Sófia Petrovna presa no realismo do cotidiano
Por Joaquim Serra
“O medo de
que pudessem nos ouvir, com certeza nos ouviriam. No meio da conversa alguém
sempre olhava rindo para o lustre ou para a tomada: ‘O senhor está ouvindo,
camarada major?’. Pelo risco... Pelo jogo... Tínhamos até certa satisfação com
essa vida dupla. Uma quantidade insignificante de pessoas se opunha
abertamente, mas tínhamos muito mais ‘dissidentes de cozinha’. Falando mal
pelas costas...” (O fim do
homem soviético, Svetlana Aleksiévitch, p. 35).
Na contramão
de outros autores do período soviético, Lídia Tchukóvskaia (1907-1996) opta por
um realismo crítico em Sófia Petrovna. A novela, escrita entre 1939-1940,
pertence à mesma década que A velha (1939), de Daniil Kharms, mas, ao contrário
desta, Lídia não opta pelo absurdo estético para retratar o surrealismo do
período do terror, mas, ao contrário, subverte o tema do realismo socialista e
conserva sua forma.
Ainda na
década anterior, nos tempos da NEP (1921-1928), havia um favorecimento, uma
“opção pela sátira e pelos gêneros cômicos enquanto forma de representação da
realidade corrente” (p. 247). Nessa época “proliferavam os jornais e revistas
humorísticas, as antologias de contos e novelas satíricas. Numa primeira fase
dessa produção, que abrange os anos da Revolução e da guerra civil,
predominavam textos satíricos e humorísticos de caráter publicístico” (p. 247).
Já na década seguinte, convivem tanto uma continuidade do gênero satírico como
uma maneira mais naturalista de representação. Dessa maneira, é curioso que a
própria instabilidade do tempo tenha gerado uma instabilidade estética no campo
da literatura.
A
protagonista Sófia segue a tradição do pequeno funcionário que descende de
Gógol. Mas agora a protagonista não é mais retratada na forma
irônico-picaresca, tampouco tem a profundidade psicológica do atrofiado homem
do subsolo, mas é uma mulher comum que carrega em si o ideal do progresso
através do trabalho e acredita na efetividade da política vigente.
Sófia Petrovna
é uma típica cidadã do novo mundo pós-revolucionário. Depois da morte do
marido, ela tem de trabalhar para sustentar o filho Kólia que ainda não tem
idade para trabalhar, mas nutre planos de ir à faculdade. Ela é então contratada
em uma grande editora de Leningrado. O trabalho a completa a ponto de convencer
os olhos alheios e uma promoção para chefe de seção logo vem. Aos poucos até as
reuniões entediantes de antes ganham novo significado a ponto de, em uma delas,
Sófia discursar em nome dos trabalhadores.
É na editora
que Sofia Petrovna tem contato com os romances e novelas soviéticos em primeira
mão. Naquele período, os romances russos eram aplainados pela estética do novo
regime: o realismo socialista. Para ela, “neles se falava muito de batalhas, de
tratores, seções de fábricas e muito pouco de amor” (p. 50).
Sófia
Petrovna é séria, mantem-se na linha, “por trás, chamavam-na de inspetora de
alunos” (p. 50), tem o respeito das demais datilógrafas. É adepta do sistema e
o vive de maneira verdadeira. Mora de maneira simples com o filho, em um dos
quartos de um apartamento que era seu, mas que agora divide com outras
famílias. No trabalho, tem como amiga e confidente Natasha Frolenko, descrita
como feia, mas competentíssima naquilo que faz, não é aceita no Komsomol (Kommunistitcheskii
Soiuz Molodioji – União Comunista da Juventude) mesmo depois de inúmeras
tentativas.
Sófia tem
uma notícia sobre o filho Kólia e seu amigo Álik. Ambos seriam mandados para Uralmash – uma fábrica de equipamentos pesados nos Urais. O futuro de seu filho
é o esperado. Kólia e o amigo são protótipos do homo sovieticus, do ideal do
novo homem selecionado artificialmente para o novo mundo.
Não demora muito
para a vida de Sófia Petrovna começar a desmoronar. Kólia é preso e Sófia não
tem qualquer notícia dele por muito tempo. O melhor amigo do filho e Natasha
agora se tornam o apoio de Sófia para provar a inocência do filho, mas, provar
para quem? Os três se veem presos no mundo burocrático que não mudara nada
desde Gógol; os carimbos, os números de chamada nas longas filas de espera. Por
que o filho teria sido preso sendo que Kólia teria um futuro brilhante?
É possível
dividir Sófia Petrovna em três partes. A primeira parte é sobre a adaptação e o
cotidiano de uma viúva no mercado de trabalho com o filho ainda em idade
escolar. A segunda, a partir do capítulo 8, Sófia tem a notícia da prisão de
seu filho Kólia, o que faz com que a protagonista entre no labirinto da
burocracia russa. E a terceira, a partir do capítulo 11, trata da decisão
aparentemente não relevante de levar o primus – um pequeno fogareiro da época –
e o querosene para seu quarto, com isso, fazendo desse cômodo, uma metonímia para
as conversas privadas que ficariam conhecidas como conversas de cozinha.
Mesmo com o
filho preso, a consciência de Sófia ainda está atrelada ao modo de pensar o
sistema sob suas regras. Ao ver os outros familiares nas filas, dizia consigo:
“e todos eles pareciam pessoas comuns, como nos bondes ou nas lojas. Só que
tinham uns rostos cansados e envelhecidos. “Imagino a infelicidade que deve ser
para uma mãe saber que seu filho é um sabotador” – pensou Sófia Petrovna”. Daí
vinha a contradição em pensar que apenas o seu filho poderia ser inocente para
permanecer também a confiança no estado como um protetor que nunca erra. Muitos
dos próprios prisioneiros pensavam da mesma forma. Os que acreditavam no
sistema, achavam que estavam nos campos de trabalhos forçados por algum erro.
Ao mesmo tempo, Sófia sofre o estranhamento dos dois planos
que conviviam naquele período: quando em uma das filas de espera, “ela tinha a
impressão de não estar em Leningrado, mas em uma cidade desconhecida,
estrangeira. Era estranho pensar que a trinta minutos de caminhada ficava seu
escritório” (p. 93). De um lado há a vida comum que Sófia tinha antes do
acontecimento trágico, e de outro, o mundo subterrâneo das filas, números,
guichês, esperas, que impossibilitavam os familiares de tomar conhecimento
sobre os presos.
Não bastasse
isso, Sófia é acusada pela enfermeira que também vive em sua casa. Acusada não
apenas porque tem o filho preso e há suspeitas sobre ela, mas porque a
enfermeira a queria presa para dar um quarto para a própria filha,
contradizendo o ideal de coletivismo da época.
Diz a enfermeira ao administrador: “Preste atenção: ela montou uma
cozinha inteira aqui. Fuligem, sujeira, pretejou todo o teto. Ela está
arruinando as instalações do edifício. Veja bem, ela não quer fazer a comida
junto com os outros, está se esquivando desde que nós a apanhamos roubando
sistemático o querosene alheio. O filho dela está na cadeia, condenado como
inimigo, ela mesma não tem emprego fixo, em suma, um elemento suspeito"
(p. 134).
A vida de
Sófia agora é solitária e a única coisa que se permite é sonhar com uma carta
de Kólia: “Sófia Petrovna saiu no patamar da escada e abriu a caixa de
correspondência. Vazia. Suas entranhas estavam vazias. Sófia olhou por um
momento para as laterais amarelas da caixa, na esperança de que seu olhar
pudesse fazer sair dali uma carta” (p. 134).
Sófia
finalmente recebe uma carta do filho. Não há endereços ou remetente, só o
impacto da leitura da mãe que reconhece a caligrafia do filho. Na carta, Kólia
pede para a mãe agir rapidamente através de um requerimento que o filho já
enviou aos montes. Foi preso injustamente: “Minha sentença foi baseada no
testemunho de Sashka Yártsev – lembra-se, aquele menino da minha classe? Sashka
Yártsev declarou que ele havia me convencido a participar de uma organização
terrorista. E eu também fui obrigado a confessar” (p. 141). E, assim como
Chukhov em Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, Kólia assina uma confissão falsa
confissão.
Os
acontecimentos em Sófia Petrovna são como elos de uma corrente. Quando um se
esgota, um novo se inicia. Assim acontece com o silêncio de Natasha, com as
investidas de Álik para salvar o amigo, o que culmina em sua prisão, com a
busca de uma mãe por notícias do filho, mas acaba por ser impedida pelo medo
imposto pela realidade. O único elo que não parece se fechar é o do
desaparecimento de Kólia, mas este tem resposta na última cena e Lídia faz
questão de deixá-lo aberto para que o leitor acompanhe a agonia da falta de
respostas.
Não é
difícil comparar a aflição de Sófia com a do pai em K – relato de uma busca (2011),
de Bernardo Kucinzki, que apresenta um pai à procura da filha desaparecida no
período da ditadura militar e enfrenta, por assim dizer, o decoro daqueles que
nunca falam diretamente sobre o problema. A posição do narrador em Sófia
Petrovna é de estilo kafkiano, sendo que ele não tem a onisciência ou a
presença – sequer consciência – plena da trama da narrativa e, com isso,
deixa-se contaminar apenas pela fábula, e pela ausência de conhecimento da
personagem. A novela Sófia Petrovna foi inspirada nas experiências da própria
autora cujo marido desapareceu alguns anos antes de sua escrita e é, sem
dúvida, uma grande obra realista sobre o período do terror, porém só pôde ser
publicada em 1988 com a perestroika.
Notas:
* Sófia
Petrovna está disponível apenas através da dissertação de Maria Camargo-Sipionato,
seu título é: Sófia Petrovna e a memória proibida do cotidiano soviético, 2014,
e está disponível no banco de teses da USP.
Bulgákov,
Mikhail. Um coração de Cachorro e outras novelas. Tradução e organização de Homero Freitas de
Andrade. São Paulo: Edusp, 2010.
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