guerra, mas não temos notícias propriamente do confronto, uma sutileza do romance que deixa de ser respeitada quando lemos Johnny vai à guerra — ao menos se fizermos um leitura direta do termo guerra.

E, por que Uma arma para Johnny diz melhor do romance? Se pouco ou nada sabemos da ida de Johnny para a guerra, muito passamos a saber sobre o que dela resultou em Johnny. Seu instante de sobrevivência se constitui por um esforço de dimensões inapreensíveis para se reaprender e reabitar o mundo; se a todo tempo essa personagem busca reencontrar seu passado, seu lugar natal e as pessoas de sua convivência no período anterior ao front, o que prevalece aqui é a busca de  uma maneira outra de percepção das condições que nos define enquanto ser vivo. Ou seja, é a todo tempo a revisitação da existência sobre a morte ou a descoberta de uma arma, não no sentido bélico do termo, mas no sentido de mecanismo de subsistência, de luta. É ainda o contínuo trabalho de desenvolver-se estrategicamente a fim de alcançar alguma posição confortável nesse útero artificial para onde foi recolhido. É bem verdade que o termo guerra que traz consigo o entendimento de luta ou batalha, possa designar esse outro front para onde foi retirado o soldado, e nisso pode ser que encontremos a saída segunda a qual as duas escolhas são felizes. Mas, a primeira alternativa parece dizer melhor esse sentido figurado que se desdobra da tradução de Couto. A condição de Johnny não é um conflito, não é um combate, não é uma peleja, mas uma busca por uma alternativa de se compreender sobre o que é existir no interior de toda a impossibilidade. 




A escolha da nova tradução, entretanto, está longe de afetar os sentidos originais (se é que estes existem) da obra. Pelo contrário, amplia-se suas variáveis de leitura, o que, no literário é sempre uma alternativa interessante. Uma das razões universais para os objetos artísticos, sabemos, repousa na pluralidade de sentidos. Todo o trabalho de Trumbo em Johnny vai à guerra conspira para, além da revelação desta arma outra que o jovem soldado precisa construir por sua conta, encontrar uma maneira de dizer sobre. O que temos é apenas a parte de uma consciência que se descobre habitante de um corpo quase inerte, privado quase totalmente dos seus sentidos primordiais — a visão, o olfato, o paladar e a audição. Pelo tato, só possível de experimentar as sensações propiciadas por outrem, já que não pode agir com pernas e braços. Essas limitações oferecem-se como desafio para a própria existência da narrativa, afinal, como ter acesso à consciência dessa personagem? Tal acesso só é permitido por um truque narrativo herdado pelo romancista do romance de fluxo de consciência e da sua experiência como roteirista.

O fluxo de consciência permite a descontinuidade do narrado (de uma consciência abalada pelo peso das descobertas que paulatinamente se nos revelam sempre com algum exaspero). E o distanciamento imposto pelo registro cinematográfico permite que observemos o funcionamento do armamento desse indivíduo. A oscilação entre uma voz deslocada que se comporta como imperativa sobre a voz, digamos assim, original da narração formam os dois planos narrativos que se interseccionam. Apesar de sempre se descrever que este é um romance de fluxo de consciência, é preferível compreender que o seu escritor exercita-se em duas linhas: na primeira, como se um diretor oferecesse as coordenadas de ação para um ator — é uma voz que, deslocada, estabelece contato com uma voz pessoal da personagem, esta que é a segunda linha, como se um ator já estivesse plenamente tomado pelas coordenadas oferecidas pelo seu diretor. Entre essas duas linhas, intrinsecamente presas na constituição do epicentro narrativa, podemos destacar uma terceira, que assume a posição de refletir, questionar, analisar e propor inquietações para a entidade narratária. Designaríamos, assim, este livro como um romance-roteiro.

O procedimento adotado na terceira linha de organização do romance permite o registro crítico sobre o imperativo do Estado capaz de sacrificar seus indivíduos em nome de interesses de uns. Essa condição de iminente revolta, à medida que prova uma profunda identificação com o drama evidenciado pela narrativo permite explorá-lo como se uma lição necessária à correção da história e dos sentidos produzidos pelo discurso dominante segundo o qual em toda guerra estão os princípios de glória e honra da força de uma nação que, no caso estadunidense, sempre se oferece como uma atitude de princípio salvacionista de um povo oprimido. Não é apenas o ideal universal de heroísmo, por exemplo, o que é colocado por terra; é também o fácil discurso do sacrifício em nome da honra, da força da nação e da liberdade universal. Isso se demonstra ao longo do romance pelos episódios que envolvem trabalho e capital e nos permite construir nossa própria desilusão com o ideal de coletividade forjado pelos aparelhos do Estado. Por entre o sonho, a alucinação e a perda contínua de si, essa descoberta é ainda a descoberta da personagem principal desse romance. 

As conclusões alcançadas em Johnny vai à guerra podem ser lidas, algumas, como radicais, mas o alerta que elas produzem em nós permitem algo raro e vigoroso apenas nas grandes criações, uma revisão sobre o nós e o entorno: enquanto ser biológico — como reagimos sobre nossas funções vitais; do ser social — a maneira como nos relacionamos com os outros, os vários sentidos da amizade e do amor, as pequenas sensações que constituem a plenitude de estar vivo quase sempre ignoradas quando todas nossas funções vitais trabalham bem; do ser econômico — a insalubridade do humano numa sociedade cujo estamento está no lucro e nas ambições de um poder que se diz zelar pela coletividade e não o faz; do ser político — nosso dilema no interior de um sistema que abriga um rol crimes praticados ardilosa e continuamente no seu interior mas silenciados ou distorcidos frente ao horror massivo dos sistemas ditatoriais. 

Entram aqui questões como os valores da ciência, da religião e os caros valores sempre recuperados enquanto pilares da ideologia e do discurso que sustém sua ordem. Encontraríamos a arma — isto é, uma alternativa capaz de viver fora desses estamentos apresentados como vitais, teríamos força de desmantelar toda a baboseira que nos obrigam a consumir em nome de um sistema que tem sacrificado continuamente o esforço das gentes comuns? O que pode existir de futuro para um resto de corpo que teima em viver depois de padecer todas as piores agruras? A contínua guerra pela vida é a mais imprescindível e elementar de todas as batalhas — e sobre essa quase ninguém repara. 


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