Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach
Por Pedro
Belo Clara
Trazemos
hoje à discussão uma das mais belas fábulas dos tempos modernos, que
curiosamente nasceu pela mão de um antigo piloto da Força Aérea Norte-Americana.
Inicialmente
publicada numa série de pequenos contos na revista Flying (editada desde 1927),
durante a década de sessenta, encontrou pouco tempo depois uma editora disposta
a apostar na sua publicação, o que se daria em 1970. Com menos de dez mil
palavras no manuscrito original, apenas dois anos após a sua edição, e com um
historial considerável de rejeições a assombrar-lhe o destino, a obra atinge o
seu primeiro milhão de unidades vendidas. No ano seguinte é adaptada aos
preceitos da sétima arte, com banda sonora a cargo do famigerado Neil Diamond –
que ganharia um Grammy graças a esse trabalho.
Uma história
de sucesso, portanto, e devidamente justificado, com uma popularidade atestada
pelos mais de quarenta milhões de exemplares já vendidos em todo o mundo, não
obstante as habituais vozes críticas que sempre se fazem ouvir. O toque, porém,
que esta inspiradora obra imprimiu em cada leitor que a ela se abriu nunca
poderá ser negado.
Inicialmente
dividida em três partes, a narrativa convida-nos a mergulhar no universo duma
obstinada gaivota. Importa referir que no original o nome da simpática ave é
Jonathan Livingston Seagull, uma escolha que segundo alguns é uma singela
homenagem ao piloto de corridas aéreas John H. Livingston, muito popular nos
anos vinte e trinta.
Então,
conforme escrevíamos, Fernão, a gaivota rebelde, revela-se desde cedo
imensamente dissonante, em termos de natureza íntima, dos seus semelhantes. Uma
vez que depressa desperta para realidades que outros nem sequer suspeitam, sem
grande estranheza cresce a tomar lentamente consciência do seu verdadeiro
potencial como gaivota. E, com a coragem de poucos, esforça-se dedicadamente por
desenvolvê-lo.
Não lhe
importa, portanto, apenas aprender a voar para ser auto-suficiente, mas sim
pelo simples prazer de voar, elevando assim a prática ao patamar de arte. Aquilo
que é um gesto inato à condição de gaivota Fernão transcende-o, e torna uma
técnica outrora banal a toda a espécie num novo modo de viver, mais livre e
prazeroso. Mas será a sua descoberta bem recebida no grupo onde nasceu?
“Como vale a
pena agora viver! Em vez de andar de um lado para o outro à procura de cabeças
de peixe junto dos barcos, temos uma razão para viver! Podemos sair da
ignorância, podemos ser criaturas perfeitas, inteligentes e hábeis. Podemos ser
livres! Podemos aprender a voar! ”
Curioso como
Fernão refere a possibilidade de aprender a voar quando, na verdade, todas as
gaivotas do bando já o sabiam fazer. Mas é uma das primeiras mensagens ocultas
que o autor nos lega, pois assim como na realidade humana existe a ilusão de
que para viver basta estar vivo, o que Bach aponta, em essência, é que a
maioria, ainda em total ignorância para a verdade de si mesmo e para o seu
verdadeiro potencial, simplesmente sobrevive ao invés de viver, tal como estas
simpáticas gaivotas apenas voam para buscar alimento sem qualquer curiosidade
em aprofundar a sua técnica e, assim, conquistar novas alturas, ganhar nos céus
maiores velocidades. Em suma, sem tirar um gosto absoluto e completo do dom que
lhes é inato.
No entanto,
como facilmente se depreenderá, Fernão pagará caro a sua “ofensa”. Banido do
grupo mas sem intenções de abrandar a sua exploração interior, Fernão
continuará a descobrir novas camadas no seu voo até se cruzar, numa noite calma,
com duas gaivotas “puras como a luz das estrelas”. Será o mote para a abertura
da segunda parte da obra.
Estas duas
gaivotas guiam-no para um lugar entre as estrelas, um lugar que o próprio
Fernão intui ser o “Paraíso”. Aqui, as alegorias que toda a obra apresenta
adquirem uma nova profundidade.
Chega,
portanto, a um lugar mais elevado que o anterior, onde todas as gaivotas são
suas irmãs no modo de entender e sentir o voo. As mesmas já abandonaram os
habituais gritos e guinchos da espécie, e comunicam todas por telepatia – mesmo
que na maior parte do tempo estejam imersas num silêncio que cintila em auras
sagradas.
Pelo retrato
que o autor vai tecendo, um leitor mais habituado a literaturas filosóficas e a
temas de origem oriental poderá suspeitar como a chegada de Fernão a este lugar
traduz uma espécie de iluminação do seu próprio ser, um Nirvana que o próprio,
por se ter revelado pronto, atinge. Ou melhor: uma iluminação que acontece, na
medida em que se livrou dos obstáculos criados pela sua falsa identidade, isto
é, a de uma mera gaivota que voa para conseguir o seu sustento, e assim a luz
da sua verdade mais autêntica pode brilhar sem qualquer mancha. Veja-se o
seguinte excerto, uma fala de uma gaivota que louva a rapidez com que Fernão se
libertou dos grilhões mundanos, onde se depreende o conceito de reencarnação:
“(…) tu és um
pássaro num milhão. A maior parte de nós percorremos um longo caminho. (…)
Fazes alguma ideia de quantas vidas teremos de viver antes de compreendermos
que há coisas mais importantes do que comer, lutar ou disputar o poder no
Bando? Mil vidas, Fernão, dez mil vidas! E, depois, mais cem vidas até
começarmos a aprender que a perfeição existe, e outras cem para constatar que o
nosso objectivo na vida é conseguir a perfeição e pô-la em prática. ”
Eventualmente,
Fernão acaba por perceber que não se encontra no paraíso, mas sim num lugar
onde prolifera uma sociedade evoluída e transcendental. Em conversa com a mais
sábia das gaivotas que aí vivem, Chiang, que só pelo nome aviva logo a memória
dos grande sábios orientais de outrora, este esclarece que “o paraíso não é um
lugar, nem um tempo; o paraíso é ser-se perfeito.” Isto é, uma qualidade de
ser, e não algo que se possa alcançar. As tendências místicas da obra voltam a
acentuar-se.
Desengane-se,
porém, que a vida nesse lugar é feita de contemplações à beira-mar. Fernão
continua empenhado em experimentar voos mais ambiciosos, em executar aquilo que
muito poucas gaivotas conseguiram realizar. O segredo para tal é-lhe dado pelo sábio
que já conhecemos, ele que a este ponto já assumiu claramente um papel de
mestre e Fernão o de discípulo: “deves começar por tomar consciência de que já
chegaste. ”
O novo
estilo de voo é praticamente um voo quântico, e assim o dizemos por ser na prática
semelhante ao comportamento dos electrões em torno de um átomo, que hoje
sabemos não orbitarem em torno deste mas manifestam-se, aparecendo e
desaparecendo, ora comportando-se como partícula ora como onda. Resumindo: não se
trata de um voo rectilíneo ou irregular a grande velocidade, mas um que
acontece “saltando” de um lugar para o outro. Uma gaivota esclarecida,
portanto, sabe-se no topo de uma rocha; depois, vê-se no cimo do farol da
praia, por exemplo, e ainda que esteja fisicamente no mesmo lugar sabe que ao
novo já chegou. Então, sabendo-o em si, terá efectivamente chegado. Eis o “voo
velocidade-pensamento”.
Mas Fernão
ainda terá de aprender algo mais para executar na perfeição a técnica
recém-descoberta:
O trunfo
consistia em tomar consciência de que a sua verdadeira natureza vivia, tão
perfeita como um número por escrever, em todo o lado e ao mesmo tempo através
do espaço e do tempo.
Esta é,
então, a verdadeira natureza de Fernão e de todas as gaivotas, de todas as
formas até, pois tudo é uma só coisa manifestando-se de modos distintos. Quando
Fernão compreende o divino de si, o novo estilo de voo é alcançado.
As últimas
palavras que o mestre Chiang lhe deixa aconselham perseverança no
desenvolvimento do amor, pois de nada valerá toda a conquista se a compaixão e
o amor não residirem no seu coração. Por ter vivido além do conhecido, por ter
visto o invisível, Fernão compreende que o mais lógico passo a tomar de seguida
é o de se tornar um guia para todas as gaivotas sedentas de liberdade, tal como
um dia ele o fora.
Quando um
indivíduo se torna uma luz pura, não tem como evitar a partilha do seu brilho.
Assim, no tempo certo, Fernão decide regressar para junto do bando que anos
atrás o baniu. E então encontra Francisco Coutinho Gaivota, um jovem com
obstinações bastante peculiares.
A terceira e
última parte do livro inicia-se com Fernão a dar os seus primeiros passos, ou
melhor, os primeiros golpes de asa como instrutor de voo. Rapidamente granjeia
novos estudantes, todos eles proscritos do bando. Quando os sente preparados,
decide que todos deverão regressar ao lugar de origem. Naturalmente, um caos
irá desencadear-se, pois a Lei do Bando proibia que uma gaivota banida pudesse
regressar ao seu seio. Far-se-ão ouvir os ferozes julgamentos de Mais Velho, a
gaivota anciã, totalmente imerso nas matrizes de um pensamento obsoleto, mas a
casca da ignorância generalizada havia-se quebrado e, lentamente, o número de aprendizes
de Fernão vai aumentando.
Já perto do
desenlace vai-se assistindo ao colar, nesta realidade, de certos aspectos da
mais famosa história de toda a cristandade. Um discípulo de Fernão sofre um
acidente e julga morrer, mas apenas desperta, afinal, para um nível de
consciência mais elevado. Quase como um Cristo a ressuscitar Lázaro, é na
verdade o momento da narrativa onde mais fortemente permanece a sensação de ver
plasmado em Fernão, por esta altura já chamado de “Filho da Grande Gaivota”, a
figura principal do Catolicismo. Embora muito do que se vai passando resulte do
histerismo da mais profunda ignorância, e assim prova como olhares embaciados
não conseguem ver a verdade diante de si, como o pássaro habituado à gaiola
foge do convite da liberdade suprema, Fernão assume contornos de um legítimo Jesus
Cristo das gaivotas.
Fala-se em
religião, mas não se julgue o livro um apologista de coisas tais, pois em
diversos momentos se compreende, mesmo que indirectamente, a rejeição de
dogmas, louvores ritualísticos e toda e qualquer premissa que fira a liberdade
individual. Estamos, afinal, a falar de aves, e liberdade deverá ser, sem
qualquer dúvida, a palavra mais natural e óbvia na sua existência. Contudo,
certas influências aparentam ser inegáveis.
Considerando
os contrastes que são dados a conhecer, a nova e a velha via de existir, uma das
principais mensagens que sobressai é a capacidade (e a necessidade) de perdoar
quem vive e age em ignorância. Mesmo sendo capazes dos actos mais vis, de ser a
mão que só espalha sementes de ódio, tudo é feito numa base ilusória, pois na
verdade o sofrimento que espalham é, acima de tudo, o seu próprio. Vem
naturalmente à memória algo como “perdoa-lhes, Pai, pois não sabem o que
fazem”, não é verdade?
Fernão
insiste neste ponto: há que “amar o Bando o suficiente para regressar e
ajudá-lo a aprender”, um preceito que evoca a mensagem de alguns contos
orientais de considerável ancestralidade. É, no fundo, à mais humilde prova de
compaixão, ao mais cintilante gesto de amor que Fernão aponta, mesmo que a
intenção não se afigure fácil de concretizar: “É preciso persistir até ver a
verdadeira gaivota, aquilo que há de bom em cada uma delas, e ajudá-las a ver
isso também. ”
Quando sabe
cumprida a sua tarefa, Fernão lega no seu discípulo mais próximo a
responsabilidade de guiar quem o procurar rumo a liberdade de ser. E assim, em
fulgurosas cintilações, desaparece em pleno céu – não sem antes deixar o seu
aviso mais prudente: “Não deixes que eles espalhem boatos a meu respeito, nem
que façam de mim um deus, está bem, Francisco? Eu sou uma gaivota. Gosto de
voar, talvez…”.
Importa
agora acrescentar que inicialmente este livro teria uma quarta parte. O próprio
autor chegou a rabiscá-la nos finais da década de sessenta, mas acabou por
excluí-la da prova final. Contudo, em agosto de 2012, já com setenta e seis
anos de idade, Richard Bach sofre um aparatoso acidente de aviação que o coloca
em coma e às portas da morte. Consegue recuperar do susto no devido tempo, mas
tendo vivenciado algo bastante peculiar nesse período decide retomar o capítulo
perdido e realizar uma nova edição do livro, o que de facto acontece em 2014.
No ano
seguinte chega a Portugal a versão devidamente traduzida, e então constata-se
que esse acrescento posiciona a narrativa várias centenas de anos após os
relatos anteriores, um tempo onde Fernão é reverenciado como um ser divino, a
luz de todas as gaivotas perdidas na escuridão da existência. São-lhe prestadas
várias homenagens e estranhos rituais (precisamente o que nunca havia desejado
que acontecesse), mas o principal da sua mensagem perdeu-se: voar pelo simples
prazer de voar. Até surgir uma jovem gaivota dotada de muito peculiares
obstinações…
Diga-se que
também aqui são notórias as semelhanças com outro qualquer homem místico que a História
conheceu, seja o já referido Jesus de Nazaré ou Siddhartha Gautama, o Buda – homens
que acima de tudo, naquele tempo, primaram pela originalidade da sua mensagem e
exemplo, profundamente compassivo e sem qualquer interesse em instaurar cultos
institucionais. Muito do cariz místico que a obra poderá exibir tem nestas
semelhanças a sua fonte, que de tão vincadas não aparentam ser meros frutos do
acaso.
Filosófico,
espiritual, esotérico, místico, auto-ajuda… Vamos abster-nos de escolher o
melhor adjectivo para qualificar a obra, agora que um vislumbre da mesma já foi
concedido; e façamo-lo a bem da pureza da leitura inicial, que mais clara será
quanto menor for o grau de condicionamento do seu leitor.
Altamente
alegórica, a obra encerra diversas metáforas perfeitamente capazes de servir a
existência humana. A delicadeza com que é formada e a sensibilidade poética que
transparece apenas contribuem para o engrandecimento da história e da sua mensagem
em particular, provando-se que das mais simples coisas pode aflorar o mais
sábio e profundo dos ensinamentos.
Sob um ponto
de vista muito específico, poder-se-á decifrar um alerta bem sonoro que visa o
despertar da consciência humana no que toca à sua auto-descoberta, à captação
dos dons inatos e à potencialização das características mais genuínas. Em suma,
sermos nós mesmos, sem qualquer filtro ou máscara, nus e crus diante do mundo,
perseverando no desenvolvimento da nossa paixão mais íntima com paciência de
artífice.
A narrativa
ensina-nos que tudo o que é possível de pensar pode ser vivido. Com isto sugere-se
o quebrar de todas as barreiras existentes por si só ou auto-impostas, a
conquista da liberdade interior e um firme apelo ao não-conformismo, induzindo
que somente assim nos revelaremos em real essência, sem qualquer amarra que nos
restrinja, vivendo a vida que sempre desejámos viver em nosso íntimo.
De facto,
sem limites ou barreiras, o Homem revela ser algo mais, algo que somente em
ideia pensaria ser. Mas se o seu potencial é descoberto e abraçado, nada o
conseguirá deter. E tamanha conquista não é exclusiva de alguns eleitos, antes
de todos os Homens (ou, no caso, gaivotas) – é uma escolha, não obstante todo o
árduo caminho a ser trilhado.
Aquela gaivota
que “vê mais longe” porque “voa mais alto” constrói um legado, compreendido na
transmissão da sua visão. Será a sua responsabilidade, a dívida que deve saldar
ao seu bando. Fernão compreendeu-o e executou-o. São seres assim que acrescentam
algo de verdadeiramente relevante ao mundo, auxiliando ao seu despertar para
realidades mais puras e, por isso, elevadas.
Esse estado
de ser representa acima de tudo uma brecha na banalidade, e é o corte por onde
irromperá a natural evolução de todas as coisas: gestos, comportamentos, ideias,
o Homem e o Mundo. Tais visionários poderão ser ostracizados pelo seu tempo, e
o nosso herói sentiu-o nas penas, mas é graças ao Fernão Capelo Gaivota que
habita em cada um de nós que agora mesmo, se assim o desejarmos, poderemos dar
o primeiro passo para realizar aquilo para o qual verdadeiramente nascemos. Ou
como dizia Píndaro (e Nietzsche não contrariou): tornarmo-nos em quem somos. E
com essa transformação interna estaremos a transmutar cada pilar do universo
que nos rodeia.
“(…) vocês
têm de compreender que uma gaivota é uma ideia ilimitada de liberdade, uma
imagem da Grande Gaivota, e todo o vosso corpo, desde a ponta de uma asa até à
ponta da outra, não é mais do que o vosso próprio pensamento. ”
Comentários
Embora com quase dois anos de atraso, não quero deixar de agradecer as vossas leituras e respectivos comentários. Apraz-me saber que apreciaram a matéria trazida à discussão.
Abraços para ambos.
Até breve.