Essa gente, de Chico Buarque



Por Pedro Fernandes



Os termos utilizados por Chico Buarque para intitular seu romance parecem tomados de um popular no interior da renovação dos embates de classe no Brasil de entre meados para o fim da segunda década do século XXI. Dos ricos, muito se ouviu / ouve ante a presença dos menos abastadas em territórios só (ou recorrentemente) designados a eles, sentenças que se introduziam / introduzem pela expressão: essa gente precisa aprender o caminho para onde nunca deviam ter saído; essa gente não quer trabalhar mas viver às custas dos que realmente trabalham para manter esse país; essa gente é mesmo mal-educada; etc.

Do outro lado, como terrivelmente tem sido nos usos do vocabulário de opressão no atual contexto, os termos foram reintegrados como a resposta possível contra o discurso não de um todo hegemônico das elites: essa gente precisa aprender que nosso lugar é qualquer lugar; essa gente é um bando de aproveitadores das benesses sem fundos de um Estado protetor dos ricos; essa gente não respeita ao pobre e quer pedir dele modos; etc. Nessa mesma linha, a variante essa gentinha, num tratamento de maior valor de rebaixamento, e, portanto, ainda mais pejorativo, se oferece pelos dois lados.

Tudo isso serve para dizer que Essa gente, o romance de Chico Buarque, é produto de um embate de narrativas que tem produzido, para bem e para mal, certas fissuras fundamentais nos modelos ainda em vigência. E, se por um lado o leitor encontra aí o duelo de classes, por outro, a expressão é validada por outro sentido: é um designativo que permite destacar entre as gentes, a gente do Brasil. É por isso, um daqueles livros que constitui o extenso caleidoscópio proposto pela literatura acerca do tema povo brasileiro e sua condição, entre os quais, figuram nas mais recentes criações obras como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Outros cantos, de Maria Valéria Rezende, para citar alguns dos contemporâneos. Mas, poderíamos ampliar essa linha com obras mais antigas como Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, O cortiço, de Aluísio Azevedo ou Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

Não é o tom do rebaixamento, mas de uma cortante ironia que chega a tripudiar meticulosamente dos sentidos nacionalistas. Isso porque trata-se de um romance, na esteira da linha criativa com a qual dialoga, que nos coloca ante nossa própria imagem, a que continuamente exercemos e na mesma proporção negamos com outra expressão igualmente recorrente – isso é coisa de brasileiro. Uma máxima comum, aliás, para referirmos a nós pelo distanciamento impessoal, como se fôssemos um outro, o que de fora observa a degeneração alheia e não guarda por / sobre ela qualquer grau responsabilidade.

O tratamento refratário da nossa imagem tem sido o inibitivo de uma reflexão séria sobre nós. E nosso pior defeito tem levado o ideal de nação – até agora algo envolto numa bruma e por isso acessado pela pior possibilidade de visão – para lugares dos mais inóspitos como a condenação de repetir a história vivida. Ainda mais agora, quando as construções narrativas renovaram os embates de classes e ideológicos e encontramo-nos desprovidos da condição de leitura e, logo, de subversão dos ditos. A repetição da voz opressora, ainda que rebaixada, que reinventada em nosso favor, é um discurso intuitivo, pobre, vazio e nada oferece enquanto desfazimento da ordem e seu domínio.

O esforço que se nota em Essa gente, nascido desse interior de confrontos narrativos, é o de encontrar a saída autêntica sobre o caos. Embora seu testemunho nos deixe ainda mais com a angústia da impossibilidade, uma vez que, este é um romance que, propositalmente, joga com a crise ou a falta de alternativa; isso está demonstrado não apenas nas situações narrativas, mas na própria condição actancial do narrar. A visível crítica que se deixa ver, entretanto, não oferece respostas – nem esse é um propósito do literário – tampouco se mostra positivista sobre a guerra de narrativas, no que, afinal foi transformada o embate de classes. E se a princípio constata que tudo é remanso de marés antigas, quer dizer, nada é tão novo como supostamente acreditam os da geração criada de frente para a web, sobretudo nas questões sociais e políticas deste país, constata-se também que as saídas do inóspito só poderiam se oferecer com a necessária seriedade que mesmo as situações mais estapafúrdias merecem ser tratadas.

Tudo em Essa gente, a começar pelo título como refletimos, aponta nessa direção. Isso quer dizer que o brio desse romance se oferece pela maneira como a obra é resultada de operações próprias que não recriam a realidade mas conferem uma peculiaridade frente ao real: sua leitura não isenta do contexto em vigor. E isso que poderíamos descrever como uma metodologia do fazer literário buarquiano é um princípio que se revela no próprio fazimento (ou seria, o contrário?) do romance, valendo-se do princípio metaficcional sem se guiar – por vezes não explicitamente – por ele.

O que se-nos conta de forma indireta é a história de um escritor de grande sucesso e renome no passado em crise de criatividade e às voltas para honrar com o compromisso de entregar um romance há muito contratado pela sua casa editorial depois de esgotados todos os adiantamentos de honorários possíveis. O resultado, bem sabemos, é a obra enquanto possibilidade de existência. A história mais trivial de todas e que guarda no seu interior pérolas tão diversas que, apenas na literatura brasileira, temática ou formalmente, terá sido matéria de quase todos os grandes criadores, na prosa e na poesia. Mas não é isso o que importa, visto que, no caso em questão, a matéria da obra é secundária e sua importância resulta dos aspectos formais utilizados pelo escritor.

Ao que parece, interessado na problematização do tempo, ordem cada vez assumida como uma entidade de próprio fôlego à serviço de contramão sobre as nossas existências, a natureza inusitada de Essa gente tem sua gênese nessa categoria narrativa. Isso significa reparar na novidade literária de uma obra que até então havia privilegiado a personagem, o espaço e o narrador. O romance se fabrica por audacioso projeto de bricolagem cuja emenda recorrente é o marcador do calendário: assim, os textos que o constituem  vão desde esses que carregam o embrião ou mesmo a narrativa, como cartas, anotações para diário, recorte de notícia de jornal, àqueles textos de ordem pragmática mais evidente, o mandado, o recibo, a mensagem de texto, ou ainda a anotação de leitura, visto que, uma das alternativas encontradas por esse escritor em crise tem sido emular passagens de sua obra de maior sucesso, O eunuco do paço real. Essas e outras possibilidades se deixam intercalar por vezes pelas vozes das próprias personagens que assumem o comando momentâneo da narração através da forma textual depoimento.

A crise da história ou da verdade histórica, levantada por esse romance do passado de Manuel Duarte, uma vez sê-lo produto de um modelo ficcional vigente desde a aparição da Nova História, alcança, dessa maneira, seu ápice mais grave, a crise da impossibilidade de contar uma história. O contratempo do narrar se confunde com outros, incluindo, o polimorfismo das narrativas como observamos acima. Agora, ao contrário do que poderá supor os mais desavisados, os apuros dessa atividade não são resultados de um tempo quando estamos mais afeitos aos apetrechos virtuais. Tampouco, o fatalismo benjaminiano do desaparecimento da experiência. Duarte, curiosamente, preenche alguns dos protótipos do escritor à moda antiga, pelo distanciamento que demonstra guardar dos meios eletrônicos e com vivências cotidianas agitadas, se repararmos nas situações pessoais que precisa administrar, incluindo os apertos financeiros para levar a mesma vida de luxos do passado e os vários imbróglios amorosos.

Que a atividade narrativa não beira seu fim já sabíamos; as próprias redes sociais se constituem sobre uma das nossas mais antigas necessidades: dizer sobre nós. A questão que se impõe – e descobrimo-la com esse Duarte – é que tipo de narrativa ainda nos interessa quando as vidas, nossa e alheias, podem ser reinventadas cotidianamente às nossas vistas. É outro retorno à secular pergunta, reinventada, claro está, sobre o papel da ficção nas nossas existências. No romance, isso se deixa evidenciar pela aparição de narração revestida das proposições formais recorrentes nessas narrativas continuamente produzidas nas redes; a vida que se conta e se justifica dos mais diversos apetrechos verbais é puramente um cotidiano qualquer – outra vez cumpre reafirmar o que designei em ocasiões diversas como a vida do homem trivial – que ressimbolizado pelo literário se oferece como possibilidade de narrar o que somos. Assim, a grande tarefa da ficção é poder dizer o que somos pelo outro ou o que o outro é por nós. Embora, a questão principal nesse romance de Chico Buarque não seja exclusivamente essa, ela é subjacente a era da pós-verdade.

As várias leituras apresentadas desde a publicação de Essa gente têm destacado a ironia com a qual o romancista tem falado do Brasil e a força do absurdo que tem dominado as situações cotidianas, incluindo a politização de tudo, nossa fragilidade de convivência e a relativização do mal. Mesmo que não seja isso especificamente o que lemos, este romance é um diagnóstico muito mais complexo dessas questões que não se restringem ao âmbito local. Poderíamos identificá-lo como o drama entre a humanização e a barbárie, incluindo toda sorte de violências nesse interior. E isso não é de um novo tempo, nem é exclusivismo nosso. É notório que algumas das questões, como essa dura travessia entre um modelo cultural fortemente embebido dos valores tradicionais e esse mais consciente sobre os efeitos de nossas ações, poderá parecer matéria superada entre as nações mais antigas que a nossa, entretanto, muito sabemos que o desfazimento das desigualdades é a luta de enquanto formos vivos – não existe repouso dos justos, simplesmente porque estes, o lugar ideal e o justo, não existem ou ainda porque toda a comunidade humana se realizou enquanto um complexo exercício de barbárie em que uns dominados por ideologias como a da ordem se sentem justificados à opressão dos demais. Chico Buarque retoma justamente isso para falar sobre o Brasil atual / e de sempre: a dialética ordem-desordem.



A recolha de fragmentos tão variados obriga o leitor a se envolver no tratamento de um jogo de encaixe (o mesmo assumido por esse escritor em crise) a fim de construir uma história possível – mesmo porque a organização proposta pelo narrador não é apresentada em boa parte de maneira linear mas por recuos e saltos que, juntamente com a variedade de formas textuais e conteúdos, produzem a irregularidade temporal. Quer dizer, o próprio romanesco se apresenta enquanto suspeição do tempo ou compreensão de que este princípio universal é trabalhado individual e coletivamente sempre pela evidência de uma força organizacional. O tempo, entretanto, é caos e este, por sua vez, recuperando uma das epígrafes magistrais de José Saramago, uma ordem por decifrar.

Em torno da impossibilidade de narrar (ou mesmo ela é resultada disso) soma-se um conjunto muito variado de crises: de valores, moral, política, econômica, das relações pessoais. E essas facilmente os leitores não deixarão de notar. Mas, a título de registrar o gesto sagaz de Chico Buarque com este romance, resta sublinhar uma crise muito às vistas na primeira carta, que denota a abertura do imbróglio narrativo, mas que alcança infiltrações variadas ao longo da obra nem sempre logo de um todo perceptíveis. Nessa situação se imiscui todas as demais atribulações das citadas anteriormente. Trata-se do que Manuel Duarte enuncia ao seu editor como dificuldades do mercado editorial.

Embora essa questão envolva elementos de complexa ordem, uma razão evidente se deixa entrever pelo que dizíamos sobre os interesses narrativos em vigor, ou com esses interferem no desgaste pela ficção tradicional. Mas, voltamos a insistir: é possível que os novos modelos de narrar não sejam a causa específica pela crise dos modelos tradicionais, visto que estes parecem mais inclinados a um jogo de convivência e não de sobreposição. A questão fica assim aberta para outros desdobramentos possíveis; vale, nos ater ao romance.

Depois de descobrir a perigosa situação psiquiátrica da companheira, Duarte recebe a recomendação de internamento domiciliar pelo médico que a acompanha; das várias auxiliares de enfermagem designadas pelo dr. Kovaleski, uma delas é descrita pela própria Maria Clara como uma “crente que roda pela casa cantando salmos ou declamando os provérbios”. Não é uma mulher iletrada, mas o tempo consumido com a leitura repousa no que lhe chega através do celular e na leitura da Bíblia.

Além de compor um retrato rigoroso sobre a periferia brasileira, em que a ausência do Estado terá resultado na proliferação de igrejas das mais variadas vertentes e na consolidação de um discurso protofascista cujas evidências são fortes demais para mostrar aqui, o romance oferece uma sutil observação sobre o que as elites (extensa maioria delas designadas mesmo como intelectuais) têm preferido enumerar como desinteresse da periferia pela cultura. A certa altura do depoimento da auxiliar de enfermagem, assim ela se expõe: “Para seu governo, eu tenho algum estudo e também sei quem é o Shakespeare que ela tanto lê no quarto. Não li, mas sei que ele escreveu um monte de tragédias além de Romeu e Julieta, e se fosse rica eu ia ler esses livros todos em inglês. Acontece que eu moro no subúrbio, e de casa para o trabalho gasto três horas com trem, metrô e ônibus. Com sorte consigo um assento livre, e o que é que faz o trabalhador um tempão sentado, fora ver indecência na internet? A gente lê a Bíblia, que consegue quase de graça em qualquer igreja, onde o pastor nos esclarece a linguagem cifrada dos profetas. Agora vi que a madame está traduzindo a peça Otelo para o português, muito que bem. Ela podia distribuir os livros na estação para ver todo mundo lendo o Shakespeare no trem.”

A crise do livro se apresenta sutilmente como parte de outras crises, mas se denota que suas bases estão desde a constatação do declínio da leitura literária à denúncia da ausência de ações afirmativas capazes de produzir o encontro entre livros e leitores. Por sua vez, continuamos confortáveis falando sobre livros para quem não os pode ter ou para quem os tem e só expõe que os tem; eis a constatação do fosso social e da complexidade de outras questões suscitadas na luta de classes. Mas é a falta de ação que produza o encontro literatura-leitor (com as várias ausências do Estado e nisso somos mestres) que dá lugar a dois poderes determinantes aqui e no desdobramento de outras situações sociais: o capital e a religião. No caso em evidência, o capital se mostra pelos pacotes de dados oferecidos aos usuários de celular, objeto de consumo e via através do qual a maioria tem acesso à leitura, à informação (e ainda agora os do poder querem-no para esse modelo de educação acrítico e destituído da ação pelo comodismo); e a igreja, pela imposição da leitura dogmática de livros que têm o acesso facilitado entre os desassistidos.

A conclusão um tanto óbvia, mas ignorada desde sempre pelo Estado e por nós que lidamos com o literário, é dada pelo próprio romance, num dos encontros variados com o pior de nós mesmos. Ouvimos e discutimos tanto sobre letramentos, estratégias e metodologias de ensino para o literário, ou mesmo nos debruçamos sobre obras da literatura como este exercício que agora se apresenta e esquecemos do principal — sequer ou muito raramente nos perguntamos como as camadas diversas de nossa sociedade recebem o ou são afetadas pelo literário e disso para ação a distância é ainda maior.

Agora, a voz dessa personagem não está isolada no amplo conjunto de histórias reunidas em Essa gente; sim, a maneira de organização do romance lhe oferece o estatuto de grande arquivo das situações corriqueiras que vez ou outra se revelam de forma mais notória nas pautas diárias dos jornais; o que se conta por entre o drama burguês que alcança relevo é a repetição das contínuas violências gestadas entre as diversas camadas sociais. O que o romancista constata é o quanto essas repetições geram uma banalidade do mal.

É singular o episódio no qual Manuel Duarte, no retorno do passeio com o antigo cão da família, se vê preso pelo lado de fora de casa devido ao atraso da chegada de Maria Clara, ocupando, por vezes, a mesma posição humilhada do passeador de cães; numa passagem pelo seu apartamento, no intervalo de espera, a situação fora de sua rotina, a preocupação em se concentrar no livro e a impertinência do cão que se exercita rasgando jornais velhos fazem o escritor passar o olhar displicente com a manchete de um deles sobre a morte de um homem com oitenta tiros.

Recorrente, mas sempre sutil, essas situações dão contas ainda das pequenas violências exercidas no cotidiano e das expressas nos jornais, ambas nascidas de há muito, de uma condição de nação marcada pelo imperativo do senhor-servo, ignoradas pelo olhar de todos. É simbólica a castração do negro a fim de preservar a voz angelical, episódio ficcional de O eunuco do paço real retomado diversas vezes incluindo o tempo presente do escritor Manuel Duarte – é um recurso de demonstração dessa violência imemorial, nascida no Brasil-colônia que agora se amplia em frentes diversas: na condição de desassistência do Estado, no mau pagamento pelo trabalho em excesso, na violação dos direitos, das individualidades, na violência doméstica exercida de variada forma, na matança indiscriminada das gentes da periferia compondo o que podemos designar como novo estratagema genocida, enfim, a constatação de uma sociedade doente nas suas mínimas funções.

Essa gente é um romance que se aplica perscrutar, indireta e indiscretamente, por diversos olhares, um país em degeneração. É uma obra repleta de um profundo ceticismo e desencanto com a repetida e fracassada ideia de país-do-futuro com um passado integralmente negligenciado. Não resta outra expressão que não a de repisar a conclusão sempre retomada desde o primeiro romance desse escritor – agora com uma variante, este é o seu sexto trabalho nessa forma literária: Chico Buarque continua excepcional e é, na variante de nossos criadores, um dos mais inteligentes.


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